De domingo a domingo, das sete da manhã às sete da noite, João Carlos da Silva cria histórias. Sem palavras, sua narrativa é moldada com a mais antiga das matérias-primas: o barro. Mas ao contrário do Primeiro Ceramista, não há descanso no sétimo dia para este alagoano de Capela. Artista popular, João tira do barro sua arte e seu sustento. E não há tempo para o ócio criativo quando se tem de pagar contas e colocar comida na mesa.
Aos 53 anos, casado e pai de três filhos, João modela o mundo que o cerca em bois-bumbás e cavalos marinhos de barro. Seu traço peculiar privilegia as curvas e os elementos do cotidiano nordestino. No lombo de seus bois e cavalos, crianças jogam futebol, pulam corda, rodam peões. Sorridentes, casais dançam guerreiro, tocam zabumba e se divertem em frente às coloridas casas de taipa dos pequenos vilarejos. Mas desse mesmo barro também brotam cortadores de cana descamisados e retirantes cabisbaixos, completando o complexo mosaico que compõem o dia-a-dia da região. “Quem vive da arte não pode fugir da realidade”, explica João.
De Maravilha às Alagoas
Criança humilde, filho de pequenos comerciantes, era do barro que criava seus brinquedos: cavalos, bois, vaqueiros e cangaceiros. Na escola estadual Edite Machado, que frequentou até a oitava série, veio o primeiro reconhecimento: a professora de história ficou impressionada ao flagrar no caderno do pequeno João bandeirantes, índios e jesuítas numa réplica perfeita aos quadros que ilustravam o descobrimento do Brasil. Mas a primeira fama veio nos campos de barro batido, onde o menino desfilava sua habilidade no futebol, recebendo dos colegas o apelido de João Maravilha, em homenagem ao atacante flamenguista imortalizado por Jorge Ben Jor.
E foi como João Maravilha que assinou suas primeiras peças artísticas no início da década de oitenta. Autodidata, suas únicas referências eram as obras de outros artistas populares que circulavam pelas feiras locais, principalmente as do Mestre Vitalino, além dos livretos sobre história da arte lançados pela editora Ediouro que vez ou outra chegavam às bancas de Capela. De início, João vendia seus quadros e esculturas de barro apenas para tentar engordar o orçamento familiar. Mas em 1987, após perder o emprego no supermercado da cidade, decidiu que viveria exclusivamente da arte. Com suas obras a tiracolo partia toda semana para a feira de artesanato de Maceió. Numa dessas investidas, um turista se encantou por seus quadros e decidiu levá-los para uma mostra em Campinas, interior de São Paulo. “Mas Maravilha não combina com um artista popular do Nordeste” disse o curador paulista, “melhor te chamar de João das Alagoas”.
João não se opôs, para ele importava vender suas peças e garantir a feira do mês. Mas a mostra repercutiu, as portas se abriram para suas esculturas, encomendas começaram a surgir e ele resolveu adotar o novo nome, “Graças a Deus esse nome pegou, porque esse nome João das Alagoas me ajudou muito… Eu acho que se fosse outro nome não teria me ajudado tanto não”, conta o artista.
Guerreiros no céu
Hoje o nome de João das Alagoas é um dos mais conhecidos da arte ceramista brasileira. Seus bois-bumbás e cavalos-marinhos foram premiados por diversas ocasiões e podem ser vistos em galerias de Maceió, Recife, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre, além de serem expostas também no exterior, em museus na Argentina e México.
“Gostaria de fazer grandes painéis de barro”, revela o artista ao ser perguntado sobre seus anseios atuais, “uma coisa meio surrealista, que juntasse o passado e o presente, bichos e árvores que não existem mais, sonho e realidade, guerreiros dançando no céu…” O olhar de João se perde por um momento enquanto parece esculpir em silêncio a futura criação. “Mas não tenho condições”, revela resignado enquanto aponta para o forno improvisado e caindo aos pedaços onde fabrica suas peças. Mesmo com todo o sucesso e reconhecimento obtido ao longo de 30 anos de carreira artística, João ainda se vê obrigado a superar a cada dia os desafios que se colocam entre a necessidade de subsistência e a inquietude da criação artística.
A única ajuda que recebe do poder público é o galpão que serve de ateliê, cedido pela prefeitura de Capela há 10 anos. Mas todos os custos com a manutenção do local, além da aquisição de lenha e barro, ficam a cargo do artista. Um gasto que chega a R$ 3 mil anuais. “Eu consigo tirar uns R$ 13 mil por ano com a venda das minhas obras, então faça o cálculo aí quanto me sobra por mês”, expõe o ceramista.
João explica que, ao desenvolver os traços característicos de seus bois e cavalos, criou uma identidade que o diferencia de outros artistas e faz com que suas obras sejam reconhecidas por si sós. Mas essa identidade acaba, paradoxalmente, limitando sua criatividade, já que ao encomendar uma nova peça, seus clientes querem algo semelhante ao que já viram em uma galeria ou mostra de arte, “muitos deles pedem pra eu copiar uma peça, fazer outra igual, e eu explico que não posso fazer isso, que não consigo repetir uma obra, fazer do mesmo jeito”, diz o ceramista, “mas como são eles que pagam, não posso inventar muito. Eles não iam aceitar se eu colocasse um cavalo sem cabeça, por exemplo”.
