Durante a guerra suja argentina, foram mortas cerca de 5 mil pessoas na ESMA, conhecida por “Auschwitz argentina”
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É difícil descrever a dimensão do horror na ESMA (Escola de Mecânica da Armada Argentina). Alguns a comparam ao inferno de Dante pelo perturbador tratamento psicológico que os prisioneiros sofreram dentro deste centro de tortura e pelas cicatrizes eternas que ele deixou. Outros invocam uma comparação histórica, chamando-a de “a Auschwitz argentina”. Outros a consideram um símbolo — o maior e mais longevo centro de detenção operado durante a guerra suja argentina, a brutal campanha repressiva que eliminou entre 9 e 30 a mil pessoas. No total, estima-se que 5 mil pessoas desapareceram enquanto detidas na ESMA, que funcionou como uma prisão clandestina entre 1976 e 1983.
Em 2003, a Argentina abriu o livro de seu tenebroso passado, quando o Congresso anulou uma série de leis de anistia aprovadas em 1986 e 1987, abrindo o caminho para a instauração de processos contra os oficiais da ESMA, além de centenas de outros ex-oficiais militares em todo o país que ajudaram a manter 340 presídios clandestinos.
No dia 11 de dezembro de 2009, 16 oficiais do Grupo de Trabalho 3.3.2 da ESMA foram conduzidos à corte federal. As vítimas neste caso incluíam simpatizantes de esquerda, ativistas por justiça social e direitos humanos, jornalistas, membros da Igreja e até familiares que buscavam informações sobre desaparecidos. Os promotores alegavam que o Grupo de Trabalho transformou a ESMA em um centro de “sequestros, tortura e extermínio”.
No total, 19 oficiais foram acusados pelos crimes de sequestro, tortura e assassinato de 86 vítimas (três deles foram liberados por razões de saúde). Em seu discurso de abertura, Julio Alak, então Procurador-Geral e atual Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos da Argentina, afirmou que o processo ESMA era “transcendente”, devido ao número de militares acusados e ao seu simbolismo.
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Anjo da Morte
Em um dos mais conhecidos crimes do julgamento, os promotores alegavam que onze dos acusados se infiltraram, sequestraram e executaram doze ativistas pelos direitos humanos, do Grupo Santa Cruz. O protagonista deste caso é Alfredo Astiz, o “Anjo Loiro da Morte”, apelido recebido pelo visual pueril e cabelos claros.
Os promotores, baseados na ampla investigação realizada pelo jornalista Uki Goñi em seu livro Judas, sobre a infiltração de Astiz, afirmaram que ele adotou o pseudônimo Gustavo Niño e começou a frequentar as reuniões de familiares afirmando ter um irmão desaparecido. Entre 8 e 10 de dezembro de 1977, doze pessoas foram sequestradas em uma série de incursões em Buenos Aires, inclusive três Mães da Praça de Maio e duas freiras francesas que estavam se encontrando com as famílias.
O outro notório acusado neste caso foi Jorge Acosta, o “Tigre”. Os promotores alegavam que Acosta, chefe do setor de inteligência do Grupo de Trabalho 3.3.2, supervisionou as atividades de tortura da ESMA até 1979 e coordenou um “processo de recuperação”, selecionando um pequeno grupo de prisioneiros para colaborar com o regime. Alguns receberam pequenas tarefas, outros trabalharam analisando documentos e abastecendo a unidade de inteligência com informações sobre as divisões na esquerda argentina. E um “minigrupo” identificou alvos e participou de incursões e sequestros.
Nos anos 1980, o governo Raul Alfonsín ordenou a instauração de processo contra os comandantes militares. Em 1985, cinco dos nove membros das juntas foram condenados. Em seguida, os promotores começaram a descer na escala do comando militar. Quando chamado à corte militar em 1986, Acosta disse: “Fui um repressor porque minha consciência o pediu e meu posto hierárquico exigia. Ninguém pode sujar nosso nome e nossa honra.”
Anistias
Depoimentos como os de Acosta foram parte de uma aposta dos militares durante a transição para a democracia de que eles poderiam conquistar a aprovação do público a suas práticas durante a ditadura através de uma combinação de ameaça e propaganda. Em 1987, quando a retórica falhou, o Exército se rebelou e o governo foi forçado a aprovar uma lei de anistia que blindava oficiais de médio e baixo escalão. O alto escalão foi anistiado logo em seguida, em 1989 e 1990.
