O desconforto seguido de crises pessoais desconstrói uma família após um visitante ir embora da casa onde vivem: este é o enredo do longa-metragem Teorema (1968). Em tempos em que se discutem a “expansão da classe média” e “modelos familiares”, o cineasta e escritor italiano Pier Paolo Pasolini já detonava tais concepções na década de 1960 com seu filme.
Pasolini nasceu no dia 05 de março de 1922 em Bolonha, no nordeste da Itália, e no dia 2 de novembro de 1975, na cidade litorânea de Óstia, próximo a Roma, foi assassinado. A morte é controversa e existem indícios de que foi encomendada: o autor nutria antipatia de diversos setores da sociedade italiana na época por sua obra e críticas publicadas em jornais. No filme Pasolini (2014), de Abel Ferrara, os últimos momentos da vida do poeta são retratados. O filme tem estreia prevista para 5 de novembro no Brasil.
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O cineasta e escrito Pier Paolo Pasolini (centro) acompanhado do cineasta Federico Fellini
Antes de tudo, poeta
Mesmo após quatro décadas de sua morte, o efeito de sua obra permanece. No início de outubro, foi lançado no Brasil o livro Poemas: Pier Paolo Pasolini (Cosac Naify), traduzido pelo professor de literatura italiana da USP Maurício Santana Dias e organizado em conjunto com Alfonso Berardinelli. O professor comenta que o lançamento do livro ilumina a figura do Pasolini poeta, ainda pouco conhecida por aqui: “Toda obra dele está vinculada a essa experiência poética”. Além desse enfoque nos poemas, o livro traz de volta “alguém que sacode o leitor”, diz Dias. “Estamos vivendo momentos de apatia, de certa indiferença, de um certo marasmo, e o Pasolini é aquele que vai contra isso. Extremamente vital, visceral, e ele se contradiz e não tem vergonha de se contradizer”.
Quanto ao processo de tradução, Dias observa que o desafio foi acompanhar o amplo espectro apresentado nos poemas. “Ele experimenta muito, usa formas tradicionais como o decassílabo, às vezes com rima, às vezes sem rima, às vezes com rimas internas, até formas livres, verso visual, montagem cinematográfica. A dificuldade é conseguir acompanhar essa enorme variação de formas e também de misturas de registros, pois pode ir do mais humilde, até o mais elevado, o mais sublime”, comenta o professor.
Dois poemas do livro tratam do Brasil: Hierarquia e Comunicado à Ansa – Recife. O poeta esteve no país em 1970, após voltar da apresentação do filme Medeia no festival de Mar del Plata, na Argentina. “Pasolini acabou escrevendo esses poemas que são a versão dele do terceiro mundo, em que ele via um tipo de possibilidade, outro tipo de civilização que não aquela ocidental europeia neocapitalista, completamente condenada ao fracasso”, acredita Dias.
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Cena de Saló ou os 120 dias de Sodoma (1975), seu último filme
Crítica e filmes
O ponto central da obra de Pasolini está na representação dos marginais da sociedade. Em lugar de retratar o proletariado, ele jogou luzes no subproletariado, o que o distanciou das obras de cinema neorrealistas da época. Com o aprofundamento de sua crítica procurou denunciar o consumismo e o autoritarismo e produziu intencionalmente obras de difícil entendimento imediato. Em sua filmografia também houve espaço para histórias épicas com a celebração de culturas antigas. No entanto, alguns filmes, como os da Trilogia da Vida, foram renegados pelo cineasta por terem sido assimilados como objeto de consumo erótico pela burguesia.
Segundo Dias, o tradutor do poeta, Pasolini não se alinhava a nenhuma doutrina, o que fez com que ele fosse visto como reacionário por alguns setores da esquerda italiana. Em críticas publicadas em jornais se posicionou contra pautas progressistas e chegou a criticar movimentos sociais por acreditar que haviam sido cooptados pelo sistema. Contudo, a crítica voraz foi concentrada no neocapitalismo que o poeta via como “modelo de sociedade voltada para produção e consumo em um estado de aceleração devastador e que acabava anulando as diferenças”, diz Dias.
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O ator Willem Dafoe interpreta Pasolini no filme homônimo de Abel Ferrara, que estreia no dia 05 de novembro no Brasil
“Isso é visto como uma espécie de genocídio cultural e até de mutação antropológica. Essa é uma expressão que ele cunhou. O homem estava se transformando em outra coisa, estava se tornando um ser cada vez mais alienado e refém de um pensamento único”, afirma o professor.
