Ainda hoje, em pleno século 21, é fácil se deparar com a cena. Nos arredores da Estação Central de Nova York em uma crua manhã de primavera, motoristas da UPS começam a se movimentar: um homem velho e esguio, oscilando e balançando a cabeça, dá socos no ar, para a esquerda e para a direita, quase acertando seu colega maior e mais jovem, que dobra os cotovelos como se estivesse obedecendo a um instinto: proteja o corpo, mexa os pés, esteja pronto para atacar quando o momento chegar. A brincadeira acaba quase tão repentinamente como começou, com os dois às gargalhadas.
Até os políticos gostam de se exibir com luvas de boxe, mostrando- se prontos a “lutar” por alguma causa. As luvas trazem à mente uma imagem conhecida: um quadrado estreito cercado por cordas; espectadores vorazes ao redor do ringue; e, nos cantos de cada lutador, assistentes velhos e enrugados com cotonetes atrás da orelha e um balde nas mãos. A cena enquadra uma estranha e brutal atividade humana que some da mente do público por longos períodos para ressurgir novamente quando uma luta ou um lutador volta a cativar nossa atenção.
Mas hoje em dia isso raramente acontece; poucos conseguiriam lembrar o nome de mais do que um ou dois boxeadores, e olhe lá. O boxe se tornou um esporte fantasma, há muito tempo desacreditado, mas ainda pairando sobre o inconsciente coletivo, recusando-se a desaparecer de vez. Houve um tempo em que as coisas eram diferentes. O boxe já esteve no centro da vida dos Estados Unidos, e sua trajetória se entrelaça com a história da nação.
Agência Efe
Muhammad Ali após nocautear o britânico Richard Dunn em 25 de maio de 1976, em Munique, Alemanha
Tempo da escravidão
Os primórdios do boxe nos Estados Unidos remontam ao tempo da escravidão, quando fazendeiros colocavam seus escravos para lutar e lucravam com as apostas. Um escravo liberto, Tom Molineaux, chegou a atravessar o oceano para lutar contra o campeão britânico, Tom Cribb – e provavelmente teria ganhado a luta naquele 1810, não fosse a intervenção dos torcedores desesperados de Cribb assim que Molineaux alcançou uma decisiva vantagem.
Mas somente com o surgimento de John L. Sullivan, o primeiro grande ídolo do boxe, o esporte realmente chegou aos EUA. Nascido em Roxbury, Massachusetts, em 1858, Sullivan lutou até alcançar riqueza e fama e foi rivalizado por poucos em sua época. Com sua bravura física e seu pavio curto, Sullivan se tornou um herói irlandês-americano e um símbolo de vigor masculino para uma nação que, vivendo uma revolução industrial e importantes mudanças em seu padrão de vida e modo de trabalho, temia que seus jovens amolecessem.
No fim do século 19 e início do século 20, o boxe ainda era ilegal. Para evitar problemas com a lei, Sullivan lutou na propriedade rural de um lenhador no Mississippi, em um lugar revelado somente para os verdadeiros interessados no esporte. Mas antes que a carreira de Sullivan acabasse, o boxe já tinha se mudado para as cidades, onde estavam as academias, os agenciadores, os empresários.
O centro de gravidade do boxe, especialmente nosEUA, rapidamente se tornou a categoria dos pesos-pesados, cujo campeão era visto pelo público como símbolo da masculinidade americana. Em 1908, quando Jack Johnson, um homem negro, ganhou o título, ficou claro o quanto esta distinção era importante para os americanos. Johnson criou polêmica antes mesmo que a luta final do campeonato chegasse ao fim. Enquanto ele dava uma surra no campeão soberano Tommy Burns, a polícia invadiu o ringue para interromper a luta, e as câmeras que a filmavam foram desligadas para privar o mundo da visão de um negro nocauteando um branco. Jack London, escrevendo à beira do ringue, imediatamente conclamou o campeão aposentado James J. Jeffries para voltar ao ringue e “tirar esse sorrisinho do rosto de Johnson”.
