Ialam tem cerca de trinta anos, gosta de vez em quando de um bom kwai – uma combinação de noz de areca e folha de pimenta de bétel –, ganha a vida fazendo artesanato e é doido por seus três filhos. Ele é um típico residente do distrito dos Montes Khasi Orientais, no estado de Meghalaya, na Índia. Mas Ialam não é apenas mais um aldeão, especialmente para as mulheres do vilarejo. Quando grávidas, é dele que elasdependem para um parto seguro. Ialam é membro de um grupo incomum de homens que têm como um segundo emprego o de parteiro, os nong tyn ksa ksum, como são conhecidos no idioma khasi. “Todos os homens neste conjunto de vilarejos possuem essa habilidade”, diz ele, “mas apenas cerca de 15 ou 20 o fazem regularmente, como eu”.
Chamado de Syntein, o conjunto de cinco vilarejos – Mawkaphan, Domskong, Jympait, Kenbah e Kenmynsaw – está localizado no interior longínquo do estado indiano de Meghalaya, bem longe do mundo moderno. No caminho, a estrada termina abruptamente e dá lugar a uma pequena trilha coberta de pedras sobre a qual é quase impossível caminhar. Em seguida, surge uma perigosa ponte suspensa, uma estrutura vacilante de ferro e madeira sob a qual se estendem 70 metros de absoluto vazio. Finalmente, podem-se ver os vilarejos. Parecem estar construídos uns sobre os outros, sendo que o mais distante se encontra ao pé de uma enorme montanha, muito próxima da fronteira entre Índia e Bangladesh. Do primeiro vilarejo ao último, leva-se uma hora e meia de caminhada morro abaixo. “É muito difícil chegar a Syntein e, por isso, poucas pessoas vêm até aqui”, diz Protik Roy Malngiang, o “rei assistente” do município de Mawsynram.
Segundo uma lenda local, os fundadores de Syntein se esconderam há 200 anos nessa área remota para escapar da destruição da guerra. A ponte suspensa continua sendo a única ligação entre eles e o mundo exterior. “Aquilo que chamam de estrada (a trilha coberta de pedras) foi construída em 1973”, diz Sanphrang Marbaniang, o líder do vilarejo de Mawkaphan, que trabalha como motorista para oficiais do governo e volta para casa aos fins de semana. “A estrada nunca foi aplainada ou pavimentada”.
Prática incomum
Foi o isolamento que deu à região sua subcultura única, da qual os parteiros do sexo masculino são apenas uma parte. “Não temos outra opção, temos de ser autossuficientes”, diz Sanphrang, que também é parteiro. “Cada vilarejo tem 400 habitantes, mas não há sequer um único hospital que atenda às suas necessidades”. Até hoje, leva-se cerca de duas horas para transportar um doente ou uma mulher grávida até um hospital em Mawsynram. E já que os veículos não têm acesso aos vilarejos, o caminho tem de ser percorrido a pé. Os aldeões têm de confiar no tradicional kobiraj (médico local) para as doenças mais corriqueiras, ossos quebrados, deslocamentos nos ombros e coisas parecidas. E em parteiros como Ialam, para que suas crianças nasçam com segurança.
A tradição dos homens parteiros intriga os antropólogos. “É uma prática muito incomum, algo de que eu nuncatinha ouvido falar em lugar algum. Eu li sobre o assunto pela primeira vez há alguns anos, em um artigo publicado em uma revista da North East Network, uma organização focada em estudos femininos”, diz TB Subba, chefe do departamento de antropologia da Universidade de North Eastern Hill, em Shillong.
O fenômeno levanta uma série de questões. Como podem os homens ter se incumbido de uma tarefa que por várias gerações esteve firmemente associada às mulheres em todo o resto da Índia? Levando-se em contaas inibições que levam até mesmo as indianas das áreas urbanas a evitar os ginecologistas do sexo masculino, como podem as mulheres de Syntein deixar que os homens compartilhem de um dos momentos mais íntimos e pessoais de suas vidas?
