Há maneiras certas e erradas de violar a lei; é isso que os manifestantes aprendem com a ativista Lisa
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Em sua sala de aula improvisada no Lower Manhattan, Lisa Fithian se volta para um grupo com dezenas de alunos, apruma-se e lança um desafio: “Alguém quer ser o polícia e vir me pegar?”. Um ruivo alto repentinamente irrompe na direção dela e tenta dar o bote, mas Fithian, uma mulher de 50 anos, com o físico franzino e jeito de chefe de escoteiros, finge que vai para um lado e se esquiva indo para outro. Gritos de satisfação se erguem entre os alunos, manifestantes do movimento Ocuppy Wall Street preparando-se para tentar interditar a Bolsa de Nova York na manhã seguinte. Outro pseudopolicial se aproxima, e desta vez ela se joga no chão, largando o corpo como uma boneca de pano enquanto o agente luta para arrastá-la. Fithian fica em pé para dar sua lição. “Das duas opções — sair correndo ou fazer corpo mole —, o que significa sair correndo?”, pergunta ela. “Culpa”, dizem várias pessoas. Ela sorri e aquiesce. “Culpa.”
Quando se trata de desobediência civil, sempre há maneiras certas e erradas de violar a lei, e uma das tarefas de Fithian é ensinar a forma correta a centenas de recém-formados ativistas do Ocuppy. Podem chamá-la de “Professora Ocuppy”. Com algo entre 80 e 100 detenções no seu currículo (ela perdeu a conta) ao longo de quase quatro décadas de mobilizações, Fithian pode ser a mais conhecida consultora de protestos dos Estados Unidos. Sindicatos e grupos de ativistas lhe pagam US$ 300 por dia para promover manifestações e ensinar aos seus membros as táticas para tomarem as ruas. Mas há praticamente seis meses Fithian oferece seu conhecimento gratuitamente para os jovens radicais que tomaram parques de Nova York a Los Angeles no segundo semestre de 2011 — do traje adequado para enfrentar o gás lacrimogêneo às estratégias para protestos de longo prazo.
“Quando há algum conflito, ou as coisas não saem do jeito que gostaríamos, ou as pessoas não têm um bom plano de longo prazo”, diz Jason Ahmadi, 27, um dos primeiros a se instalarem no Zuccotti Park. “Nessas horas, eu e outros sempre falamos: ‘Caramba, cadê a Lisa Fithian?’”.
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Fama de encrenqueira
Fithian mora em Austin (Texas), mas passa a maior parte do tempo na estrada. Ela se veste como Mark Zuckerberg, criador do Facebook, e xinga como Tony Soprano, famoso personagem da série de TV sobre sua família mafiosa. Cresceu em Hawthorne (Nova York), uma comunidade-dormitório, onde criou fama de encrenqueira — a polícia podia bater à sua porta para perguntar, digamos, sobre um incêndio suspeito no jardim de um vizinho. No curso ginasial, foi flagrada certa vez levando uma faca para a sala de aula. Mas ela era inteligente e séria, e no segundo ano do ensino médio fundou um jornal clandestino, The Free Thinker (“o livre pensador”), que abordava assuntos como o lixo espalhado na cantina. Seus colegas a elegeram como “a mais propensa a fazer coisas pela escola”. Também a elegeram como “a mais propensa a fazer coisas com a escola”.
Em 1983, após se formar no Skidmore College, Fithian passou um ano acompanhando Abbie Hoffman, fundador do pacifista Partido Internacional da Juventude (vulgo “yippies”, pelas iniciais em inglês), cuidando do jardim dele e “fuçando o seu cérebro”. Três anos depois, uma coalizão de ativistas indignados com as guerras secretas da CIA na América Central a contratou para organizar um bloqueio na sede da agência em Langley (Virgínia) que terminou com 600 detidos.
Depois, em 1999, ela saiu às ruas com outros manifestantes — inclusive garotos anarquistas vestidos de preto, que ela chama de “os nervosinhos” — para atrapalhar a reunião da Organização Mundial do Comércio, em Seattle. E, em 2005, juntou-se a outros radicais e a ex-Panteras Negras para lançar o grupo Socorro do Denominador Comum, que reconstruía casas enquanto travava confrontos com a polícia no devastado bairro do Lower Ninth Ward, na Nova Orleans pós-Katrina. “Quando as pessoas me perguntam: ‘O que você faz?’, eu digo: ‘Crio crises’”, me disse Fithian. “Porque a crise é a vanguarda na qual a mudança é possível.”
