Em algum lugar da planície de Shomali, a uma hora de carro de Cabul, em meio a uma paisagem verdejante recortada pelos raios de sol, Salim Shaheen está de pé, com os tornozelos afundados na lama, estimulando dois homens atracados dentro de um riacho. “Briguem rapazes, briguem”, pede ele, numa voz que quase dói de tão rouca, mas que chega mais longe do que com um megafone. Os golpes se sucedem, e Shaheen vai num crescendo. “Eu imploro a vocês, por amor ao cinema, batam com força, força, bata nele como um afegão, cara, não como um estrangeiro maricas.” Finalmente, com um sonoro soco na mandíbula, o ator atira seu colega na água, com um “chuá” dramático e poderoso que encharca quase toda a equipe de produção encolhida ao redor deles, e quase molha a câmera. A equipe e a multidão de curiosos explodem em aplausos, e Shaheen caminha até dentro da água para examinar e elogiar o rosto socado. “Olha só como está bonito, behenji”, brada ele para mim, no outro lado do riacho, chamando-me de “irmã”, em híndi. “Não é como em Mumbai, onde eles só fingem se bater. Veja como a gente faz filmes no Afeganistão.”
Essa última frase é um tema recorrente nas conversascom Salim Shaheen, um dos principais heróis, diretores e produtores de cinema do Afeganistão. Corpulento, bombástico e com energia suficiente para alimentar uma pequena central elétrica, Shaheen parece à primeira vista um improvável candidato a ídolo nacional. Mas, para toda uma geração de afegãos que assistiu aos seus filmes cheios de sangue e ação, ele é, por excelência, o herói de dhishum-dhishum – termo indiano, como o “zing-pow” em português, para indicar filmes de lutas estilizadas; o herói hiperbólico, de punhos cerrados e arma em riste, que canta músicas, pega a mocinha e surra o vilão – tudo na melhor tradição dos filmes masala (que mistura diversos gêneros) em idioma híndi nas décadas de 1970 e 80. E, embora nos últimos anos ele tenha passado a ostentar nos seus filmes uma bizarra coleção de chapéus para disfarçaro recuo da sua cabeleira, e assuma o papel de tio ou irmão mais velho da heroína em vez de ser o protagonista, sua presença continua sendo o pivô em torno do qual gira o enredo, e ele ainda é inegavelmente esse ser tão raro e maravilhoso – o astro de cinema afegão.
Fotos na parede
Como na maioria dos outros lugares, o cinema afegão se compõe de várias vertentes: entretenimento popular, drama familiar, filmes de arte. Shaheen, que trabalha em dari – uma variação do persa falada por quase metade da população (principalmente no norte, oeste e centro do país) –, é um dos mais veteranos nesse jogo. Mas ele continua sendo apenas parte de uma cena maior e diversificada, que inclui produções da estatal Afghan Film, ousados longas experimentais de jovens afegãos, os populares filmes em idioma pashto feitos em Jalalabad e tambémcomentários sociais com alta preocupação estética, como Osama, ganhador do Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira. Nessa paisagem de efervescência e exploração de oportunidades, Shaheen ocupa um nicho próprio e muito particular.
Eu o conheci na exibiçãoreservada de um novo filme na sua produtora. Para entrar na casa, passo diante de uma parede coberta de fotos nas quais Shaheen aparece posando com praticamente todo astro de cinema, de TV ou ator coadjuvante que já tenha algum dia surgido numa tela indiana. O público da sessão, segundo me dizem, inclui funcionários e assessores governamentais de alto escalão, alguns com suas equipes de guarda-costas.
Ficamos sentados em um pátio, assistindo à projeção em uma parede branca. O fi lme é antecedido por vídeos de Shaheen dançando com uma jovem heroína, sob a trilha sonora de velhos números de Manoj Kumar, um ícone de Bollywood. Embora o filme seja todo em dari, não preciso de legendas para acompanhar um enredo tão familiar. Num momento crucial do fi lme, a luz do projetor ilumina os rostos da plateia, e vejo os guarda-costas assistindoboquiabertos e fascinados, apoiando-se despreocupadamente nas suas armas. Depois do filme, há um lauto jantar, com montanhas depulao e kebabs, servido pelos atores do fi lme. Quando estou de saída, Shaheen solicita uma foto ao lado dos meusacompanhantes. Na minha visita seguinte, essa foto está na parede, junto com as de todos os astros do cinema.
Claramente, a rapidez é essencial para acompanharSalim Shaheen. Ele fala constantee velozmente, num hindustâni que deriva mais dos diálogos fílmicos que ele decorou do que de qualquer léxico real, com frequentes berros e ordens para o enxame de pessoas que zune incessantemente ao seu redor.“Eu trabalho o tempo todo, é um hábito para mim, como comer ou beber. Mesmo conversando com você estou pensando no que vou rodar amanhã. Sou um ashiq, um apaixonado pelo meu trabalho. Como o mestre Dev Anand, eu nunca descanso”, ri ele, na primeira de muitas comparações com os deuses indianos das telas. Mas o primeiro paralelo, o ídolo máximo, é sempre Dharmendra, “Dharma ji”, o “pai indiano” de Shaheen. “Meu nome é Salim Deol”, diz ele, entregando um cartão de visitas com uma foto em que aparece com o braço enlaçando Dharmendra e o outro fi lho dele, Sunny Deol. Viro o cartão. No verso está Shaheen com Amitabh Bachchan. “Todos eles me dão izzat, prestígio”, diz ele, “mas é pelo Afeganistão”.