Dos canaviais às jaqueiras
“É que tem gente que não entende que artista cria, não copia”, intervém a jovem sentada a poucos metros de João das Alagoas. Trata-se de Maria Luciene da Silva Siqueira, mais conhecida como Sil, uma das discípulas de João e “a maior revelação de ceramistas nos últimos 15 anos”, de acordo com Roberto Rugiero, especialista em arte popular brasileira e marchand da renomada Galeria Brasiliana. Rugiero completa: “é uma artista de renovação criativa, uma coisa rara. Suas peças não se repetem. A cada ano ela está melhor”.
Sil nasceu em Cajueiro/AL no ano de 1979, mas ainda criança mudou-se com seus pais e 13 irmãos para a zona rural de Capela. Aos oitos anos começou a cortar cana e só parou aos catorze, quando se casou. Aos vinte anos, sem nunca ter frequentado uma escola, com três filhos e o esposo desempregado, decidiu que precisava encontrar uma nova fonte de renda para a família. Foi então que, numa oficina organizada pelo Sebrae estadual, conheceu o ateliê de João das Alagoas e, deslumbrada com suas obras de barro, resolveu se dedicar de corpo e alma ao ceramismo.
“Não foi nada fácil”, relembra Sil. Sem nenhum conhecimento artístico e tendo que conciliar os estudos com os afazeres domésticos, ela lembra que “não conseguia fazer nem uma bola. O João tinha muita paciência comigo e deixava eu levar o barro e as ferramentas pra casa. Demorei um mês para conseguir fazer minha primeira peça, um burrinho com um homem montado.”
A primeira venda não tardou. “Foram sete retirantes que eu vendi de uma só vez a R$ 5 cada. Queriam me dar R$ 3, mas eu não aceitei. Tinha dado tanto trabalho fazer que eu preferia não vender por tão pouco. Mas no final acabaram aceitando meu preço. Com os R$ 35 comprei um botijão de gás e roupa nova pros meus filhos”, lembra Sil.
Passados dez anos, Sil vende algumas de suas peças hoje em dia por R$ 3 mil. Jaqueiras e cajueiros ricos em detalhes são a marca registrada de suas obras, que contam com forte presença feminina em diversos tipos de situações e trabalho. São lavadeiras, pescadoras, camponesas, cortadoras de cana, retirantes, mães amamentando seus filhos, crianças brincando de amarelinha, casais namorando embaixo de jaqueiras ou nas janelas das casas de taipa. “Tudo o que eu crio, eu vivi”, diz Sil. Com a venda de suas obras já conseguiu comprar sua casa própria e colocar todos os seus filhos na escola.
Além de Sil, dividem atualmente o mesmo ateliê em Capela Leonilson Arcanjo, Maria “Nena” e Cláudio, todos discípulos do Mestre João, que nos últimos quinze anos já transmitiu seus conhecimentos a mais de cinquenta artistas locais e de outros estados. “Dou só as noções básicas de como lidar com o barro. São eles que criam sua própria identidade”, revela João das Alagoas.
A construção do artista
Mas se os ceramistas populares têm em suas mãos a capacidade de criação e produção de obras de arte a partir do barro, em suas mãos, todavia, não estão a distribuição e comercialização dessas mesmas obras. Nesse momento entram em cena dois novos atores, o atravessador e o galerista.
Os famosos bois de mestre João e as frondosas jaqueiras de Sil que saem do ateliê em Capela ao preço de R$ 3 mil chegam a ser vendidos nas galerias de arte ou lojas de decoração na Ponta Verde e Higienópolis, bairros de luxo de Maceió e São Paulo, por R$ 17 mil ou mais.
“Os galeristas constroem os artistas”, afirma Maria Amélia Vieira ao tratar da diferença abissal entre os preços cobrados pelos artistas e pelas galerias de arte. Dona da Galeria Karandash, localizada em Maceió, Maria Amélia desenvolve seu ponto de vista alegando que “a relação da galeria de arte com o artista popular é quase sempre justa. Não existe a consignação porque o artista vende seu trabalho. Imagino, talvez, uma obra do João das Alagoas tendo sido adquirida por R$ 3 mil e sendo comercializada por R$ 17 mil. O galerista tem gastos fenomenais para construir um artista”. Para ela, os verdadeiros “vilões” dessa história são os atravessadores, “pessoas que não têm espaços legalizados, exploram os artistas porque não estão interessados no crescimento nem na solidez de sua carreira. Só pensam nas vendas imediatas, no comércio”, denuncia Maria Amélia.
As encomendas dos galeristas e as compras dos atravessadores são a garantia de sobrevivência dos artistas, já que as feiras de arte popular, local ideal para a venda direta ao público, são raras e na maioria das vezes não proporcionam condições financeiras para aquisição de passagens e hospedagem. Some-se a isso o fato de muitos atravessadores, ao se aproximar uma nova feira, comprarem com antecedência as obras dos artistas, garantindo assim a exclusividade e o controle dos preços.
Sem os recursos e a rede de contato dos galeristas e atravessadores, João das Alagoas, Sil e os ceramistas capelenses não veem outra opção a não ser aceitar as condições impostas pelo mercado da arte. Afinal, eles bem sabem que a arte de viver da arte não é nada fácil.
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Publicado originalmente no site Brasil de Fato e reproduzido no número 02 da revista Samuel
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