Henrique Pizzolato foi diretor de Comunicação e Marketing do BB (Banco do Brasil) do início do primeiro mandato do Luiz Inácio Lula da Silva até pouco depois do estouro do mensalão, em agosto de 2005. Em agosto passado, sete anos depois, foi condenado no STF (Supremo Tribunal Federal) por quatro crimes: corrupção passiva, dois peculatos e lavagem de dinheiro. Foram 44 votos ao total. Só um, de Marco Aurélio de Mello, o absolveu, do crime de lavagem de dinheiro.
Tentaremos provar que as quatro condenações são injustas, mesmo a por corrupção, em cuja defesa ele apresentou uma versão, de fato, pouco convincente para 326 mil reais que recebeu do esquema montado pelo então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e pelo publicitário mineiro Marcos Valério. Nosso argumento nesse caso: ao réu cabe o benefício da dúvida; a acusação, à qual cabe o ônus da prova, não provou que Pizzolato não repassou o dinheiro para o PT do Rio de Janeiro, como ele alega. Diremos mais: a condenação pelos dois peculatos, essencial para “provar” a teoria do mensalão, simplesmente não se sustenta.
Pizzolato tem 60 anos. Formou-se em arquitetura, com especialização em urbanismo. Estudou também comunicação social. Em 1974, ainda universitário, passou em concurso para escriturário do BB, onde, ao longo de 32 anos de carreira, ocupou diversos cargos, até chegar ao topo, em fevereiro de 2003, como diretor de Marketing e Comunicação, nomeado pelo presidente do banco, Cássio Casseb.
Leia as outras matérias da edição nº 6 da Revista Samuel
Tudo parecia ir muito bem até 3 de agosto de 2005. Em manchetes de jornais, Pizzolato foi acusado de receber R$ 326.660,27 encaminhados a ele pelo empresário Marcos Valério, da agência de publicidade DNA. Valério já era tido como o operador do mensalão, o grande escândalo do início do governo Lula, e a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) dos Correios, que investigava o caso, pegava fogo. O dinheiro fora sacado por um contínuo da Previ, Luiz Eduardo Ferreira da Silva, em uma agência do Banco Rural, no centro do Rio. Levado a depor na PF (Polícia Federal), o contínuo afirmou que Pizzolato lhe telefonou e pediu que fosse buscar “documentos” no Rural. Lá chegando, disse no depoimento, foi levado a uma sala interna do banco, onde lhe entregaram dois embrulhos em papel pardo, os quais disse ter levado a Pizzolato. As matérias destacavam que, pouco tempo depois do recebimento do dinheiro, Pizzolato comprou um apartamento de 400 mil reais, visto como prova de sua culpabilidade. Quinze dias depois, Pizzolato depôs na CPMI dos Correios. Seu advogado pediu habeas corpus ao STF para lhe garantir o direito de ficar calado, o que foi negado. Pizzolato disse no depoimento que suas ações no BB tinham sido aprovadas pelo ministro Luiz Gushiken, o que causou sensação ainda maior porque, àquela altura, a questão do dinheiro que teria recebido de Valério já estava associada a outra denúncia: a de ter desviado 73,8 milhões de reais do BB ilegalmente para as empresas do publicitário.
O mensalão não mais sairia do noticiário por sete anos. Pizzolato hoje vive recluso. Não fala com a imprensa. Para Retrato do Brasil, sua única concessão foi enviar pela internet, através de seu advogado, Marthius Sávio Lobato, em Brasília, uma declaração da Receita Federal com a qual buscava provar que, após uma devassa em suas contas, nada fora apurado contra ele. Mas RB teve cerca de oito horas de conversas com Lobato.
Lobato diz que considera seu cliente um injustiçado e afirma que a sentença dos ministros do STF o arrasou. O crime de corrupção passiva é, talvez, o que mais lhe doa. A acusação é a de que ele embolsou os 326 mil reais repassados por Valério para facilitar os desvios dos dois crimes de peculato, um de 2,9 milhões de reais e outro de 73,8 milhões de reais. E, para encobrir a corrupção cometeu outro crime, o de “lavagem de dinheiro”, ocultando origem, movimentação e destino dos recursos recebidos a 15 de janeiro de 2004.