Herói a caminho
O caso de amor de Shaheen pelo cinema começou, segundo conta, ainda no ventre da mãe. “Mesmo na barriga dela, eu já lutava. Minha mãe dizia: ‘Um herói está a caminho’, e eu nasci”, narra ele grandiosamente. Seu primeiro contato com os filmes aconteceu aos oito anos, quando assistiu Lalkaar, com Dharmendra e Rajendra Kumar, no Cine Baharistan, em Cabul. “No final do filme, quando Dharmendra morreu, eu chorei até chegar em casa e disse à minha mãe: ‘Não deixe de meacordar amanhã, preciso ir ao funeral dele’”.
Anos depois, dirigindo uma locadora de vídeo, Shaheen fez seu primeiro fi lme, gravado em quatro dias e editado em aparelhos de videocassete. “Fizemos um cartaz em preto e branco, comigo segurando uma arma, com sangue na minha cabeça. Quase imediatamente, as pessoas chegavam e diziam: ‘Me dê esse filme’.” Faltavam dois dias para o Eid, a festa islâmica que marca o fim do ramadã. Farejando uma oportunidade, Shaheeen fez dez cópias e cobrava 500 afghanis por três horas de locação – quantia astronômica paraa época. “Depois do feriado, contei o dinheiro. Tínhamosfaturado quase 200 mil afghanis em quatro dias. Eu falei: isso é um bom negócio, irmão. Vamos fazer fi lmes.”
Shaheen começou a realizar fi lmes em 1984, e não parou mais. Aprendendo os macetes pelo caminho, ele é um cineasta inteiramente autodidata, com uma sagaz capacidade de perceber os gostos do seu público, e um inabalável amor pela publicidade.
Conforme o Afeganistão continuava a mergulhar na guerra civil, Cabul, que antes estava relativamente afastada dos combates, acabou na linha de frente. De 1992 a 96, enquanto a capital era reduzida a pó por facções beligerantes de mujahideen, Shaheen continuava trabalhando em seus fi lmes. Em 1993, um foguete atingiu sua produtora e matou oito membros do elenco que esperavam no quintal, incluindo uma atriz e uma menina de seis anos. Shaheen estava no andar de cima, preparando o café da manhã do grupo. “O tipo de problemas que enfrentávamos para fazer fi lmes naqueles anos é impossível de explicar”, diz ele, com rara contenção. Mas ele conseguiu concluir aquele fi lme, e fez outros.
Exílio no Paquistão
A produtora de Shaheen continuou funcionando até que o Taliban assumisse o poder, em 1996, e fechasse os cinemas, proibindo a exibição de fi lmes e reprimindo a TV e outras formas de entretenimento. Naturalmente, ele tem uma história emocionante do encontro do herói (ele) com os malvados. “Os talibs viram meus pôsteres com as armas – eles acharam que eram de verdade. Dois deles chegaram e me disseram para lhes dar as armas”, conta ele. “Eu falei: ‘Tudo bem, esperemaqui, vou pegar a munição’. A casa tinha dois portões. Escapei pela outra porta, e os deixei esperando no primeiro portão. É esse tipo de herói que eu sou”, ri.
Após essa saída esperta, Shaheen fugiu para o Paquistão, onde passou vários anos exilado. Mas voltou a fazer fi lmes, por sua autoestima e pelo dinheiro, já que “era só o que sabia fazer”, afi rma. Os fi lmes que ele fez no Paquistão incluem Shikast e Ishq (“a derrota do amor”), um dos maiores sucessos da suacarreira, onde ele interpreta um afegão exilado. Depois da derrubada do regime do Taliban, em 2001, Shaheen voltou a Cabul para reabrir sua produtora. Hoje, ele estima ter produzido 103 fi lmes em quase 30 anos de carreira, mas, a contragosto, matiza esse número grandioso com o alerta de que ele “inclui documentários e imagens de arquivo”. Garante que faz três ou quatro filmes por ano, que não leva mais de 20 dias para rodar cada um, e que frequentemente trabalha em dois roteiros ao mesmotempo, para soltar um fi lme concluído a cada três ou quatro meses. Pergunto, em tom de brincadeira, se isso não faria dele o principal produtor de Cabuliwood, mas ele balança a cabeça com seriedade. “Não é Cabuliwood, é Besywood”, diz ele, num trocadilho com a palavra dari besood, um empreendimento que não dá lucros, algo sem utilidade, a situação de quemfi ca sem dinheiro, de estar a zero. “É uma ilusão o que fazemos, realizando algo a partir do nada.”
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Tradução: Rodrigo Leite
Publicado originalmente na revista The Caravan e reproduzido no número 02 da revista Samuel
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