A gastronomia francesa, considerada patrimônio cultural da humanidade pela Unesco desde 2010, tem um novo inimigo: os pratos prontos. Para economizar tempo e dinheiro, restaurantes estão saltando algumas etapas do processo de cozinha e utilizando alimentos pré-prontos ao invés de preparar tudo à moda antiga. A solução encontrada pelo governo francês foi criar um selo de qualidade “fait maison” (feito em casa), garantindo ao consumidor uma comida caseira de verdade. A medida, entretanto, vem sendo criticada por especialistas do setor.
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Logo da campanha “feito em casa”, que acompanha o seguinte texto:
“Eis o logo “feito em casa”, que será utilizado nos restaurantes, nas rotisserias e nos mercados a partir de 15 de julho de 2014. Ele indica os pratos “feitos em casa”, que quer dizer que são elaborados no local a partir de produtos frescos”
Já faz tempo que alguns chefs denunciam o uso de congelados como uma concorrência desleal e um desrespeito com os consumidores. Calcula-se que cerca de 80% dos restaurantes franceses seriam adeptos da prática. Por isso, a criação de uma lei regularizadora era bastante esperada. Mas a festa durou pouco, pois, olhando mais de perto, o que era para esclarecer os clientes pode confundi-los ainda mais.
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O decreto oficial, válido desde 15 de julho, estabelece que, para o alimento ser considerado “comida caseira”, os restaurantes são autorizados a utilizar produtos previamente descascados, cortados, amassados, lavados, desossados, moídos, salgados, defumados, refrigerados, congelados. Ou seja, contanto que a transformação aconteça dentro do estabelecimento, não importa o estado de chegada dos produtos brutos. A única exceção são as batatas, que devem ser descascadas e preparadas no próprio restaurante.
“O selo é uma grande enganação, ficou ainda pior do que antes!”, defende Xavier Denamur, proprietário de seis cafés e restaurantes em Paris, em entrevista a Opera Mundi. Denamur luta pela regularização da comida caseira há cerca de oito anos e diz que a batalha ainda não acabou: “Clientes e turistas querem produtos frescos, não congelados. As pessoas precisam saber o que comem nos restaurantes franceses, caso contrário será uma catástrofe para a imagem do nosso país”, afirma.
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Fake maison
De maneira prática, seria possível preparar um peixe congelado originário da Ásia, junto com alguns legumes previamente limpos e cortados tirados de um saco plástico
Como reconhecer um “fait maison”: Poucas opções no cardápio. Quanto menos variedade de pratos, mais chances de uma comida preparada à moda antiga. Afinal de contas, os cozinheiros não podem estar disponíveis para cozinhar vinte refeições diferentes sem ajuda do freezer. Pratos trabalhados. Opções simples demais, sem misturas originais ou acompanhamentos, provavelmente chegam de fora e são apenas requentadas na hora de servir. Coerência do menu. Pizzas, enchiladas e frutos do mar lado a lado? Corra. Preços justos. Se um restaurante é bem mais barato que o vizinho, desconfie. Notas fiscais. Caso o francês não esteja enferrujado, experimente pedir os recibos dos produtos frescos que chegam ao restaurante. Um estabelecimento sério ficaria feliz em mostrá-los. |
e receber o selo “fait maison”. Os queijos, pães, massas folhadas e embutidos também seriam dispensados do processo caseiro. Podem-se utilizar igualmente molhos prontos, contanto que se informe ao consumidor por escrito no menu.
Algumas associações do ramo acham a medida positiva, como a Synhorcat, um sindicato que representa 26 mil restaurantes: “É um justo equilíbrio entre a valorização do nosso trabalho e o desejo de transparência dos clientes”. Outros afirmam que é um primeiro passo positivo, mas ainda não é o ideal. Mas os profissionais que insistem em utilizar produtos frescos e realizar o trabalho de A a Z estão insatisfeitos de serem colocados no mesmo patamar daqueles que optam pela praticidade. Denamur convida seus colegas a fazer um boicote: “Quem faz comida de verdade não vai participar. Isso não é fait maison, é fake maison”.
A logomarca, uma combinação de casa e panela, já está liberada para uso. A avaliação é feita prato por prato, não pela totalidade do restaurante, e a imagem deve aparecer ao lado de cada item. Nos próximos dias, os restaurantes receberão um kit explicativo de uso do selo e terão até dia 15 de janeiro de 2015 para se adaptarem, data em que as fiscalizações devem começar. Xavier Denamur, no entanto, está decidido: “Não vou usar, até porque eles não podem me obrigar. O controle é feito para quem usa e não tem direito, não o inverso. Essa etiqueta está fadada ao fracasso”, profecia.