No seu depoimento, Pizzolato disse que naquele dia recebeu uma ligação em seu celular de uma mulher que dizia ser a secretária de Valério, pedindo que fizesse o favor de ir buscar “documentos para o PT” em um “escritório” no centro da cidade. Muito ocupado, diz Pizzolato, acertou com a secretária mandar outra pessoa, no dia seguinte, com o compromisso de entregar os documentos ao representante do PT que iria procurá-lo no mesmo dia. Pizzolato diz que recebeu envelopes do contínuo Silva e os repassou, como combinado, a uma pessoa do PT. Diz que não abriu os envelopes, não quis saber o nome do emissário do partido e nunca mais viu a cara dele.
Lobato nega todos os crimes dos quais Pizzolato é acusado. Diz que Barbosa não analisou as provas apresentadas por ele. No caso da corrupção, diz, Barbosa e os juízes especularam sobre a versão que Pizzolato deu para a encomenda recebida. A acusação, diz Lobato, primeiro trabalhou para provar que Pizzolato teria comprado um apartamento de 400 mil reais no mês seguinte ao recebimento de dinheiro de Valério, mas fracassou. Pizzolato provou que comprou o apartamento com suas economias, com um cheque do BB e mais 100 mil reais em espécie, resultado da venda de dólares que comprovadamente comprara.
À Justiça, Valério disse que o diretório do PT do estado do Rio de Janeiro, de acordo com o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, tinha débitos de campanha de 2002, estava se preparando para as eleições de 2004 e foi o que mais recebeu recursos do esquema comandado por Soares. O tesoureiro do PT, então, solicitou a ele que remetesse um total de R$ 2.676.660,67 ao PT fluminense. As pessoas indicadas para o recebimento foram Manuel Severino, Carlos Manuel e Pizzolato, disse Valério. Os R$ 326.660,67 repassados via Pizzolato seriam parte do total. Valério disse também que Pizzolato trabalhou na campanha eleitoral de 2002 com Soares, no Rio.
Lobato lembra que o ônus da prova é da acusação: “Cadê a prova de que Pizzolato pegou esse dinheiro para ele?”. Ao depor na CPMI em 2005, Pizzolato abriu para a Justiça, imediatamente, todos os seus sigilos bancário, fiscal e telefônico. Mostrou que tinha recursos suficientes para comprar o apartamento. Em 2005, por exemplo, recebia 4 mil reais da Previ, 19 mil reais do BB, 18 mil reais a título de participação no conselho da Embraer e mais 4 mil reais pela atuação no conselho da Associação Nacional dos Funcionários do BB. Em 2003, seu patrimônio era de R$ 1.304.725,45. Em 2004, de R$ 1.768.090,23, já incluído o apartamento. Seu rendimento bruto anual em 2004 foi de R$ 717.611,46 – aproximadamente 60 mil reais por mês. “A Receita e a PF não encontraram nenhuma irregularidade nas contas de Pizzolato”, diz Lobato.
Pizzolato tem razão? Ele pode ter omitido fatos e o nome de pessoas, o que torna a história pouco crível. Mas, aceitando-se a tese do caixa dois, sua versão pode ser verdadeira. E ele merece, ao menos, o beneficio da dúvida. Mais ainda porque os dois crimes de peculato de que é acusado, e pelos quais ele teria recebido o suborno, podem ter sido simplesmente inventados para sustentar a tese do mensalão.
A Visanet e o FIV
Visanet é o nome fantasia da CBMP (Companhia Brasileira de Meios de Pagamento), fundada em 1995 e que passou a operar mais amplamente a partir de 2001. O capital controlador da CBMP é da Visa (Visa International Service), que tem 10%; do Bradesco, com 39%; e do BB, 32%. O restante está dividido entre cerca de 20 outros sócios. Pode-se dizer, porém, que o controle da CBMP sempre foi da norte-americana Visa. Ela é a possuidora dos direitos dos cartões de crédito e débito da bandeira com seu nome, emitidos em cerca de 200 países.
