Artur Henrique: “O debate sobre a regulamentação do sistema financeiro está esquecido”
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A poucos meses de deixar a presidência da CUT (Central Única dos Trabalhadores), Artur Henrique fala à Teoria e Debate sobre a crise econômica mundial, o forte impacto no mundo do trabalho e as repercussões no Brasil. Mesmo reconhecendo que o país vive um bom momento, com geração de emprego e bons resultados das políticas sociais, considera necessário discutir a qualidade do emprego gerado, a situação da indústria brasileira, o papel dos bancos privados, enfim, medidas mais estruturantes para o médio e longo prazos.
A CUT é a maior central da América Latina e quinta do mundo, atua no campo e na cidade, no setor público e privado, em todos os estados do Brasil e tem 7,5 milhões de trabalhadores associados. Em julho realizará o seu 11° congresso, quando debaterá temas estratégicos para o movimento sindical e o país.
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Qual a sua avaliação do impacto da crise internacional no mundo do trabalho?
Artur Henrique: Vivemos uma conjuntura internacional de verdadeira inversão de valores em um curto período, em alguns casos de perigo à democracia. Em 2008, depois da quebra do banco Lehman Brothers, havia um entendimento geral de que a responsabilidade pela crise americana era da desregulamentação do mercado e do sistema financeiro. A ideia neoliberal de que o mercado resolveria os problemas fora derrubada a partir de setembro de 2008.
E hoje o debate travado sobre a necessidade de regulamentar o sistema financeiro, acabar com os paraísos fiscais, de uma governança diferente sobre os organismos internacionais, está esquecido. Estamos assistindo a culpa pelo sistema de Bem-Estar Social. “Os países da Europa gastaram muito dinheiro, ou mais do que deveriam em determinadas políticas públicas e sociais”, é o que alegam. Nenhuma palavra sobre o sistema financeiro. Ao contrário, há um esforço para utilizar dinheiro dos bancos centrais da Europa e dos Estados Unidos para salvar bancos e empresas e toda a cadeia do sistema financeiro afetado pela crise.
As medidas que estão sendo adotadas pelos bancos centrais, pelo Banco Mundial, pelo sistema financeiro e pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) nós conhecemos muito bem, porque são as mesmas impostas ao Brasil e a alguns países da América Latina na década de 1990: diminuir gasto do governo, o papel do Estado, privatizar e, principalmente, no caso da Europa, reduzir direitos dos trabalhadores. Lá estão chegando ao absurdo de reduzir salários. No setor público, redução de direitos e de salários, com aumento da idade para a aposentadoria, das horas de trabalho e diminuição de direitos como hora extra e férias.
Na Itália e na Grécia, nomes do mundo financeiro assumem o posto de primeiro-ministro. Ou seja, estão tomando conta dos governos para acenar ao mercado que as medidas serão implantadas. Isso é um problema do ponto de vista da democracia.
O ex-primeiro ministro grego, quando propôs um plebiscito sobre as medidas adotadas pelo Banco Central Europeu, foi pressionado a recuar por todos os países, mas principalmente por França e Alemanha. O povo é que está sendo massacrado pelas novas medidas. Na Europa, 48% da juventude está desempregada. A Espanha tem 24% de desemprego, um a cada quatro trabalhadores não tem emprego.
O cenário europeu pode repercutir no mundo do trabalho no Brasil?
Henrique: Sem dúvida. Vejo o impacto em dois campos, em dois momentos. O primeiro é a enxurrada de dólares e de euros que os bancos centrais da Europa e dos Estados Unidos estão despejando na Europa. Nos últimos dois anos, emitiram algo em torno de 6 trilhões para salvar bancos. Como não há regulação do sistema financeiro nem orientação dos Estados nacionais ou da Comunidade Europeia no sentido de obrigar esses bancos a investir na geração de emprego, eles podem segurar o dinheiro, como já estão fazendo, e aplicar em países onde a taxa é alta e o retorno, rápido. Pega-se dinheiro do Banco Central Europeu a 1% e aplica-se em papéis do Tesouro do governo brasileiro a 9,75%.
Esse é um primeiro impacto para o qual temos de nos preparar. É preciso dar continuidade à redução da taxa de juro no Brasil. Não podemos permanecer como atrativo para a especulação financeira. Temos de ter medidas mais ousadas de controle do dinheiro que entra no Brasil. Quem aplicar em produção no Brasil e, portanto, gerar ciência, tecnologia, transferência de valor, emprego, deve ser incentivado. Mas quem tem a intenção de, com um aperto de uma tecla do computador, investir US$ 400, 500 milhões em papéis do Tesouro ou na Bolsa de Valores e no dia seguinte, porque o juro em Cingapura sobe um pouco, passar para lá — o que acontece hoje no mundo globalizado financeiro — tem de ter taxação. Ou seja, é preciso taxar a especulação e incentivar a produção.