Por causa desse “genocídio cultural”, Pasolini defendeu a ideia de se vivia em um tempo póstumo, com uma cultura póstuma, com o homem refém de si mesmo.
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Cena de As mil e uma noites (1974), parte da Trilogia da Vida de Pasolini
Metáforas da luta de classes
Em Gaviões e Passarinhos, filme de 1966, o pai (Ciccillo) e o filho (Ninetto), acompanhados por um corvo marxista, percorrem a pé uma estrada. A dupla passa em uma casa para cobrar uma dívida de uma família pobre. Depois param em uma casa burguesa para explicarem os motivos em não pagarem a dívida que possuem. O corvo é comido no final. Em uma história paralela, os protagonistas se tornam Frei Ciccillo e Frei Ninetto, encarregados por São Francisco a evangelizar gaviões e passarinhos. Após muito esforço, eles aprendem a linguagem dos pássaros. Porém, após convertê-los, um gavião ataca um passarinho, prejudicando todo o trabalho. Frei Ciccillo diz a São Francisco: “O que posso eu fazer se existe a classe dos falcões e a classe dos passarinhos que não conseguem viver em harmonia?”.
A história é vista como metáfora da luta de classes, sobretudo na época do filme, em que a sociedade italiana efervescia na discussão ideológica. O cineasta já demonstrava que o mundo estava mudando, fato representado pela morte do corvo. Porém, após tantas transformações regidas pelo domínio do mercado econômico e, por consequência, uma padronização mundial do consumo, hoje as polarizações ideológicas voltaram à tona, algo perceptível tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Será mesmo que não é possível conciliar gaviões e passarinhos?
'O que está acontecendo na pocilga?'
No filme Pocilga (1969), o filho de um burguês é devorado por porcos. Após saber que seu filho foi comido o burguês pergunta: “Então, não ficou nem um sinal? Um pedaço de roupa? Um sapato?”. Ao ouvir “não” como resposta, completa: “Então, não diga nada a ninguém”. Em paralelo, é representada a história de um canibal, em séculos anteriores.
A obra traça um retrato da corrupção humana pelo consumo, sendo o pai um grande industrial ameaçado por um ex-nazista que promete revelar a relação do seu filho com os porcos. O industrial se protege dizendo que denunciará o passado nazista dele. Os dois percebem que só têm a perder com as ameaças e acabam por firmar um acordo que beneficia a todos. Sem remorsos, a solução se confirma quando surge a notícia de que o filho foi devorado pelos porcos.
O pessimismo dos atos é cortante: pelo passado não remexido, pelas negociações acima de qualquer coisa, por o que era para ser produto e acaba por nos devorar. Esses elementos criticaram a esquerda e os estados capitalistas da época. Porém, essa crítica parece ganhar fôlego ao se observar que a história política e econômica de muitos países, ainda hoje, é mantida na escuridão.
Corrupção dos sentidos
Já em Saló ou os 120 dias de Sodoma (1975), seu último filme, Pasolini traz uma metáfora inspirada em Marquês de Sade e ambientada na República de Saló, berço da resistência nazifascista na Itália. Na história, quatro fascistas (Bispo, Banqueiro, Duque, e Presidente da Corte) submetem jovens a diversos tipos de depravações sexuais para saciarem seus obscuros fetiches. Esses “símbolos” do poder são a representação de como o fetichismo religioso, mercadológico/financeiro e político atuam sobre nossas vidas.
Giuseppe Bertolucci no documentário Pasolini, Nosso Próximo (2006) mostrou cenas da gravação de Saló, com trechos de entrevista com Pasolini, que sentencia: “as pessoas não vivem uma liberdade sexual, elas se adaptam à liberdade que lhes é concedida”. O poeta também aponta que o filme é “uma verdade para todos os tempos”, sendo que trata sobre a representação “do que o poder faz com o corpo humano”.
As circunstâncias quanto à morte de Pasolini ainda não são definitivas: assassinato premeditado ou assalto seguido de crime homofóbico? Talvez essa pergunta interesse menos se pensarmos o quanto Pasolini teria contribuído nesses anos todos com suas críticas à sociedade de consumo. Porém, quem estaria disposto a ouvi-las?
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Pasolini diante do túmulo de Antonio Gramsci, intelectual anarquista italiano que ele homenageou no poema 'As cinzas de Gramsci'