Em 1913, leis racistas fizeram com que famílias africanas perdessem suas terras; a luta é pela restituição
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Em 1994, quando a África do Sul tornou-se uma democracia, 70% de suas terras aráveis — aproximadamente 85,2 milhões de hectares num total de 122,5 milhões — eram propriedade de 60 mil agricultores brancos que empregavam mais de 1 milhão de trabalhadores negros e suas famílias, e que então enfrentavam uma situação de insegurança quanto à posse. Além disso, estimados 1,2 milhão de negros — pequenos proprietários e agricultores de subsistência — haviam ocupado terras nos territórios antigamente conhecidos como bantustões.
Como diz Ruth Hall, pesquisadora-sênior do Plaas (Instituto de Estudos Agrários, Fundiários e da Pobreza), na Universidade do Cabo Ocidental, que tem escrito e comentado amplamente sobre a reforma agrária e fundiária, essa é uma questão complexa. “Foi uma escolha na década de 1990 que a Comissão da Verdade e Reconciliação não iria lidar com terras, e que as terras seriam tratadas numa comissão para a restituição.” A questão que ela levanta é se já se estabeleceu esse “vínculo entre terra e reconciliação”, e se é possível implementar uma reforma agrária sem reverter a história. Existe uma alternativa?
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A Constituição da África do Sul concedeu o direito de restituição dessas propriedades a pessoas e comunidades que foram privadas de suas terras depois de 19 de junho de 1913, como resultado de leis ou práticas racialmente discriminatórias. O governo se esquivou da expropriação direta e implementou o princípio altamente polêmico da compra e venda consentidas. Os reclamantes tiveram até dezembro de 1998 para apresentar uma solicitação de restauração à Comissão de Reivindicações Fundiárias (LCC, na sigla em inglês).
Cerca de 75 mil solicitações envolvendo 1,5 milhão de pessoas foram processadas até agora. Estima-se também que mais de 70% de todas as solicitações apresentadas eram urbanas, o que deixaria menos de um terço das reivindicações em áreas rurais. Cifras recentes da LCC indicam que, até outubro de 2009, restavam mais de 4.200 reivindicações de terrenos rurais em aberto.
O argumento apresentado pelos atuais “proprietários” da terra é que a posse representa nove décimos da lei, ao passo que os “despossuídos” declaram simplesmente: “Não é sua, é nossa”. Qualquer discussão sobre restituição fundiária e reforma agrária deve levar em conta esses pontos de vista divergentes, e perguntar se existe alguma compensação que seja adequada para um erro histórico. A resposta a isso exige pesar os erros do passado contra o desenvolvimento do capital social, primariamente no sentido de oferecer segurança alimentar e mitigação da pobreza.
Compra e venda
Na exibição em 2010 de um documentário intitulado Terra Prometida, dirigido pelo cineasta radicado nos EUA Yoruba Richen, o debate posterior incluiu, entre outros, Richen e o presidente da comissão ministerial para desenvolvimento e reforma agrária, Stone Sizani. Ruth Hall foi a moderadora.
Terra Prometida acompanha os esforços de duas comunidades negras para recuperar terras de proprietários brancos. Foi o processo da família Molamu contra Hannes Visser que motivou maior polêmica. A fazenda de Visser foi expropriada. Ele pediu 3 milhões de randes (R$ 723.000), mas teve de aceitar 2 milhões. Os Molamus, que hoje moram em Soweto, pretendem estabelecer uma propriedade cooperativa conforme as novas leis fundiárias que permitem que comunidades grandes lucrem coletivamente com propriedades recém-adquiridas.
O consenso da plateia, majoritariamente formada por alunos da Universidade do Cabo Ocidental, foi de que as pessoas que estavam pedindo a devolução das terras não estavam dizendo que desejavam “fazer A, B, C e D”. Sua reivindicação era mais fundamental. “Antes e acima de tudo, eles querem a terra deles de volta, sua terra ancestral, sua dignidade”, disse um participante. “Então, não podemos julgar a reforma agrária pelo fato de que as pessoas não realizaram e não vão realizar o que o último proprietário estava fazendo.”
Um participante perguntou: “É realmente justo pegar uma fazenda produtiva, que gera renda, e dá-la a uma família de Soweto que nunca a viu, mas que tem uma reivindicação de restituição fundiária? Não seria melhor indenizá-la com uma certa quantia e deixar o fazendeiro seguir em frente?”
Sizani discordou: “Você não pode começar dizendo que o local é administrado adequadamente pelos atuais proprietários. Você precisa perguntar como os atuais proprietários conseguiram a propriedade da terra”. Ele acha que o arranjo da compra e venda consentidas está desmoronando. “Há uma enorme crença entre os negros na África do Sul de que podemos persuadir os brancos que possuem terras a darem de bom grado suas terras para os negros. É uma utopia. Não vai acontecer. A história da compra e venda consentidas não está funcionando.” Ele então argumentou que um problema adicional da atual estratégia é que “não houve o reconhecimento de que algumas das pessoas não queriam possuir a terra para cultivá-la — queriam a terra para restabelecer a justiça”.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto publicado originalmente no diário sulafricano Daily Maverick
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