Também não podemos continuar sendo um país que apenas exporta matéria-prima e, portanto, só commodities — minério de ferro, soja, petróleo, açúcar e café. Precisamos ser um país que, além de ter exportação de produtos primários, agregue valor à exportação e à indústria. Se não tomarmos cuidado, podemos, em um curto espaço de tempo, nos transformar em montadoras, maquiladoras, como ocorre no México. Nosso parque industrial vira um parque de montagem, e não de produção.
A indústria brasileira passa por sérios problemas. Há uma discussão sobre um processo de desindustrialização. Por que isso vem ocorrendo e, em sua opinião, quais os riscos e que medidas podem ser adotadas?
Henrique: Isso vem ocorrendo por uma deliberação absolutamente equivocada do governo do PSDB. Começou com o governo Collor (1990-1992), com a abertura indiscriminada, mas fundamentalmente nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) aprofundou-se de forma irresponsável. Foram entregues ao capital privado empresas estratégicas do ponto de vista da produção. Foram privatizadas a CSN, a Vale do Rio Doce e todas as siderúrgicas. Tirou-se do Estado o papel de indutor do desenvolvimento.
Empresários reclamam: “Temos de olhar para a competitividade chinesa”. Para abrir uma empresa na China, no entanto, é preciso fazer parceria, joint venture, transferir tecnologia, garantir emprego para chineses. Qualquer empresa brasileira, Vale, Gerdau, terá de cumprir lá uma série de regras. No Brasil é o contrário, damos terreno e isenção de imposto.
Um problema real da indústria brasileira é o fato de a energia no país ser a quarta mais cara do mundo. Fruto do processo de privatização ocorrido no governo FHC, que estabeleceu uma política de tarifa que é um mercado de capitalismo sem risco. Alguns empresários hoje defendem que temos de fazer privatização de novo do setor elétrico, em nome de reduzir a tarifa. É uma mentira deslavada. O que pode reduzir a tarifa é o governo atrelar uma contrapartida à renovação das concessões que estão vencendo, obrigando a redução de tarifa, e trabalhar com uma perspectiva de tarifa menor para quem quer produzir. Precisamos de uma outra política industrial, e para isso é preciso ter muito investimento em ciência e tecnologia. Não basta apenas trabalhar com propostas de desonerações pontuais, porque micro, pequena e média empresas do setor industrial, se não tiverem incentivos, portanto desoneração de investimentos para poder gerar empregos e renda, vão se transferir para outro país, como fazem grandes empresas. O setor empresarial ganhou muito dinheiro no último período, tem de ser cobrado inclusive a reinvestir o lucro na produção.
Precisamos alterar essa realidade com medidas que sejam mais estruturais. Não podemos continuar com a atual estrutura tributária, em que cada estado tem um ICMS; em que se incentiva a especulação financeira, e não a produção; em que 80% dela seja baseada no consumo das famílias, e não no patrimônio e na renda; em que quem ganha menos paga mais e quem ganha mais paga menos. Uma pessoa que ganha três salários mínimos no Brasil paga uma carga tributária total da ordem de 37%, e alguém que ganha acima de quinze, vinte salários mínimos, 23%.
Quando se fala em tributação, alega-se que a desoneração da folha de pagamentos, assim como a flexibilização da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), gera mais emprego. Dá para ter acordo nisso?
Henrique: Mostramos em oito anos do governo Lula e um ano do governo Dilma o contrário disso. Não conseguimos ainda reverter várias das políticas neoliberais que desmontaram as relações de trabalho no Brasil no governo FHC. Privatizações e terceirizações aumentaram o desemprego. Apenas no âmbito municipal ocorreram contratações. No governo Lula foram criados vinte milhões de empregos no setor público.