A partir de 2001 a CBMP começou a operar no Brasil o FIV (Fundo de Incentivo Visanet), com o objetivo único “de realizar ações de marketing destinadas a incentivar o uso dos cartões Visa pelos consumidores”. O FIV era formado por uma porcentagem dos negócios com os cartões e a CBMP destinava os recursos assim obtidos a ações de promoção e marketing dos mesmos, a serem comandadas pelos sócios. O dinheiro movimentado pelos cartões da bandeira Visa, no mundo, passa de 5 trilhões de dólares/ano. No Brasil, é mais de 1 bilhão de reais/ano só com os cartões Visa do BB.
A CBMP arrecadou para o FIV cerca de meio bilhão de reais entre 2001 e fins de 2005, quando o fundo foi encerrado; na verdade, mudou de nome, devido à repercussão do mensalão. O BB foi o líder dos negócios com cartões de bandeira Visa nesse período. Sua parte no FIV foi crescente: aproximadamente 150 milhões de reais entre 2001 e 2004: 60 milhões de reais nos anos 2001–2002 — no governo Fernando Henrique Cardoso, portanto — e 90 milhões de reais nos anos 2003–2004, no governo Lula, quando Pizzolato dirigia o Marketing do BB.
Desde a criação da CBMP, o FIV tinha um regulamento que cada sócio deveria observar para usar os recursos. Ele previa a cobertura para atividades de promoção de todo tipo. No seu item III.4, definia as “ferramentas mercadológicas” a serem usadas. Eram especificadas algumas dezenas dessas ferramentas, como: “publicidade em mídias de massa”, “TV, rádio, revistas, jornais, outdoors, mobiliário urbano, front e back lights, painéis, etc.”; “merchandising, trabalhos de planejamento, criação, layout, editoração, produção, veiculação e comissão de agência de publicidade”; “programas de fidelização ou promoção para portador no ponto de venda, nas agências bancárias, via internet, correio, telefone ou locais de grande fluxo de portadores para estimular venda do plástico; de planejamento e criação, produção de material gráfico, de divulgação e de apoio, contratação de promotores, compra de benefícios, brindes, prêmios, taxas governamentais de aprovação e alvarás”. O FIV era administrado por um comitê gestor, formado por um presidente, um diretor de Finanças e Administração e outro de Marketing, todos da Visanet, a quem cabia verificar se os recursos estavam sendo empregados “de acordo com as diretrizes, a estratégia do negócio e as condições do Regulamento”. Os recibos dos gastos da agência de publicidade DNA, de Valério, tão citados no mensalão, ficavam com a CBMP, que fazia pagamentos diretamente à agência. Ao definir sua participação no FIV, em 2001, o BB decidiu, por questões fiscais, que esses recursos não passariam por seu orçamento. té 2004.
A DNA trabalhava com publicidade e promoção para o BB desde 1995. Entre 2001 e 2002 dividia os trabalhos de promoção com uso do dinheiro do FIV com outras agências contratadas para servir o banco. No final de 2002, o BB decidiu dividir os trabalhos das suas agências entre as áreas de negócios chamadas de “governo”, “atacado” e “varejo” e escalou a DNA para o varejo, em que se encontravam os serviços para promoção de seus cartões Visa.
Os originais dos recibos dos serviços da DNA prestados ao BB eram da CBMP, e a companhia resistiu judicialmente por longo tempo a entregá-los, mesmo com o escândalo do mensalão, depois de ter sido determinado, a 11 de janeiro de 2006, pelo então presidente do STF, Nelson Jobim, o acesso de peritos do Instituto Nacional de Criminalística “a todos os documentos da empresa no período de 2001 até janeiro de 2006”. Em junho de 2006, quando Barbosa já era, no STF, o encarregado de supervisionar o andamento do inquérito 2.245, relativo ao mensalão, ele recebeu uma petição do então procurador-geral, Antonio Fernando de Souza, relatando as dificuldades ao acesso dos peritos à documentação.
