Saiba o que foi publicado no Dossiê #06: Pornografia
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Primeiro Ato
Numa tarde do inverno passado, Ricardo Darín me abre a porta de sua casa e faz cara de Darín. É a mesma que já vimos em dezenas de filmes: os olhos azuis se fixam nos seus, e as comissuras dos lábios se curvam ligeiramente para cima, não a ponto de produzir um sorriso, mas o suficiente para que você se sinta um eleito.
De pé, sob o batente da porta de madeira da sua casa em Palermo, um antigo bairro de oficinas mecânicas e pessoas tomando chimarrão nas calçadas, agora chamado de Palermo Hollywood pelos corretores imobiliários, seu rosto dispara em mim uma espécie de efeito pavloviano da memória emocional: olho para Darín — o ator premiado por filmes como Nove Rainhas, O Filho da Noiva, O Segredo dos Seus Olhos e o recente Um Conto Chinês — e tenho a sensação enganosa, mas intensa, de conhecê-lo de uma vida inteira.
Ele não se lembrava desse encontro marcado um mês atrás com seu agente, e agora tem pessoas em casa para trabalhar num roteiro. “Mil desculpas de novo. Essas coisas não costumam me acontecer.” Pede um cartão meu para me ligar e marcar outro encontro.
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Intervalo
Em seu penúltimo filme, Um Conto Chinês, Darín é um ex-soldado veterano da Guerra das Malvinas, trabalhando em uma loja de ferragens: rude, antipático, lunático. Um perdedor. Sua rejeição ao mundo exterior é encarnada por uma vizinha simpática demais, uma jovem com uma personalidade singular, que tenta seduzi-lo com uma teimosa afetuosidade. Darín, sem maquiagem, é completamente o oposto.
Na Grécia de Sófocles e Eurípides, um ator era chamado de — hipócrita. Literalmente, o que interpreta. Hoje os atores conservam essa hipocrisia etimológica das origens.
A hipocrisia de Darín é de outro tipo. Ele encarna personagens obscuros, mal-humorados, quase afásicos; em outras palavras, perdedores. Mas, mesmo quando ele precisa dar más notícias, até quando abre a porta da sua casa para dizer na sua cara que se esqueceu de uma entrevista, Darín consegue conquistar você
Segundo Ato
Dois dias depois, Darín me abre outra vez a porta da sua casa em Palermo, e volta a fazer cara de Darín.
A casa, na verdade, são duas casas, típicas do que foi no passado o bairro de Palermo Viejo. Elas foram unidas derrubando-se uma parede divisória. Ao fundo dessa primeira casa há um enorme galpão, para onde Darín dirige-se agora. Após um vestíbulo mobiliado com poltronas estofadas beges, abre-se uma grande sala vazia que parece a nave de uma igreja. Na parede do fundo há uma autêntica tela de cinema. Embutidas em uma parede há duas barras de ginástica. Numa delas balança-se, de cabeça para baixo, a figura de uma mulher com os cabelos emaranhados e os braços cruzados sobre o peito.
“Casei-me com um morcego”, diz Darín. Ele me apresenta a Florencia Bas, sua mulher, uma psicanalista que se solta da barra na parede com o rosto avermelhado. Apresenta-me também a seu filho, um jovem ator de uns 20 anos, cabelos cacheados e bigodinho fino, a quem chamam de El Chino. E a seu cachorro Marón, um spaniel cor de café com leite, que o segue por todo lado.
Darín nos traz xícaras de café e acende o seu primeiro cigarro. É um cinquentão em forma, que cuida do corpo sem ser maníaco. Uma grande parcela de seu encanto reside na sua aparente falta de esforço para encantar.
Intervalo
Em Buenos Aires, a buena onda de Darín é assunto de conversas entre amigos. Uma multidão de pessoas pode atestá-la: o taxista que me leva para a entrevista, e que quando jovem fazia ponto na esquina da casa dele, os jornalistas que já o entrevistaram e aos quais recorro. Há alguns anos, quando três criminosos roubaram sua casa e trancaram a mulher e a filha dele, o ator, ao invés de exigir pulso firme, reagiu com benevolência: “O que é que faz três garotos saírem para roubar? A responsabilidade de formá-los é nossa, e não acho que estejamos fazendo o necessário para que tenham educação, saúde, apoio nas escolas, e que seus pais tenham trabalho”, declarou na ocasião.