Flexibilização dos direitos trabalhistas não gera emprego. O que gera emprego é crescimento econômico, política de desenvolvimento e políticas públicas e sociais de fortalecimento do mercado interno, tendo o Estado como indutor. Em 2003, tínhamos 42% da população ocupada, com carteira assinada. Em tese, a grande maioria era sem carteira assinada, 58% da população ocupada. Hoje temos cerca de 54% dos trabalhadores com carteira assinada. O que não quer dizer que 46% estejam na informalidade, porque entre estes temos, por exemplo, autoprodutor, pequenos proprietários, os empreendedores individuais. Mas ainda há uma informalidade grande no Brasil, em torno de 30%, 35% da população economicamente ativa, segundo o Dieese. Nesses percentuais, há um grande contingente que é o trabalhador doméstico. São seis milhões sem carteira assinada. Portanto, qualquer alteração na CLT tem de ser para ampliar os direitos, e não reduzi-los ou flexibilizá-los.
Há uma pauta extensa dos trabalhadores que vinha sendo discutida nos dois governos Lula e está parada: redução da jornada para quarenta horas, fator previdenciário, imposto sindical etc. Quais são os obstáculos?
Henrique: Nossa agenda continua estratégica nessas questões mais amplas do debate da política macroeconômica, mas também há essa pauta, de interesse imediato dos trabalhadores: redução da jornada de trabalho para quarenta horas, fim do fator previdenciário, recuperação do poder aquisitivo das aposentadorias, regulamentação da terceirização, ratificação e implementação de convenções da Organização Internacional do Trabalho…
A Convenção 158, contra a demissão imotivada, está parada no Congresso e já foi derrotada em algumas comissões. A 151, que garante negociação coletiva no setor público, foi aprovada pelo Congresso e está com o governo para regulamentação. Estão paradas a 189, que é a garantia do trabalho das empregadas domésticas, e a 87, que garante liberdade e autonomia sindical e coloca em discussão nossa legislação sindical, ainda da época do Getúlio Vargas, sem liberdade, sem democracia, sem organização por local de trabalho e que mantém o imposto sindical.
Sobre o fim do fator previdenciário, em sua substituição apresentamos a proposta 85/95 (poderá se aposentar com 100% do valor do benefício aquele que a soma dos anos de contribuição e sua idade seja 85, para mulheres, e 95 para homens), mas infelizmente parte das centrais acreditou que acabaria com o fator previdenciário no Congresso e não aconteceria mais nada. Lula tinha alertado que vetaria. O governo não jogou pesado porque queria ter uma maioria confortável para aprovar a nova proposta.
Essas propostas vão ser retomadas?
Henrique: No primeiro ano do governo Dilma, a agenda do setor empresarial se desenrolou com mais rapidez e, às vezes, com parte de apoio do governo para ser aprovada. E nossa agenda não anda no Congresso Nacional porque continuamos com uma correlação de forças prejudicial aos trabalhadores, fundamentalmente porque não temos reforma política no Brasil. Enquanto o poder econômico continuar influenciando as eleições, serão eleitos os que têm condições financeiras de sê-lo. Defendemos reforma política, lista partidária, financiamento público de campanha, mas quem está fazendo lista de todos os partidos é a Odebrecht, a Camargo Corrêa, o Bradesco, o Itaú… O setor empresarial da agricultura, ou agronegócio, tem cada vez mais representantes dentro do Congresso Nacional.
Em 2003, em entrevista de Luiz Marinho à Teoria e Debate, o foco foi a relação com o governo. Qual o balanço que você faz dessa relação delicada? Qual é a expectativa da relação com o governo Dilma?
Henrique: Priorizamos, num primeiro momento, o debate estratégico sobre a política macroeconômica e os pontos com necessidade de intervir — juros, câmbio, reforma tributária mais ampla —, mas a expectativa é criar um espaço de negociação mais permanente do ponto de vista estratégico. Às vezes a imprensa diz que a relação com a Dilma é muito pior, diferente do que era com Lula. Essa é uma tentativa de comparar e mostrar que a presidenta tem outra visão do movimento sindical. É evidente que as pessoas têm histórias diferentes. Lula foi presidente de sindicato, é fundador do PT e da CUT. Dilma lutou contra a ditadura, foi presa, torturada, depois passou a atuar na área de energia elétrica, quando foi secretária de Energia do Rio Grande do Sul.
Fazemos muitas reuniões com a Secretaria-Geral da Presidência da República, do mesmo jeito que os empresários se reúnem com o Ministério da Indústria. Nossas reuniões tiveram resultados concretos. Por exemplo, recentemente aprovamos e assinamos o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Indústria da Construção. Tratamos de muitas reivindicações o ano inteiro, mas do ponto de vista estratégico, de reformas estruturais, falta maior articulação com o governo.
* Texto publicado originalmente no site Teoria e Debate
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