Souza requisitou “busca e apreensão” na sede da empresa, além da “quebra do sigilo do fluxo de comunicações e de dados em sistemas de informática e telemática” da CBMP. Barbosa aprovou os pedidos, a busca foi feita, mas a empresa apelou ao STF para reconsideração da decisão. A CBMP já havia encerrado as atividades do FIV em fins de novembro de 2005, mas uma intensa disputa judicial então estava em curso. O BB tinha suspendido o contrato com a DNA. Tinha também alterado o modo de relacionar-se com a empresa de Valério em meados de 2004, para melhorar o controle dos gastos.
Valério ingressou na Justiça para cobrar do BB por serviços feitos e não pagos. Em junho de 2009, já com a AP 470 com dois anos de andamento, Barbosa enviou ao BB um questionário relativo ao possível descumprimento de contrato com agência “no que diz respeito ao BV (bônus de volume) referente ao período de fevereiro de 2003 a julho de 2005”.
A escolha das datas, que coincidem com a entrada e a saída de Pizzolato da Dimac, a diretoria de Marketing e Comunicação do BB, é óbvia: Barbosa já tinha Pizzolato como um alvo. Por que ele fez isso, visto que a auditoria a que teve acesso mostrava claramente, que o FIV tinha sido operado por Pizzolato exatamente como nos anos 2001–2002; que os recursos eram sempre adiantados à DNA e às outras agências, em cerca de 80% do total a ser gasto, antes de as despesas serem feitas; e que fora na época em que Pizzolato era diretor do BB, em meados de 2004, que tinham sido feitas mudanças bem-sucedidas na gestão do FIV, para evitar possíveis abusos? Mais ainda: por que ele aceitou a denúncia e encaminhou a condenação somente de Pizzolato se a CPMI dos Correios tinha pedido o indiciamento de mais quatro pessoas, entre as quais três dirigentes de setores ligados à publicidade e promoção do banco que assinaram com ele as autorizações para os adiantamentos à DNA?
Barbosa não viu
A tabela acima foi construída a partir da auditoria feita por 20 técnicos do BB por quatro meses. Ela mostra que o FIV foi operado pelo BB, entre 2001 e 2004, da mesma forma, tanto nos anos FHC (2001–2002) como nos anos Lula (2003–2004).
Diz o relatório que as regras para uso do fundo pelo BB tiveram duas fases: uma, de sua criação, em 2001 , a meados de 2004, quando o banco, em função de não ter adotado “definições formais acerca dos direcionamentos estratégicos”, como tipo de “eventos ou ações que poderiam ser patrocinados”, adotou, “como referencial básico, o Regulamento de Constituição e Uso do Fundo” da CBMP, que é sua “legítima proprietária”; e outra, do segundo semestre de 2004 até dezembro de 2005, quando o banco criou uma norma própria.
Os auditores fizeram simulações por amostragem para verificar a porcentagem das ações de incentivo para as quais existiam comprovantes, no banco, de que elas tinham sido de fato realizadas. Procuraram os documentos no próprio banco – notas fiscais, faturas, recibos emitidos pelas agências para pagar os serviços e despesas de fornecedores para produzir as ações. Referente ao período 2001–2002, não foram localizados esses documentos. Já com relação aos anos 2003 e 2004, entre as 93 ações encaminhadas à Visanet, nas 33 ações selecionadas como amostra para a análise, para três delas não havia qualquer documento e para 20 havia parte deles. Ou seja: somando-se as ações com falta absoluta de documentos às com falta parcial, tinham-se 45% do total de recursos despendidos. Os auditores procuraram então os mesmos documentos na CBMP, que, por estatuto, era a dona dos recursos e a controladora de sua aplicação. A falta de documentação comprobatória foi, então, muito pequena em proporção aos valores dos gastos autorizados. Para condenar Pizzolato, o relator Barbosa não destacou esses dados.
