Assim caminha a juventude ticuna… São índios. Mas não adoram o Sol, a Lua, as estrelas, os animais, as árvores. Praticam, sim, com afinco, a religião batista, imposta por um missionário americano, o pastor Eduardo – provavelmente, Edward – que passou por ali, pelo Alto Solimões, a região mais isolada da Amazônia, no amanhecer dos anos 60. São brasileiros, amazonenses, porém, não assistem à novela das oito nem ouvem sertanejo universitário. Eles se ligam na TV colombiana e escutam música importada do país vizinho, que ecoa estrondosa dos casebres de madeira. Praticamente de todos ao mesmo tempo. O único sinal de que devem passear de vez em quando pela Globo é o penteado do Neymar enfeitando as cabeleiras escorridas e negras. Não falam português fluentemente. As crianças nem sequer entendem. A língua dos bate-papos animados é o ticuna. Anasalado e sonoro. No entanto, são obrigados a aprender matemática, química, física, história, geografia etc. na língua pátria. Uma situação insólita: na língua que não dominam, o português, os jovens precisam ler e escrever – e prestar exames. E, na língua que dominam, o ticuna, também encontram limitações na leitura e na escrita, por tratar-se de uma língua de tradição oral. Assim caminha a juventude ticuna: soterrada numa salada de identidades.
Perguntados sobre o que querem da vida, eles respondem que querem o mesmo que a maioria dos jovens: entrar na universidade.
“Meus pais falam pouco português. Estudaram pouco. O Enem difícil para mim. Eu não sabia entender. Não compreendia questões. Eu acho que se a prova fosse em ticuna, a gente muito melhor. Meu sonho é fazer medicina”, diz Moacir da Silva, 25 anos, olhos colados no chão, português vacilante.
“Maior dificuldade matemática, química e história. Muito diferente da escola. A linguagem muito complicada também. Tinha que ter prova em ticuna. Facilitar muito porque a gente entende melhor, mesmo existindo pouco material escrito em ticuna. Não desisto. Eu quero fazer secretariado nível superior”, comenta Rosilene Miguel Batalha, 23 anos, com um bebezinho de olhos brilhantes no colo. Ela também prestou o Enem em 2009.
Último lugar
Em 2009, a Escola Estadual Pedro I, na aldeia Betânia, onde vivem cinco mil ticunas (estima-se que existam 32 mil ticunas vivendo no Alto Solimões, entre a Amazônia brasileira, colombianae peruana), ficou na rabeira do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio. O colégio, uma construção sólida e espaçosa, semelhante a qualquer prédio de escola pública, frequentado por 600 jovens representantes da etnia, ostentou o último lugar,com média geral de 249,25 pontos. A média na redação foi a menor: 40 pontos. E a maior, matemática, com 410,49 pontos.
O gestor do Pedro I é um índio miúdo, semblante sério, vestido distintamente, com calça social e camiseta da Seduc, a Secretaria de Estado de Educação do Amazonas. Com pós-graduação em pedagogia, ele garante: indo bem ou mal no Enem, a ordem nos corredores do seu reduto é perseverar. “A dificuldade dos nossos alunos é a língua. Mas temos quatro alunos que conseguiram a média do Enem e estão na faculdade em Tabatinga. Do meu ponto de vista, o exame é justo no sentido de testar a produção de conhecimento. Mas o Enem não reflete nem respeita a cultura amazônica. As escolas indígenas participam com toda coragem e boa vontade”, diz, também vacilando no português e desviando o olhar. “Queremos que os nossos jovens vão para a universidade porque a aldeia precisando de profissionais.”
Segundo a representante na região da Secretaria de Estado de Educação do Amazonas, Suzete do Socorro, uma senhora atarracada e simpática, não há nenhum projeto ou discussão em curso sobre mudanças nas regras do Enem. A ordem é incrementar o português nas escolas indígenas. Desde o fatídico 2009, o ano do fracasso oficial, ela vem tentando. No ano passado a professora Adriele Fabiola, formada em Letras pela Universidade Estadual do Amazonas, foi enviada à aldeia para um curso de quatro meses. As duas são categóricas no discurso: a situaçãoé complicada. “Eles não querem professores brancos. Querem professores indígenas. Temos 22 professores na escola, só oito são brancos. Por um lado, têm razão. Não querem perder a língua. Mas aí fica muito difícil o aprimoramento do português, pois falam em ticuna na sala de aula”, comenta Suzete. “Na verdade, não se importam com o Enem. Fazem questão de se inscrever porque se conseguirem o mínimo de pontos estão dentro da UEA [Universidade Estadual do Amazonas] pelo sistema de cotas. O desejo deles é formar cada vez mais jovens para atuarem dentro da comunidade.”
Navegar é preciso
O isolamento é algo que não se discute. A aldeia Betânia localiza-se onde o vento faz a curva. Para chegar lá, navegar é preciso. Saindo de Manaus, as lanchas rápidas levam entre 20 e 30 horas para atingir Santo Antônio do Içá, a cidadela ribeirinha mais próxima de Betânia.