Durante o longo reinado de Johnson, e por algum tempo após o seu fim, o futuro do boxe era incerto. A cidade de Nova York ainda vacilava e a maioria dos estados ainda proibia o esporte, que não contava com uma figura central e unificadora. Tudo mudou devido a duas forças sísmicas: a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial e Jack Dempsey. As Forças Expedicionárias Norte-Americanas boxeavam ostensivamente, como lazer e como treinamento, em seus acampamentos na França, e o general John Pershing exaltava os benefícios do esporte para os jovens.
No verão seguinte ao fim da guerra, Dempsey irrompeu em cena, conquistando o título dos pesos- pesados em um seco 4 de julho em Toledo, Ohio. Dempsey inauguraria a era moderna dos esportes nos EUA e se tornaria um fator central na incipiente cultura das celebridades. Ele lutava com uma ferocidade nunca vista antes – demolindo oponentes muito maiores do que ele em poucos minutos, recebendo apelidos como “o matador de gigantes” e despertando um frenesi entre o público. Em 1921, a luta entre Dempsey e o herói de guerra francês Georges Carpentier levou mais de 80 mil fãs a um vacilante ringue de madeira feito especialmente para a ocasião em Jersey City. Foram arrecadados 1,7 milhões de dólares em ingressos – o primeiro milhão da história do boxe – e o evento foi notícia no mundo todo.
Era de ouro
Aquela afluência inédita de público e dinheiro lançou o boxe em sua era de ouro, que duraria até os anos 1950. Um ano depois do título de Dempsey, o estado de Nova York legalizou o esporte de vez, e durante os anos 1920 as leis contra o boxe foram caindo em todos os estados. Nova York rapidamente se tornou a capital do esporte. Em 1926, sua contenda com Gene Tunney na Filadélfia atraiu o número recorde de 120 mil fãs, que assistiram debaixo de um temporal a vitória de Tunney. O surpreendente resultado foi manchete da primeira página do New York Times.
Em 1935, começa o reinado de Joe Louis, que ganhou fama nacional em 1935 e sagrou-se campeão do campeonato de pesos-pesados dois anos depois. Louis foi o primeiro negro desde Johnson a conseguir competir pelo título, após uma longa trajetória para sair da pobreza e da privação social que os negros estadunidenses inevitavelmente viviam. No Yankee Stadium em junho de 1938, Louis enfrentou o alemão Max Schmeling,o queridinho dos nazistas. Eles frequentemente citavam sua vitória anterior sobre Louis como uma prova da supremacia ariana. Eis uma das surpresas da história: quase metade da população estadunidense – 60 milhões de pessoas – ouviu a transmissão no rádio e torceu pelo negro Louis. O locutor descreveu o que era provavelmente o exemplo supremo de um atleta executando uma performance sob pressão. E “executar” é a palavra certa: Louis acabou com Schmeling em menos de dois minutos.
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Nos primórdios da televisão, nos anos 1950, o horário nobre exibia lutas praticamente todas as noites da semana. Os fãs encontraram o sucessor de Louis em Rocky Marciano, um ítalo-americano de Massachusetts, que viria a se tornar o único campeão de pesos-pesados a se aposentar sem ter sofrido nenhuma derrota. Mas nada poderia ter preparado a América para os anos 1960 – ou para Muhammad Ali, uma figura tão polêmica quanto aquela década traumática poderia produzir.
Mesmo antes que ele passasse a se engajar politicamente, Ali, cujo nome original era Cassius Clay, se comportava como nenhum outro atleta americano antes dele, declarando ser o maior boxeador de todos os tempos e recitando versinhos medíocres prevendo o resultado de suas lutas. Absurdamente belo para um lutador, ele foi um arauto da emergente cultura jovem; venceu o título dos pesos-pesados em fevereiro de 1964, o mesmo mês em que os Beatles aterrissaram na América.
No mesmo ano ele anunciou sua associação ao movimento Muçulmano Negro e mudou seu nome. Em 1967, se recusou a ser enviado pelas Forças Armadas dos EUA para o serviço militar no Vietnã. Foi quando se tornou um pária, odiado por muitos fãs brancos e pelos comentaristas esportivos mais respeitados. Perdeu sua licença e foi banido dos ringues por três anos e meio. Somente nos anos 1970, quando pôde retomar o boxe, voltou a cativar fãs mais conservadores.