O pequeno pilar
Os dois peculatos — desvios de 2,9 milhões de reais e 73,8 milhões de reais do BB — que Pizzolato teria cometido a favor da agência DNA, de Valério, formam os pilares de sustentação do mensalão. Se a acusação não consegue provar esses dois desvios, a tese desmorona. O pequeno peculato trata do bônus de volume. A acusação é de que a DNA de Valério embolsava indevidamente bonificações que seriam do BB, dadas a ela pelas empresas com as quais contratava serviços para promoção dos cartões Visa do BB. No interrogatório judicial de Pizzolato, em 2008, o juiz Granado leu um trecho da denúncia do então procurador-geral que afirmava que as bonificações de volume pagas pelos fornecedores de serviços para a DNA — jornais, TVs, empresas de promoção contratadas pelo publicitário para os trabalhos de estímulo ao uso dos cartões Visa do BB — deveriam ter sido repassadas ao BB pela agência de Valério e não o foram. O próprio Granado informou que esse procedimento era antigo: cinco agências, entre 2000 e 2005, embolsaram BVs, e não apenas a DNA.
Pizzolato fez, então, primeiro, um esclarecimento. Mostrou que existem dois tipos de bonificação. Uma é o BV, fruto da relação entre a agência e o fornecedor de mídia. “O nome já diz, é uma bonificação em função do volume”, disse Pizzolato. Não se restringe ao volume de publicidade veiculado por um cliente, como o BB. Todas as agências que prestavam serviços para o banco tinham vários clientes e o BV era dado pelas empresas de mídia às agências pelo volume total de anúncios veiculados. “Isso, doutor, é praticado em todo o mercado, público e privado”, disse Pizzolato a Granado. O próprio TCU (Tribunal de Contas da União) confirma isso em uma auditoria, acrescentou Pizzolato: “[O TCU] diz que o BV foi praticado no BB de 2000 a 2005, por todas as cinco agências que prestaram serviços ao banco nessa época”. Pizzolato explicou depois que o BV se distingue de bonificação de espaço, que vem da relação entre o BB e os fornecedores de mídia. “Os fornecedores — jornais, rádios, televisões — costumam oferecer uma bonificação de espaço, de mídia, para que o período de compra seja mais longo. Por exemplo, eu comprei 60 dias de espaço no Valor Econômico. O Valor Econômico me faz uma proposta: se você comprar noventa dias ou seis meses eu te ofereço, como bonificação de mídia, o caderno especial de domingo, porque vou lançar um caderno especial, um encarte.”. Nesse caso, o banco participa da negociação. E todo esse tipo de bonificação foi revertido para o BB, disse Pizzolato ao juiz. Nesse caso, não há transação financeira.
O próprio procurador-geral Souza, na denúncia apresentada ao STF em 2006, citou uma apuração do TCU na qual constava que a DNA teria recebido esses BVs indevidamente desde 2000, num valor de 4,3 milhões de reais. Mas, como Souza já tinha como foco Pizzolato, ele destacou que, desse dinheiro, “2,9 milhões se referiam ao período de 31/03/2003 a 14/06/2005, da gestão de Pizzolato na Diretoria de Marketing do Banco do Brasil”. Em junho de 2009, já como relator da AP 470, Barbosa enviou interrogatório ao BB para saber se teria havido descumprimento de contrato por “agência de publicidade” nos BVs do período “de fevereiro de 2003 a julho de 2005”. Pelas datas se vê que Barbosa também visava Pizzolato. O banco respondeu de modo mais amplo. Disse que existiam no TCU cinco processos sobre BVs que tratavam do BB, envolvendo as cinco grandes agências que prestaram serviços para o banco entre 2000 e 2005: Grottera, Lowe, DNA, D+Brasil e Ogilvy.