Ativistas pelos direitos humanos ficaram insatisfeitos com estes desdobramentos e continuaram a lutar por justiça durante toda a década de 1990. Através de uma exceção à lei de anistia, eles continuaram a entrar com processos civis, e casos esporádicos sobre sequestros de bebês foram julgados (centenas de crianças foram sequestradas e ilegalmente adotadas por famílias de militares. As Avós da Praça de Maio, um grupo de ativistas que busca as crianças desaparecidas, conseguiu identificar 99 delas até o ano de 2009).
Em 1998, promotores instauraram um processo pela “apropriação sistemática de bebês”, e novamente indiciaram alguns dos mais altos oficiais militares, inclusive Acosta, que foi acusado de operar uma maternidade dentro da ESMA. Estes casos, que tiveram muito destaque, mantiveram a questão dos direitos humanos na mídia, e sustentaram uma luta de décadas para acabar com a impunidade.
Em 2003, pouco depois de ser empossado, o presidente Nestor Kirchner fez dos direitos humanos um dos pilares de sua nova administração. Ele fez aprovar uma lei que anulava as leis de anistia, reabrindo casos que tinham permanecido abandonados por quase duas décadas, inclusive o processo ESMA. Cristina Kirchner, sua esposa, se tornou presidente em 2007 e desde então tem mantido a política de direitos humanos estabelecida por ele.
Mas o caso se enfraqueceu nos estágios pré-julgamento. Participantes e observadores citavam uma série de razões — o sistema judiciário argentino, a resistência ideológica de alguns juízes, a parca investigação, contendas legais e processuais, tudo teria contribuído para a demora.
Na véspera do início do julgamento, Astiz e Oscar Montes, ex-chefe das Operações Navais durante a ditadura, demitiram seus advogados em uma aparente tentativa de atrasar a abertura dos trabalhos. A corte rejeitou o pedido de adiamento da data inicial, que já tinha sido postergada duas vezes.
Volver a matar
Os advogados de defesa afirmaram que o julgamento era inconstitucional e violava as leis que proibiam ações criminais retroativas. Sustentaram que a anistia de 1987 não podia ser revogada. A Suprema Corte, entretanto, rejeitara o mesmo argumento em 2005, sustentando que crimes contra a humanidade como tortura perpetrada pelo Estado não podem ser anistiados, perdoados ou sujeitos a estatutos de limitação.
Os réus, então, entraram no tribunal em 11 de dezembro de 2009. Oscar Montes, ex-chefe das Operações Navais e o mais velho dos acusados, permaneceu em uma cadeira de rodas durante a audiência. Mais alto oficial entre os réus, ele respondia ao maior número de acusações, assim como Manuel Jacinto Garcia Tallada, que ocupava o posto imediatamente abaixo de Montes.
Alguns pareciam indiferentes, como Ricardo Miguel Cavallo, que tinha sido preso no México em 2000 sob ordens do juiz espanhol Baltasar Garzón, sob o princípio de jurisdição internacional, e em seguida extraditado para a Espanha. Cavallo foi acusado de perseguir e sequestrar suspeitos que eram levados à ESMA.
Outros, como Juan Carlos Rolon, adentraram arrogantes, mandando beijos para os poucos partidários dos militares sentados na galeria superior. Os promotores alegavam que Rolon era um dos oito réus que faziam parte dos acusados de torturar prisioneiros e se apoderar de objetos roubados. Ele também é suspeito pelo sequestro e assassinato do jornalista Rodolfo Walsh, um dos primeiros a reportar os abusos da ditadura.
Durante os procedimentos, Astiz, vestido com calça jeans e pulôver puído azul, segurava um livro, mas não o abriu em nenhum momento. Quando os juízes encerraram os trabalhos do primeiro dia de julgamento, um grupo de ativistas pelos direitos humanos começou a cantar: “Terroristas!”. Enquanto era escoltado para fora da sala, Astiz olhou para os manifestantes do outro lado da parede de vidro à prova de balas. Sem expressar nenhum remorso, mostrou o livro que guardara durante toda a tarde, em uma provocação aos ativistas. O título: “Volver a matar”.
Tradução por Carolina de Assis
* Texto publicado originalmente no site norte-americano Truthout
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