Não importa o horário. Havendo brecha, Mujica sai sem ninguém ver, atropela a agenda presidencial e vai às ruas
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Da janela da Torre Executiva, a Praça Independência parecia um formigueiro. O funcionário público olhava esse vai e vem sacudido pelos sete ventos que costumam juntar-se em torno da fortaleza da Puerta de la Ciudadela. Mais além, tudo parecia calmo. Uma voz, no entanto, fez com que ele se voltasse para o aparelho de televisão ligado na grande sala. Uma notícia de última hora, gravada por um celular, ao vivo das ruas do centro de Montevidéu, mostrava o presidente José Mujica distribuindo folhetos. O funcionário tinha certeza de que ele estava numa reunião na sala presidencial. “Por onde ele saiu?”, murmurou enquanto aumentava o volume da televisão.
Em seguida, começou a fazer averiguações internas e solucionou o quebra-cabeças. Pepe tinha encomendado os folhetos a um amigo, dono de uma gráfica, depois agendou uma reunião com uma pessoa inexistente e que nunca chegou, combinou, na surdina, com seu motorista, uma escapada, como suas habituais saídas para almoçar um bife à milanesa em um dos tantos botecos da cidade, e escapuliu pelos fundos do edifício que Tabaré inaugurou antes das eleições, mas que ainda não está pronto. Em poucos minutos, Pepe transitava pela Avenida 18 de Julho, distribuindo folhetos contra a violência, surpreendendo a todos.
Preciso fazer alguma coisa, pensou o funcionário. E com bastante urgência. Imediatamente encaminhou alguns processos. Encontrou um projeto prestes a caducar, com orçamento que ainda não tinha sido executado, de uma parceria internacional, daquelas que antigamente geravam a indagação se era necessário doar ou devolver. Não importa, a faculdade de usar esses recursos se perderia, e ele não teve dúvida alguma: não era muito, mas dava para resolver o problema. Foi então que contratou um consultor para diagnosticar as fugas do presidente e elaborar um plano de controle e contingência.
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No final, o consultor terminou seu estudo e apresentou um relatório. O processo foi acelerado porque em poucos dias o presidente tinha cometido outra heresia. Foi o primeiro presidente em exercício a entrar no Hospital Vilardebó, ou, no mínimo, o primeiro a recorrer a ele em várias décadas. E pior, comentavam alguns, ele se identificava com os loucos, e lembrava seus anos de refém, quase sepultado nos quartéis, onde conversava com um rato e com bichinhos bem mais humanos do que a ditadura que o torturou e o encarcerou. E, aproveitando a ocasião, Pepe deixou uma mensagem de esperança para aqueles que o resto da sociedade faz questão de trancar para esconder e não para curar.
Aquele relatório do consultor continha um plano. Um tipo de sistema de alerta prévio que permitia detectar os movimentos autônomos do presidente Pepe. Não era muito ambicioso. Apenas era necessário contratar um novo funcionário exclusivo para essa tarefa. Como ainda havia alguns impedimentos com a aplicação do direito privado na função pública, o novo funcionário foi emprestado por meio de um contrato, na verdade, sobra de uma outra repartição pública.
Tudo andava bem até que aconteceu o inevitável. Não se sabe como, mas Pepe surpreendeu a todos mais uma vez, inclusive ao sigiloso guarda que tinha sido contratado. Outra brecha orçamentária permitiu somar mais um novo funcionário com a tarefa de vigiar.
Como o caso melhorou, mas voltou a sucumbir logo em seguida, recorreu-se a doações de empresários amigos da causa; muitos colaboraram com prazer, ainda que isso fosse pouco eficiente.
Dessa forma, o plano converteu-se em programa, e mais mão de obra foi agregada, além de equipamentos. Quando se obteve um grande número de incorporações, o funcionário público tomou a decisão de designar uma hierarquia com um azeitado sistema de ordens. Depois chegou a hora de estabelecer procedimentos, e, quando passou a funcionar como uma divisão, foram incorporados protocolos sutis de atuação e mecanismos de coordenação com outras divisões estatais.
Uma vez que Pepe continuava fugindo quase todos os dias, com alguma margem fora do protocolo, chegou-se à conclusão de que era necessário um novo ministério. O problema era como fazer para livrar-se do Conselho dos Ministros. A ideia não tardou em brotar.
A Lei de Participação Pública e Privada era a grande solução e permitia criar um órgão, sem limites, que operava como entidade privada. A insubstituível reestruturação finalmente chegou, ainda que sofresse muita resistência dos funcionários que já haviam obtido alguns privilégios, mas que graças a ela transformou os antigos diretores em gerentes e alguns outros de cargos de menor importância.
Pepe, no entanto, continuava aprontando e era capaz de chegar a lugares mais remotos e desconhecidos da nação e permitia que o enxame de microfones e câmeras fotográficas que o perseguem por todos os lados veiculassem tantas situações antes ignoradas; a confusão era que agora isso se mostrava como problemas de um Uruguai progressista, mas, obviamente, era uma confusão de muitos ou muitíssimos anos.
E tudo isso continuava preocupando muita gente. Alguns ficavam angustiados com as saídas do presidente que eram taxadas de “inócuas”. Outros entendiam o alerta pelas declarações sem forçar o passo e no meio da confusão.
Foi então que se passou a outra etapa. Aquela ideia original mínima tão desburocratizada tinha crescido tanto que passou, pouco a pouco, a incluir toda a população. Alguns altruístas se incorporaram como voluntários, porém outros garantiram o emprego, incluindo salário complementar. Uma burocracia azeitada apesar de não ser muito eficiente, enquanto cada um fazia o que se supõe que cada um deve fazer; restava ainda uma pendência: saber onde diabos andava o seu presidente.
Assim toda a população participava da tentativa de controlar um mandatário máximo que da mesma forma surgia onde menos se esperava, obstinado não apenas em saber qual o lugar ou quais pessoas, mas apaixonado em ver, tocar, cheirar, perguntar e escutar, ainda que não lhe faltem comentários disparatados e provérbios dos mais variados.
E assim andava a vida, com idas e vindas, altos e baixos, acertos e erros e inevitáveis problemas jogados em cima da mesa, e que geravam debates e polêmicas de todo tipo, um dia sim e outro também, incluídas as saídas incontroláveis de Pepe, aquelas das quais todo mundo falava, mas que ninguém podia prever. E foi assim até que um garoto sentado na beira da calçada revelou a todos, ao apertar no seu laptop o botão “play” para tocar uma música: “Tem um cara caminhando pela mesma rua que você”.
Tradução por Mari-Jô Zilveti
* Texto publicado originalmente na revista uruguaia Caras y Caretas
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