O BB mostrou a Barbosa que apresentou recursos contra decisão do TCU que mandava o banco pedir auditoria nas cinco agências, para poder juntar, aos autos do processo naquele tribunal, as notas fiscais relativas a serviços de BVs emitidos por essas cinco agências. O BB mostrou que isso não foi aceito por elas. Todas informaram que “as notas fiscais relativas a BVs, por dizerem respeito a negociações privadas entre elas e seus fornecedores, nada tinham a ver com seus contratos firmados com o BB” e não poderiam ser fiscalizadas pelo banco.
As defesas de Pizzolato e Valério mostraram nos autos, com testemunhos de vários profissionais do meio de comunicação e marketing, que o Ministério Público tinha feito uma interpretação equivocada do BV. Todos afirmaram que o BV não pertence à empresa contratante e sim à agência de publicidade. Uma dessas testemunhas foi o diretor-geral da Globo, Octávio Florisbal, “criador” do BV no Brasil. Florisbal citou normas do mercado de publicidade, decisões e acordo recente “entre anunciantes, agências e veículos” para comprovar que o BV é “direito da agência e não deve ser repassado aos anunciantes, sejam da iniciativa privada, sejam anunciantes de estatais”.
Barbosa, o relator do julgamento do mensalão, citou diversas vezes os termos do contrato entre BB e DNA. Leu um dos seus itens, que diz que a agência deveria “envidar esforços para obter as melhores condições nas negociações junto a terceiros e transferir, integralmente, ao banco, os descontos especiais (além dos normais previstos em tabelas), bonificações, reaplicações, prazos especiais de pagamento e outras vantagens”. As bonificações citadas no contrato, diz Lobato, são as tais “bonificações de mídia” oferecidas para estimular vendas por períodos mais longos.
No TCU, ao analisar o caso DNA–BB, a ministra Ana Arraes considerou regular o fato de a agência ficar com o BV. Tomou como base a Lei 12.232, sancionada em 2010, que autoriza isso explicitamente, em dois artigos, um deles referindo-se a contratos encerrados antes de a lei entrar em vigor, e processos idênticos, firmados pelo BB com outras empresas, relatados pelo ministro do TCU Marcos Vinicios Vilaça. Ao fundamentar essa decisão o ministro afirmou: “Além de inútil na prática, a quantificação de BV é algo impossível de controlar, porque o prêmio depende, primeiro, da política de incentivos do ofertante e, segundo, dos investimentos feitos à ordem de outros contratos que a agência possui.”.
O fato é que a Lei 12.232/2010, que dispõe sobre as normas gerais para contratação de publicidade pela União, foi editada para regulamentar o que já existia nas relações de fato. O projeto original, do hoje ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, é de 2008 e legaliza a retenção, pelas agências, dos BVs nos contratos com as estatais. O projeto aprovado foi o emendado pelos parlamentares Milton Monti (PR-SP) e Claudio Vignati (PT-SC). Vignati diz que a emenda foi pedida pelo setor de publicidade, porque as agências sempre retiveram na prática os BVs. Para sanar a polêmica que havia, o que era “uso e costume” foi colocado na lei. O ministro Ayres Britto, presidente do STF, ao condenar Pizzolato e Valério, atacou a lei feita pelo Congresso: “Essa lei foi preparada intencionalmente, maquinadamente, para coonestar com os autos desta Ação Penal 470”. Para Britto, a lei “é um atentado descarado ao artigo 5º, inciso 36, da Constituição, que fala do princípio de segurança jurídica, dispositivo que é verdadeira cláusula pétrea”. O presidente da suprema corte, além de dar sentença, parece querer mandar o Congresso fazer nova lei.
O “grande pilar”
Quanto ao grande peculato, o desvio de 73,8 milhões de reais do BB para Valério, que teria sido feito sob o comando de Pizzolato, tanto Joaquim Barbosa como o revisor Ricardo Lewandowski apresentaram em seus votos para os nove colegas do STF um cenário absolutamente incrível.
