“Por que eu tomo banhos, eu sou responsável pelo esvaziamento dos aquíferos?”
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #03: Alternativas verdes
Leia as outras matérias da edição nº 3 da Revista Samuel
Será que alguma pessoa sensata realmente acredita que a reciclagem teria contido Hitler, ou que a compostagem teria acabado com a escravidão ou estabelecido a jornada de trabalho de oito horas diárias, ou que cultivar sua própria fonte de energia teria libertado os prisioneiros da Rússia czarista, ou que dançar pelado ao redor de uma fogueira teria ajudado a implantar a Lei dos Direitos ao Voto de 1957 ou a Lei dos Direitos Civis de 1964 nos Estados Unidos? Então por que agora, com o planeta a perigo, tantas pessoas recorrem a estas “soluções” inteiramente pessoais?
Parte do problema é que nós temos sido vítimas de uma campanha enganosa sistemática. A cultura do consumo e a mentalidade capitalista nos ensinaram a substituir consumo pessoal por resistência política organizada. O filme Uma verdade inconveniente (An inconveniente truth, 2006) ajudou a alertar para as mudanças climáticas. Mas você percebeu que todas as soluções apresentadas tinham a ver com o consumo pessoal – troque suas lâmpadas, use menos o seu carro – e quase nada sobre retirar o poder das mãos das corporações, ou acabar com a obsessão por crescimento econômico que está destruindo o planeta? Mesmo se todos os habitantes dos Estados Unidos fizessem tudo o que o filme sugere, as emissões de carbono do país cairiam somente 22%. O consenso científico é que as emissões devem diminuir pelo menos 75% em todo o mundo.
Vamos falar sobre água. Ouvimos o tempo todo que a água do mundo está acabando. As pessoas estão morrendo e os rios estão definhando por escassez de água. Por causa disso, nós devemos tomar banhos mais curtos. Você percebe o absurdo? Porque eu tomo banhos, eu sou responsável pelo esvaziamento dos aquíferos? Bom, isso não é verdade. Mais de 90% da água consumida vai para a agricultura e indústria. O 10% que restam dividem-se entre uso municipal e, finalmente, seres humanos viventes. As pessoas (pessoas humanas e pessoas-peixes) não estão morrendo porque a água do planeta está acabando. Elas estão morrendo porque a água está sendo roubada.
Apoie a imprensa independente e alternativa. Assine a Revista Samuel.
Impacto ínfimo
Ou podemos falar sobre energia. O escritor norte-americano Kirkpatrick Sale resumiu bem: “Nos últimos 15 anos a história tem sido a mesma todos os anos: o consumo individual nunca vai além de um quarto do consumo total; a maior parte é comercial, industrial, corporativa, pelo agronegócio e pelo governo [ele esqueceu o consumo militar]. Portanto, mesmo se todos nós passássemos a usar bicicletas e fogões a lenha, isto teria um impacto ínfimo no consumo de energia, nas mudanças climáticas e na poluição atmosférica.”
Vamos falar sobre o lixo. Em 2005, a produção municipal de lixo (basicamente tudo o que é jogado na lixeira) per capita nos EUA era de aproximadamente 750 quilos. Digamos que você reduza isso a zero. Recicle tudo. Leve sua sacola de pano quando vai fazer compras. Use seus sapatos até a sola furar. Mas isso não é tudo, já que o lixo municipal inclui não só a produção residencial, mas também a de instituições públicas e escritórios. Desculpe, mas tenho péssimas notícias: o lixo municipal conta somente 3% da produção total de lixo nos Estados Unidos.
Quero deixar claro que não estou dizendo que nós não devamos viver modestamente. Eu mesmo levo uma vida simples, mas não faço de conta que consumir conscientemente (ou não usar tanto o meu carro, ou não ter filhos) seja um ato político poderoso ou profundamente revolucionário, porque não é. Mudanças pessoais não são equivalentes a mudanças sociais.
Desta forma é fácil perceber que toda ação envolvendo a economia industrial é destrutiva (e nós não podemos crer que painéis solares, por exemplo, sejam uma redenção; eles ainda requerem a extração de minerais raros e uma complicada infraestrutura de transporte ao longo de todo o processo de produção, e o mesmo pode ser dito de outras tecnologias consideradas “verdes”).
Tradução por Carolina de Assis
* Texto publicado originalmente na revista norte-americana Orion Magazine
NULL
NULL