Em 2001, convidado pela Jornada de Literatura de Passo Fundo, colocaram-me numa mesa para falar sobre a formação da opinião na internet. Como o evento ocorria debaixo da lona de um circo, o tom era informal, daí o uso da primeira pessoa, que retomo agora. Levei um texto pronto, enorme, que precisei cortar pela metade, recorrendo a toda a minha inabilidade para a improvisação. Mas o mais importante do que falei acabou sendo impresso num livro, Da prensa ao e-book, organizado por Eládio V. Weschenfelder, Tania M.K. Rösing e Telisa Furlanetto Graeff.
Lembrei dele por acaso, após ler, na última sexta-feira, sobre os documentos que o site Wikileaks vazou, comprovando que o governo dos Estados Unidos não investigou casos de tortura que conhecia no Iraque e que o número de civis mortos foi subdimensionado. Poderia citar também todo o debate no Twitter sobre o episódio do conflito entre tucanos e petistas no Rio – pela internet, e não pela TV, vai ficando cada vez mais claro que houve uma sobrevalorização do episódio da bolinha de papel e, sobretudo, do suposto rolo de fita, com objetivos eleitorais.
Leia mais:
Wikileaks: Militares dos EUA mataram 680 civis iraquianos em postos de controle
Rússia entregará à Polônia novos documentos sobre morte de Kaczynski
Wikileaks publicará em breve 15 mil documentos sobre guerra do Afeganistão
Documentos dos EUA revelam mortes de civis e missões secretas no Afeganistão
Esse debate, no entanto, seria impossível alguns anos atrás. Alguns anos atrás, seria inimaginável uma rede de colaboradores anônimos lutando contra os segredos que permitem manter a guerra no Afeganistão. Alguns anos atrás, os eleitores não poderiam entrar na discussão, dependeriam exclusivamente das poucas versões que seriam postas em circulação por meia dúzia de empresas de jornalismo. Hoje, um professor de jornalismo digital de Santa Maria (RS) pode contestar a versão do Jornal Nacional rapidamente – com uma força limitada, é verdade, mas com uma boa capacidade de encontrar interlocutores, jornalistas ou não, para debater e colocar sua visão de um episódio para circular.
Nesses nove anos e alguns meses, o cenário mudou. Por isso, vou reproduzir o depoimento.
“Estou aqui para falar sobre jornalismo eletrônico versus jornalismo tradicional. Eu entrei na faculdade em 1992. A gente ainda usava máquina de escrever. Eu fui da última geração que, no primeiro ano da faculdade, usou máquina de escrever para bater as matérias. Na época, a gente batia as matérias, agora a gente digita, o que é muito mais fino e delicado. E, de lá para cá, tudo mudo muito rapidamente. Os meios foram se sofisticando. A internet, que era uma coisa sobre a qual a gente lia nos jornais, virou uma realidade. A gente passou a usá-la para trocar e-mails, para navegar.
Eu acompanhei, dentro dos jornais, a fundação do jornalismo na internet. A primeira coisa que a gente viu foi uma reprodução dos jornais ir para a rede de computador. O jornal chegava, mais ou menos, ao meio-dia, depois do dia em que ele fora publicado. Ele era reprodução e era uma espécie de mostruário, nem todas as matérias iam. Depois, as matérias começaram a ir cada vez mais cedo para a rede. De repente, quando a gente percebeu, as nossas matérias iam para a rede muito antes até de serem impressas. Hoje em dia, quando a gente tem um furo, ou uma informação exclusiva, a gente tem de vigiar, tem de avisar o pessoal que cuida dos sites dos jornais na internet para que não coloque no ar muito cedo, porque senão o concorrente pode pegar e tal.
Leia mais
Partido Verde francês declara apoio a Dilma e diz que sua vitória é única forma de avançar debate ecológico no país
Mujica diz apoiar Dilma por ser quem “mais convém” ao Uruguai
Aborto: a cruzada fundamentalista de José Serra
Presidente de El Salvador diz acreditar em vitória de Dilma no 2º turno
Brasil “tem cara de mulher”, diz Cristina de Kirchner sobre eleições
Houve um avanço técnico sensacional nessa década de 1990, mas eu não sei se é muito fácil falar de opinião no jornalismo eletrônico, porque nem sempre o avanço técnico é acompanhado de um avanço de conteúdo. Uma das coisas mais impressionantes da história do jornalismo é quando surge a impressão por máquinas a vapor. Em 1814, o Times passa a publicar, passa a rodar sua edição numa máquina a vapor, o que acelera, absurdamente, a produção do jornal e a distribuição. Nove anos depois disso, nasce em São Paulo o primeiro jornal do estado, O Paulista, que nem era impresso. São Paulo era um estado pobre, não tinha um prelo e o jornal era manuscrito. Eles contratavam copistas, pessoas para copiarem os jornais, para distribuir na cidade.
Apesar disso, de 1821 a 1823 é o período de ouro do jornalismo brasileiro. É quando ele surge, é quando explode, quando passa a influenciar a vida política nacional. É quando, inclusive, dom Pedro I passa a escrever nos jornais para defender suas posições, para debater as posições que apareciam nos outros jornais que proliferavam. Quer dizer, havia método ainda artesanal no Brasil, e uma explosão de conteúdos. Como hoje em dia seria bonito dizer uma explosão de ideias, uma explosão de gente, pensando o país, pensando o futuro deste país.
Eu não vejo isso nos jornais, não vejo isso na internet ainda. A internet tem funcionado muito bem para as pessoas que se sentem prejudicadas pelos jornais, pelas revistas, para organizar correntes de contra-informação, de contrajornalismo, o que é maravilhoso.
Você tem contestações de reportagens; você tem um debate, que corre pela sociedade num caminho sobre o qual os jornalistas não tem controle absoluto e que nasce naturalmente, seguindo um caminho próprio. Mas isso não é jornalismo. Não é, pelo menos, o jornalismo das grandes empresas. É uma guerrilha jornalística, uma espécie de resistência ao poder excessivo dos jornais, o que é muito bom.
Então, eu acho que , nesses dez anos de internet, muitas portas se abriram; mas, às vezes, eu tenho a impressão de que ninguém entrou dentro delas ainda para ver o que vai encontrar lá.”
Hoje, em 2010, jornalistas e grandes empresas de comunicação já não podem ignorar esse fato: as portas estão definitivamente abertas. E o jornalismo só tem a ganhar com esta situação, porque ela eleva o grau de exigência sobre a coerência, a confiabilidade e a honestidade das informações. A democracia pede agora que coloquemos todo mundo para dentro da internet e que não deixemos ninguém fechar as portas.
*Haroldo Ceravolo Sereza é Diretor de Redação do Opera Mundi.
Siga o Opera Mundi no Twitter
NULL
NULL