Hoje, quando já passa dos 50 anos, Darín encarna, às vezes a contragosto, o papel do ícone do homem argentino, isto é, do homem que todo argentino queria ser. E mais ainda: do homem que cada argentino está convencido de ser, em virtude do verificável complexo de superioridade que seus homens — o clichê dos portenhos — denunciam: uma indefinível mistura de presença física, sedução verbal e caráter vencedor, bem sucedido com mulheres e amigos, e, ainda por cima, bom pai (ser bom marido aplica-se a Darín, mas não é um dispositivo essencial da argentinidade).
“Ninguém neste mundo teve mais sorte do que eu”, diz o ator quando peço que resuma sua carreira. As ocasiões se apresentaram sem que ele as perseguisse; apareceu na televisão pelas mãos dos pais, ambos atores, numa idade em que a maioria das crianças aprende a não molhar as calças; adolescente desengonçado, torna-se o rosto da Pepsi nos Estados Unidos porque uma secretária o coloca à força na sala onde era feita uma seleção de elenco. Até o papel mais importante da sua vida, o que o lançou ao estrelato, caiu em cima dele por acaso (“O papel principal de Nove Rainhas era para ter ido para outro ator, mas ele o recusou e me chamaram”).
Os antepassados do mais carismático ator do cinema em espanhol trabalharam para seu futuro. O bisavô de Darín foi um dos argentinos que desceram de um barco. No seu caso, o barco chegava da Itália, e o filho, avô de Darín, foi um empresário teatral que chegou a ter uma sala própria, o Marconi, um teatro com mais de 1.500 lugares na central avenida Rivadavia, uma das mais importantes de Buenos Aires. O jovem Darín, figlio d’arte, cresce em meio às operetas montadas no teatro do avô, ao futebol no campinho perto de casa, ao culto pelo cinema neorrealista italiano e à Santíssima Trindade de atores formada por Alberto Sordi, Vittorio Gassman e Nino Manfredi (“E Marcello Mastroianni?”, reclama. “Esquecemos Mastroianni!”).
No final da década de 1970, Darín atua em dez filmes. Nos anos seguintes, aplicando os preceitos da sua filosofia de estar sempre em movimento, Darín faz de tudo — rádio, televisão, cinema e acima de tudo teatro — como ator e diretor. Faz Sugar, comédia musical com Susana Giménez em que ele canta e dança, e Art, um drama que permanece por 12 anos sobre os tablados de Buenos Aires e Madri. Sua popularidade vai se transformando em prestígio, e de repente começa a despertar o interesse do cinema sério.
Os anos do governo Menem, aqueles do dólar cotado a um peso, deixam a Argentina prostrada, e alguns anti-heróis começam a ocupar as telas no lugar dos yuppies. Darín, o homem mais sortudo do mundo, está pronto. Cabe a ele interpretar um daqueles papéis que marcam a carreira de um ator: em Nove Rainhas, de Fabián Bielinsky, Darín é um vigarista com “cara de pôquer” que apenas esboça um par de sorrisos no filme inteiro. A essa altura, Darín passa dos quarenta, liberta-se da carga de ser um galã e intui que Nove Rainhas era a ocasião que ele esperava. O filme tem um sucesso mundial, e Darín inaugura o primeiro dos seus personagens arquetípicos. Os seguintes serão variações sobre essa identidade.
Trata-se de um homem solitário, com eterna cara de quem passou uma noite ruim, e que quase se orgulha do seu jeito lacônico. Um homem amargo, que leva desaforo para casa. São personagens nos quais se há algo que os resgata é a dose de ironia contra si mesmos.