Pequeno ogro
Com sua habitual falta de modéstia, Ali previu que o boxe morreria depois que ele saísse de cena, mas na década seguinte à sua aposentadoria o esporte viveu sua última grande rodada. O interesse do público voltou-se novamente para os lutadores dos pesos mais leves. Esta mudança foi impulsionada por um talentoso boxeador de Maryland, Ray Charles Leonard. Articulado, gracioso e pouco dado a escândalos, ele foi Ali sem a política ou a teatralidade às vezes cruel. Nos anos 1980, Leonard e seus adversários formidáveis – Roberto Durán, Thomas Hearns e Marvin Hagler – se bateram em uma série de lutas que os fizeram multimilionários. E Leonard se mostraria mais hábil do que Ali em conservar sua fortuna e suas habilidades.
Na mesma época em que Leonard e os heróis dos pesos leves dos anos 1980 estavam finalizando suas carreiras, Mike Tyson surgiu como o próximo grande peso-pesado, e o boxe voltou a ter um grande nome em sua divisão de elite. A fama mundial de Tyson poderia ser comparada à de Ali. Jovem violento do Brooklyn, ele foi legalmente adotado pelo enigmático treinador e psicólogo do boxe Cus D’Amato, que viu um futuro campeão no pequeno ogro pré-adolescente e fez dele seu projeto pessoal. Sua previsão provou-se correta em 1986, quando Tyson, com apenas 20 anos de idade, tornou-se o lutador mais jovem a vencer um título de pesos-pesados.
Mas acontece que o garoto de voz suave com o soco mortal tinha demônios que ainda não tinham sido domados. À medida que sua fama e sua riqueza cresciam, Kid Dinamite, como era chamado pelos comentaristas, tornou-se Mike Tabloide. Seu casamento fracassado com a jovem atriz Robin Givens foi assunto de manchetes e acabou entre sombrios relatos de violência doméstica. Enquanto sua vida pessoal descarrilava, Tyson foi perdendo o foco no ringue. Ele não tinha a força de vontade e a habilidade de improvisação de Ali e perdeu seu título três anos depois de conquistá-lo. Pouco tempo depois, foi condenado por estupro e passou três anos na prisão.
Atração secundária
Com a queda de Tyson, o boxe completou sua transformação de assunto principal para atração secundária. Com as transmissões ao vivo, pela televisão, houve uma diminuição do público nos eventos. Além disso, teve de competir pela audiência televisiva com outros esportes. Mas outras razões podem ser responsáveis pelo declínio do boxe, como, por exemplo, as mudanças no gosto do público. No longo boom do pós-guerra, a prosperidade e a alta no padrão de vida criaram diferentes expectativas de lazer e entretenimento, assim como atitudes mais refinadas.
A corrupção e os escândalos endêmicos no boxe apagaram seu apelo popular e fizeram com que o esporte parecesse cada vez mais primitivo. Managers e promoters corruptos; rankings de lutadores compilados por organizações fraudulentas; denúncias de lutas arranjadas, juízes comprados, substâncias ilegais e luvas adulteradas no ringue – essas são algumas das razões pelas quais o público deixou de levar o boxe a sério.
No passado, o boxe viveu outros períodos de decadência antes que uma figura excitante – Dempsey, Louis, Ali, Leonard – o resgatasse. Se isso voltar a acontecer novamente, será graças ao lutador filipino Manny Pacquiao, de 32 anos. Ele venceu títulos em oito divisões, feito inédito até então.
O que importa em Pacquiao não são somente as suas conquistas, mas sim quem ele é: um herói nacional nas Filipinas e o mais admirável astro do boxe dos últimos anos. “Ele é nosso David contra Golias, nosso herói e portador do sonho filipino…”, disse a ex-presidente filipina Gloria Macapagal-Arroyo. Pacquiao é o tipo de figura que poderia levar o boxe de volta à sua antiga glória, se é que isso é possível. Os fãs do esporte adorariam que ele participasse em uma “super luta” como aquelas que Leonard lutou nos anos 1980. Há um óbvio oponente para esta batalha: Floyd Mayweather Jr, um boxeador defensivo brilhante que nunca sofreu uma derrota.
Se a luta realmente acontecer, será o maior evento do boxe desta geração.
Tradução: Carolina de Assis
Publicado originalmente na revista City Journal e reproduzido no número 02 da revista Samuel