De Santo Antônio do Içá até a aldeia, porém, ainda tem chão. Ou água. Aluga-se uma voadeira por R$ 200 a viagem. O caminho é o seguinte: desce o Solimões por meia hora; pega um atalho pelo rio Paraná de São Félix; penetra no rio Içá. E, mais meia hora depois, avista-se a aldeia Betânia, num recanto paradisíaco e dominado pelos traficantes de cocaína da Colômbia. Subindo o Içá mais quatro horas, já é território colombiano. De acordo com os índios, o rio tornou-se rota alternativa da droga.
A aldeia começou a se formar em 1961, pelas mãos do pastor Eduardo, o tal missionário americano da igreja Batista. O pastor Modestino Domingos da Silva, um dos cinco pastores indígenas que hoje zelam pela alma dosticunas, tem a história na ponta da língua. “Eu tinha 12 anos. Nessa época, os ticunas viviam espalhados. O pastor Eduardo chegou e foi juntando a gente. No primeiro acampamento éramos só 60. A primeira construção foi a igreja. Em 1962, houve o primeiro batismo. Daí para frente, veio ticuna de tudo quanto é lado”, conta ele. “Hoje somos cinco mil moradores e 90% é batista. Nossa comunidade é organizada e ordeira.”
O cacique segue as leis da igreja. É proibido fumar, beber, praticar rituais indígenas com plantas, usar brincos… Para botar ordem, os ticunas criaram a própria polícia, uma espécie de milícia formada por voluntários. O delegado Domingos Francelino Pereira é uma grande figura local. “Antes tinha violência de todo tipo, até estupro. Um dia descobrimos uma plantação de cocaína. Os traficantes estavam obrigando nossos jovens a plantar. Foi aí que criamos a nossa polícia. São 120 voluntários”, explica. “Os traficantes vendem papeletas aqui,na porta. Quando formamos a nossa polícia, todo mundo falou mal na televisão. Chamaram a gente de milícia. Nós não somos milícia, não. Somos filhos da terra e queremos proteger os nossos filhos. Quem vai proteger?”
Adentrando a aldeia Betânia, descobre-se um povoado simpático, limpo, organizado, ordeiro, como bem falou o pastor Modestino. As ruelas são calçadas de cimento. Os casebres, feitos de madeira, caprichados e aconchegantes. Por todo lado, há árvores e flores para enfeitar. A Escola Estadual Pedro I é o prédio mais imponente do vilarejo, fica na parte alta da aldeia. No nosso primeiro dia na Betânia, era feriado pela morte do pastor Jordão, outro americano que andou por ali. No colégio encontramos apenas um professor, de geografia, o Saturnino Jesuíno, um índio magrelo e falante. Ele conseguiu concluir o magistério graças a uma instituição localizada em Benjamin Constant, na Tríplice Fronteira, chamada Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngues (OGPTB). Trata-se de uma associação criada em 1994, reconhecida pelo MEC, que forma e congrega mais de 400 professores indígenas que atuam em escolas das aldeias ticuna doAlto Solimões. “Há dois ou três anos, todos os professores eram de fora da aldeia. A OGPTB foi formando professores indígenas e o quadro mudou. Nossa escola é muito boa. Tem um ponto de internet. Há dois anos, temos eletricidade. Nosso problema é a língua. De Teféa Tabatinga, predomina a etnia ticuna. Eu acho que justifica lutar por uma universidade ticuna. A maioria dos índios perdeu a língua. Nós não”, diz Saturnino, um dos poucos fluentes em português na Betânia.
Banquete de bodó
Na manhã seguinte, as ruelas de Betânia amanheceram coloridas de estudantes. Os miúdos indo para as duas escolas municipais de ensino fundamental. E os adolescentes, para o Pedro I. Calças jeans enfeitadas, cabelos incrementados, assim caminha a juventude ticuna: calçada com tênis da moda. O dia era de teste, simulado do Enem. E o dia também era de ensaio do desfile de 7 de Setembro. Ou seja, dia movimentado na aldeia. No Pedro I, há duas turmas inseridas no Ensino Médio Mediado por Tecnologia,um programa do Governo Estadual. Os alunos assistem às aulas na TV, que são gravadas em Manaus e enviadas via satélite. O professor eletrônico não faz sucesso. “Não consigo entender e não consigo copiar da tela. É muito rápido. Falo pouco português.Mas quero ser médica”, diz Laíde Alexandre Batalha, uma bela índia de 20 anos.
A manhã animada terminou com uma rodada generosa de bodó, um peixe típico da região do Alto Solimões. Assado na brasa, com farinha e pimenta-verde. A fartura era fruto do suor do dia anterior.O gestor da escola, Fanito, levou as oito professoras brancas para pescar. Elas moram na “casa dos professores” e, longe da vista dos colegas indígenas, reclamam o tempo inteiro da falta de estrutura da escola e de boa vontade dos ticunas com o português. “Sinto falta de livros, mapas, imagens, recursos visuais. Não tem nada. Meu único recurso é falar para uma plateia que não me entende”, diz uma delas. “Eles leem com tanta dificuldade que demoram um ano para ler um livro. E temos que ir com calma, porque os alunos se irritam. A comunicação é difícil. Índio tem pavio curto”, comenta outra. No dia a dia, porém, todos se entendem, principalmente em torno de um banquete de bodó. “Levei elas para pescar porque estou criando um regulamento. Os professores indígenas têm que falar pelo menos um pouco de português na sala de aula. E os não indígenas precisam saber um pouco de cultura e da língua ticuna”, encerra Fanito.
Texto publicado originalmente na revista Trip
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