Para um ator, a rota do prestígio passa por papéis dramáticos. A comédia é considerada um gênero menor. Darín, desde que começou a fazer filmes dramáticos, passou a ser levado a sério. Isso lhe deu a possibilidade de superar limites e reinventar sua reputação. Mas não a ponto de transformá-lo em um produto de exportação global: Darín recusou dar o passo de se tornar estrela de Hollywood. Oportunidades não lhe faltam, especialmente após o Oscar de O Segredo dos Seus Olhos.
Terceiro Ato
No dia seguinte de se despedir de mim pela segunda vez na porta da sua casa, Darín me liga. Havíamos combinado para que o visitasse no set de um filme que estava rodando, e quer me avisar que chegará ao nosso encontro 15 minutos atrasado. Horas depois, com efeito, Darín chega pontualmente atrasado na sua BMW preta, e a estaciona a alguns metros da entrada de uma videolocadora chamada El Padrino [título em espanhol de O Poderoso Chefão].
À maneira argentina, Darín cumprimenta cada um com um beijo e um abraço. O beijo é mais um roçar de faces, mas o abraço tem a substância de um apertão e uma palmada. O primeiro a recebê-lo é Gonzalo Roldán, dono da locadora e diretor do filme El Destino del Lukong, para quem Darín vem fazer uma ponta. Por causa da finalidade beneficente do filme que está sendo rodado, cujos lucros, supõe-se, irão para um refeitório infantil, o cineasta amador conseguiu que alguns atores famosos participassem do projeto.
Nessa tarde, Darín interpreta durante cinco minutos o pai do protagonista, que é o próprio Roldán. Comporta-se, sem ironia, como se estivesse sendo dirigido pelo próprio Francis Ford Coppola, mas quem o dirige desta vez é o dono da videolocadora El Padrino. O ator, pura e simplesmente, está se divertindo. No final, em vez da uma hora prometida ao cineasta amador, Darín fica três e meia.
Epílogo
Na última vez em que vejo Darín, meses após sua atuação no filme de Roldán, ele tem a cara de um homem a quem roubaram a BMW preta. É uma tarde de outono e, na cozinha da sua casa, ele e seu filho me oferecem uma sessão exclusiva: “Velho, peguei seu carro ontem à noite”, diz Chino. O Darín mais velho desarma em seguida a bomba do mais jovem com um casual: “Sim? Da próxima vez, me deixe um papelzinho”. Diz isso sem deixar de preparar o café na máquina. Papai Darín sorri, enquanto me lança um olhar que interpreto como de pai para pai.
De repente, pensando nos mal-humorados e perdedores que são seus personagens, pergunto-lhe se um ator é um mentiroso. Um hipócrita. “É um jogo”, responde. “É claro que os atores mentem. Mas mentem também os que estão na plateia”, insiste, “brincando de acreditar no que estão vendo na tela”.
Mas há uma hipocrisia, ainda mais grave e substancial, que Darín reivindica acima de tudo para si. “Ser ator é um descanso em relação a si mesmo”, diz em tom de confidência. “Me dá a ilusão de poder entrar e sair da minha vida.”
Darín acaba de voltar da selva brasileira. Lá filmou cenas de Elefante Branco, seu mais novo filme, no qual interpreta um padre da Teologia da Libertação. “Ser ator me permite ser um tremendo filho da puta ou alguém que dedica sua vida a ajudar os demais. Não sou nenhuma dessas pessoas”, me adverte. “Mas, ao mesmo tempo, devo ter algo de cada uma delas em mim.”
Já faz um bom tempo que terminou a hora que me havia prometido. Falamos do projeto da sua próxima viagem em família, a Lago di Cadore, no Vêneto, norte da Itália, de onde provém sua família e é celebrada anualmente uma reunião dos Daríns do mundo inteiro. Nunca foi a nenhuma. Neste ano, propôs-se a destronar um arquiteto norte-americano que foi por anos o Darín mais ilustre. Reúno meu gravador desligado e meu bloco de anotações, sento-me de novo na poltrona e cruzo as pernas. O sol outonal vai ficando opaco conforme a tarde passa, e Marón dorme estático aos pés do seu dono. Então Darín me pergunta com seus olhos azuis: “Outro café”?
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto originalmente publicado na revista peruana Etiqueta Negra
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