O currículo de Fithian fez dela um alvo para pessoas que esperavam desacreditar o nascente movimento Ocuppy. Em uma só semana de outubro passado, o ativista conservador Andrew Breitbart publicou nove textos apontando-a como uma anarquista interessada na “aniquilação total do sistema político e econômico americano”. Na verdade, Fithian tem um longo histórico de colaboração com grupos do mainstream, como o Sindicato Internacional dos Empregados de Serviços (Seiu, na sigla em inglês). Mas Max Berger, organizador da ala moderada do Ocuppy e que estreou no ativismo trabalhando para a campanha presidencial de Howard Dean em 2004, considera crucial a credibilidade dela junto aos jovens radicais. “Ela está numa posição estrategicamente muito importante de ensinar os garotos que querem ser da pá virada a serem inteligentes.”
Continuar ocupando
Caso em questão: em 17 de setembro, primeiro dia do Ocuppy Wall Street, a polícia disse aos manifestantes que eles não poderiam afixar nos postes do Zuccotti Park seus cartazes de papelão imitando placas de rua com os dizeres “Praça da Liberdade”. Muita gente queria mostrar o dedo médio para os policiais, mas Fithian ofereceu uma solução de compromisso: eles iriam recolher os cartazes e encontrariam novas formas de exibi-los. O importante, salientou, era continuar ocupando.
No segundo dia de ocupação, ela deixou Nova York para coordenar protestos contra os bancos em várias cidades, em nome de uma coalizão de grupos religiosos e comunitários. A superposição do seu trabalho de consultoria com o nascimento do movimento Ocuppy foi mera coincidência, mas Fithian aproveitou-a ao máximo. Ela percorreu os acampamentos que pipocavam em cidades como San Francisco, Los Angeles e Chicago, ensinando táticas de protesto aos novatos e alistando-os para ajudá-la a ocupar bancos ou a defender casas ameaçadas por ações de despejo.
Coalizão democrática
Conforme o Ocuppy avança, sua maior tensão interna talvez seja entre os reformistas — pragmáticos com metas concretas — e os revolucionários, idealistas que sentem que pedir qualquer coisa de um sistema corrupto só marginaliza o movimento. “Este não é um movimento de protesto, porque movimentos de protesto servem para tratar de questões das quais seria concebível que a estrutura de poder estivesse disposta a abrir mão”, disse um ocupante vestido de preto, chamado Max Bean, durante um almoço com Fithian no começo de dezembro. “Estamos pedindo para dissolver a estrutura de poder. E você não pode pedir isso. Você não pode protestar por isso. Tudo o que você pode fazer é crescer até que sejamos tão grandes a ponto de sermos tudo.”
Fithian pesou cuidadosamente sua resposta. “Movimentos se constroem porque as pessoas têm alguma sensação de esperança, vitória e realização”, respondeu ela, deixando de lado seu prato de couve refogada. “Poderíamos vencer a respeito da taxação dos milionários nos próximos seis meses. Isso seria do caralho.” Ela sorriu ao ver que Max agitava os dedos virados para cima, um sinal de aprovação no Ocuppy. “Então isso é o equilíbrio entre coisas reformistas e revolucionárias. E por isso o movimento é tão bonito, porque inclui ambas.”
Três dias depois, a Seiu enviou Fithian a Washington para coordenar o Retome o Capitólio, um ataque ao estilo do Ocuppy contra os lobistas corporativos. Ocupantes de boa fé foram despachados de avião para ajudarem os sindicalistas a bloquearem a rua K e tomarem gabinetes parlamentares — parte de uma estratégia sindical para forjar alianças com o Ocuppy —, mas alguns ocupantes se irritaram com a má vontade do sindicato em se arriscar a sofrer mais do que algumas poucas prisões simbólicas. Recém-saído da prisão e sorvendo um tufo de tabaco Copenhagen, Joe Carriveau, do Ocuppy Milwaukee, me disse estar “cheio dessa porcaria de coalizão democrata; deveríamos ter vindo até aqui para alguma ação radical.”
No dia seguinte, numa barraca do Mall, Fithian ajudou a comandar uma sessão destinada a atenuar as tensões entre as duas facções. Ela deixou quase todos os demais falarem antes de assumir a palavra. “Um dos problemas é que, quando as pessoas estão fazendo uma merda diferente, estamos começando a nos desrespeitar mutuamente por acharmos que o seu jeito não é tão bacana quanto o nosso”, disse Fithian.
Sindicalistas e ocupantes podem cooperar para “interromper o espaço entre a América corporativa e a democracia”, prosseguiu ela, sob murmúrios de consentimento. “Não se trata de convencer nossos ocupantes de cargos eletivos a fazerem alguma coisa. Merda. Eles não vão fazer merda nenhuma.” Ela falou cada vez mais rápido, amontoando as palavras, antes de parar abruptamente 90 segundos depois. “Desculpem, falei muito”, afirmou timidamente. Mas ninguém parecia se importar. Dessa vez a multidão, em vez de agitar os dedos, aplaudiu.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto publicado originalmente na revista norte-americana Mother Jones
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