Entre 2003 e 2004, no cargo de diretor do BB, Pizzolato teria comandado, sozinho, o desvio daqueles milhões de reais do banco para a DNA, principalmente na forma de adiantamentos, sem que se tenha comprovado a realização de qualquer propaganda ou promoção. Também teria prorrogado um contrato de publicidade com a DNA, no período de abril a setembro de 2003. E, finalmente, dado a conta de publicidade do Banco Popular, lançado na época pelo BB, para a mesma agência do operador do mensalão.
No caso das quatro notas técnicas de liberação de recursos para a DNA apresentadas por Barbosa para incriminar Pizzolato, o comitê de marketing da Visanet examinou todas as suas ações e as aprovou. No caso das notas apontadas como ilegais, em todas elas, Pizzolato apenas deu o seu “de acordo” em conjunto com os demais diretores. Além disso, todas tinham, no mínimo, a assinatura dos dois gerentes executivos dos comitês de marketing do BB – Cláudio de Castro Vasconcelos e Douglas Macedo — e dos dois diretores das áreas de varejo e marketing — respectivamente, Fernando Barbosa de Oliveira e Pizzolato.
Como o dinheiro do fundo Visanet é considerado privado, Barbosa disse que não importava se os recursos eram públicos ou privados, mas, sim, que Pizzolato tinha a posse deles e os desviou em benefício da DNA e em prejuízo dos cofres públicos. E deu o exemplo do peculato do carcereiro, que, numa cadeia pública, rouba os pertences privados dos presos.
“Mas e se o dinheiro estivesse na conta-corrente do preso?”, diz o advogado Lobato. “O carcereiro conseguiria tocar no dinheiro? Não, só sairia de lá se o próprio preso, ou seu representante legal, o retirasse. O dinheiro não estava no BB e só quem podia tirá-lo do fundo Visanet eram os representantes legais do BB. Pizzolato não tinha essa representação; logo, não tinha a posse do dinheiro”, disse Lobato.
Barbosa insistiu em dizer que Pizzolato autorizava sozinho os adiantamentos à DNA, desconsiderando os depoimentos de dirigentes do BB que trabalhavam com ele. Vasconcelos, funcionário do BB por 25 anos, que trabalhou na Dimac, reconheceu sua assinatura em algumas notas e esclareceu: “No BB não existem decisões individualizadas. Todas as decisões são por comitê (…). Rapidamente, pelo que eu vi, essa nota foi submetida ao Conselho Diretor do Banco do Brasil. Ela foi primeiro aprovada no comitê da Diretoria de Marketing, depois no Comitê de Comunicação, de que fazem parte outros diretores da empresa, e, por fim, no Conselho Diretor do banco. Na diretoria de Marketing, quatro pessoas; no Comitê de Comunicação, se não me engano, são nove diretores; no Conselho Diretor do banco tenho a impressão de que são o presidente e mais sete vice-presidentes”.
“Em algum caso era possível a Henrique Pizzolato assinar e autorizar sozinho qualquer verba de publicidade e propaganda, seja verba do BB, seja da Visanet?”, quis saber Lobato. Vasconcelos: “ As decisões são todas colegiadas. Nem o presidente do banco toma decisões isoladas”, num regime instituído no BB em 1995.
Vasconcelos confirmou ainda “o sucesso das campanhas publicitárias desenvolvidas pela DNA, que colocaram o Banco do Brasil na liderança do faturamento de cartões de crédito entre os bancos associados à Visanet”. Esse volume cresceu em média 35% no período de 2001 a 2004, enquanto o mercado teve aumento de 29% no mesmo período.
Barbosa e Lewandowski ignoraram também a auditoria do BB já citada, que mostra que os recursos usados pelo banco para publicidade dos cartões de bandeira Visa foram geridos por Pizzolato basicamente como o haviam sido nos anos 2001–2003. Entre 2001 e 2004, dos cerca de 150 milhões de reais pagos pela CBMP para ações de incentivo ao uso dos cartões de bandeira Visa do BB, tanto no período 2001–2002, quando foram usados 60 milhões de reais, como nos anos 2003 e 2004, quando se usaram 90 milhões de reais, sempre cerca de 80% dos recursos foram antecipados pela CBMP, a pedido do BB, para as agências contratadas.