Hasina Kharbhih, uma ativista cuja ONG – a Impulse –, que atua no nordeste indiano nas áreas de proteção à criança, ao combate ao tráfico humano e à sobrevivência no meio rural, teve uma impressão parecida quando visitou os vilarejos pela primeira vez, há 17 anos. “Eu tinha vindo para começar um projeto com as mulheres da região”, conta. “Foi então que eu vi dois partos serem realizadospor homens. Aquilo aguçou minha curiosidade, e resolvi tentar descobrir se se tratavam de casos isolados ou se aquilo era uma prática regular”. Depois de conversar com algumas das mulheresda aldeia e fazer uma pesquisa mais detalhada, ela percebeu que a tradição fazia parte da vida cotidiana daquela sociedade havia séculos, e que era uma particularidade distintiva do conjunto de vilarejos. “Pode parecer uma novidade para mim e para você, mas para eles isso é um modo de vida que vem sendo praticado há mais de 200 anos”, complementa.
Tarefa séria
Depois de caminhar um pouco por Mawkaphan, encontramos um grupo de mulheres fofocando enquanto trabalham em peças de artesanato e cuidam de seus filhos. Elas fazem silêncio quando percebem a presença dos estrangeiros. A maioria delas é extremamente tímida, sequer nos olham diretamente. Depois de alguns minutos de conversa fiada, algumas se abrem. A mais extrovertida se chama Landa. É uma mãe de 40 anos, tem nove filhos e uma explicação própria para o fenômeno dos homens parteiros.
Por muitos séculos, segundo ela conta, as mulheres nunca puderam ir além das áreas periféricas dos povoados. Aventurar-se para além delas – fosse para conseguir folhas de louro, pimenta ou bambu, nas florestas, ou para vender peças artesanais – era uma atividade exclusivamente masculina, bem como toda e qualquer outra tarefa consideradaséria ou perigosa. “E o que poderia ser mais sério e perigoso do que a realização de um parto? É uma questão de vida ou morte”, diz Landa. “As mulheres não seriam capazes de lidar com essa enorme responsabilidade. Os homens estão muito mais adaptados para resolver situações perigosas e complicadas. Nós nos contentamos em fabricar chapéus e cestos de bambu”.Pergunto se elas não se sentem incomodadas com a presença dos homens durante o parto. Ela parece confusa, como se isso nunca lhe tivesse ocorrido antes. “Por que nos sentiríamos?”, indaga.
Nenhum dos parteiros tem qualquer treinamento formal, mas sua proficiência ainda assim é notável – nos últimos anos, cerca de 95%das mulheres grávidas da região deram à luz com sucesso. As habilidades são ensinadas de geração para geração. “Mas não é apenas o pai que ensina ao filho. Qualquerum que pareça ter talento e uma inclinação natural para aprender pode procurar um parteiro mais velho como tutor”, diz Hilda Disiar, outra mulher do grupo.
Hoje em dia, Phromen seincumbe da tarefa de ensinar a arte à próxima geração de nong tyn ksa ksums. Com cerca de 50 anos, ele é considerado o mais talentoso de todos os parteiros dos cinco vilarejos. “É parte da nossa cultura disseminar o conhecimento, e não apenas guardá- lo para si”, diz Phromen, que perdeu a conta do número de bebês que já ajudou a nascer ao longo dos anos.
Faço a Ialam e Sanphrang a mesma pergunta que fiz às mulheres: há algum constrangimento em fazer parte de um momento tão pessoal na vida de uma mulher? “Na verdade, não. A única coisa em que pensamos é que temos que salvar vidas. É algo que exige muito de nós e normalmente tiramos folga no dia seguinte a um parto”, diz Ialam, que também ajudou seu filho mais novo a nascer. Cada parto realizado é o começo de um vínculo que durará a vida inteira. Isso é evidente no modo como os nong tyn ksa ksum são tratados pelas crianças, que puxam suas camisas, pregam-lhes peças e brincam com eles o tempo todo. “Cada criança que você traz ao mundo é especial. Não dá para não se sentir abençoado por ser parte de um processo tão bonito”, diz Ialam.
Tradução Henrique Mendes
Texto publicado originalmente na revista Open
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