As antecipações, mostraram os auditores, tanto as de 2001–2002 como as de 2003–2004, foram repassadas às agências contra a apresentação de documentos fiscais no valor global das ações.
O relator também não mencionou o fato de na gestão de Pizzolato terem sido introduzidas melhorias no controle dos gastos nem citou um fato que obviamente deveria ser de seu amplo conhecimento, por constar de um documento encaminhado a ele pelo defensor de Valério, Marcelo Leonardo. O documento mostra que, em 17 de janeiro de 2006, o então gerente executivo de atendimento e controle do BB, Rogério Souza de Oliveira, informou à DNA que havia um saldo negativo de pouco mais de 2 milhões de reais de despesas realizadas até 14 de dezembro de 2004, sobre o qual era necessário que a agência prestasse contas. No documento, Leonardo contra-argumentou dizendo que os gastos efetuados em ações de incentivo de interesse do BB–Visanet em 2005 foram de 12,9 milhões de reais e que, portanto, existe uma diferença, não da DNA para o BB, mas do BB para a DNA.
A denúncia diz ainda que, embora o BB tenha contratado três agências para cuidar da publicidade, apenas a DNA foi beneficiada com antecipações de recursos. Isso é falso, diz Lobato. Em 2001-2002 foram feitas antecipações para todas as empresas de publicidade do BB que prestavam serviços de promoção dos cartões Visa. No segundo semestre de 2002, ainda sob o governo FHC, a direção do banco reestruturou os negócios de publicidade em três pilares: para o varejo, responsável pelos negócios da pessoa física; para o atacado, com os negócios de pessoas jurídicas; e para o governo, que trata de negócios com prefeituras, câmaras municipais, assembleias estaduais, estados e órgãos públicos. Decidiu-se que cada uma das três grandes agências publicitárias que à época prestavam serviços para o BB ficaria com um desses pilares: a Lowe, com a área de governo; a Grottera, com o atacado; e a DNA, que já prestava serviços ao banco havia quase dez anos, ficaria com o varejo, no qual estava o trabalho de promoção dos cartões Visa.
O ministro Barbosa considerou grave, finalmente, o fato de não existir contrato entre a Visanet e a DNA. A Visanet afirma que ele não existia porque os recursos para as ações planejadas pelo BB para promover os cartões Visa eram pagos por ela diretamente aos respectivos fornecedores contratados, cotados e negociados pelo BB. Se a Visanet não tinha contrato formal com a DNA, tampouco o BB tinha contrato com a Visanet. Um parecer do departamento jurídico do banco, de agosto de 2004, que se encontra nos autos, explica que o fundo de incentivos da Visanet não foi criado, em 2001, por um convênio entre o BB e a Visanet, mas, sim, feito por “uma declaração unilateral de vontade” da empresa de cartões, que se dispôs a pagar as ações de incentivo ao uso dos cartões, desde que elas atendessem às condições previstas em seu regulamento. O parecer diz ainda que a forma escolhida pelo BB, de não fazer passar os recursos pelo orçamento do banco, era a melhor do ponto de vista tributário e não criava problemas com a Receita. Em suma, não havia contrato entre DNA e BB para serviços de promoção dos cartões Visa porque isso implicaria desvantagens fiscais para o BB. A ideia não foi de Pizzolato, mas do departamento jurídico do BB.
Por último, o relator Barbosa não considerou relevante que só Pizzolato, dos quatros signatários das notas técnicas que formalizariam o suposto desvio de 73,8 milhões de reais do BB para Valério, foi denunciado pelos dois procuradores-gerais, Souza e Gurgel. Como o desvio não foi provado, isso não seria um problema maior. O problema é que a argumentação exposta neste artigo consta dos autos, mas não foi usada por Barbosa.
* Texto originalmente publicado na revista Retrato do Brasil
NULL
NULL