Saiba o que foi publicado no Dossiê #06: Pornografia
Leia as outras matérias da edição nº 6 da Revista Samuel
Eles são o novo símbolo dos trabalhadores em luta no país. Os funcionários da Cinecittà, em greve permanente, ocupam desde julho a entrada do histórico complexo da via Tuscolana, na periferia sul de Roma. Marceneiros, eletricistas, técnicos de áudio. São as mãos que nas últimas décadas fizeram os filmes que nos encantaram, que acompanharam com profissionalismo e paixão tantos diretores e atores que por ali passaram nesses longos 75 anos. Protestam contra o novo plano da Cinecittà Studios, liderada pelo empresário romano Luigi Abete, ex-presidente da Confindustria, principal entidade de representação das grandes empresas italianas, e que desde 1997 administra a Hollywood romana. Plano que, segundo os trabalhadores, não deixa dúvidas: “Querem assassinar o cinema através de demissões, privatizações e a ‘cimentificação’ do espaço”, acusa Dario, um dos ocupantes. De templo do cinema a resort de luxo, com um estacionamento anexo com capacidade para seis mil automóveis.
Inaugurada por Mussolini em 1937, a “fábrica de sonhos” produziu mais de três mil filmes, dos quais 90 foram indicados ao Oscar e 47 levaram as estatuetas para casa. Seus estúdios foram frequentados por mestres como Federico Fellini, Luchino Visconti e Francis Ford Coppola. Seria a última claquete? Os trabalhadores não aceitam e decidiram se opor de todas as maneiras, inclusive com o uso de efeitos especiais: eles fizeram nevar em pleno verão em frente ao Coliseu, com flocos disparados por uma das máquinas utilizadas na produção dos filmes.
Os funcionários da Cinecittà conseguiram conquistar a simpatia do público e receberam apoio de sindicatos, partidos de centro-esquerda e até de uma ala do Popolo della Libertà, partido de direita liderado pelo ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi. O apelo ao presidente Giorgio Napolitano para salvar a Cinecittà foi assinado por cineastas como Ettore Scola, Ken Loach, Marco Bellocchio e Giuseppe Tornatore.
Apoie a imprensa independente e alternativa. Assine a Revista Samuel.
A holding
Há 14 anos a administração da fábrica de cinema está nas mãos da Cinecittà Studios, uma sociedade de maioria privada: 20% pertencem ao Estado italiano e 80% à IEG (Italian Entertainment Group). Quem controla a holding — presidida por Luigi Abete — é o empresário Diego Della Valle (o maior acionista, com 33%), junto com o produtor Aurelio De Laurentiis (presidente do Napoli, a equipe de futebol) e a família Haggiag.
O maior tesouro dos estúdios sempre foi a sua força de trabalho, as mãos dos operários que transmitem de geração em geração os segredos do seu ofício. O novo plano industrial, porém, pretende terceirizar a equipe e contratar operadores externos. Quando em 1997 a antiga empresa pública Cinecittà Luce, proprietária dos 400 mil metros quadrados sobre os quais se erguem os estúdios, passou o controle para a iniciativa privada, determinou uma missão muito clara: “O suporte ao cinema italiano, com atenção especial aos jovens cineastas”. Construir um hotel, um estacionamento com seis mil vagas e um resort fazem parte dessa missão? Segundo Abete, sim: “O cinema italiano e a TV não nos permitem sobreviver. Temos de investir nas produções internacionais. Para isso, devemos alcançar a excelência e oferecer serviços de alto nível, como todos os outros estúdios do mundo”.
Os trabalhadores, porém, não estão convencidos. No dia 4 de julho, iniciou-se a mobilização do “comitê de fábrica”.
A guerra entre os empresários e os operários do cinema foi declarada. Já em 2009 a nova direção tinha tomado uma decisão controversa entre os funcionários: o desmembramento da Cinecittà Studios. Começaram a nascer empresas como Cinecittà Entertainment, Cinecittà Village, Edilparco, Cinecittà Digital Factory, todas com a marca Cinecittà, todas controladas pela holding privada IEG.
Os trabalhadores foram divididos entre as diversas empresas. Mas a reorganização corporativa hoje não faz diferença. Para a Cinecittà Studios estão previstas oito demissões, a cessão do ramo de construção com a transferência de mais de 50 unidades e a suspensão de 44 trabalhadores. Para a Cinecittà Digital Factory serão transferidos 41 funcionários do laboratório de revelação e finalização e 47 dos setores digital e de áudio. A empresa tem respondido duramente às greves, cortando o ponto dos funcionários e bloqueando os cartões magnéticos de acesso ao complexo.
A ocupação
Algumas barracas de cam-ping, uma área reservada para as refeições e vários materiais de divulgação do protesto sobre as mesas, mas também muitas cartas de baralho. Assim correm os dias dos ocupantes, graças à ajuda concreta de “quem nos apoia desde o primeiro momento”. Como os jovens do Spartaco, um centro social romano, “que todos os dias trazem comida e participam da ocupação”, explica Dario, que trabalha no setor de pós-produção há 28 anos.
Ao longo dos anos o trabalho mudou bastante, graças à chegada do digital: “No início, a minha tarefa era cortar a película que seria levada às salas de cinema. De 1986 a 1992, fiquei no setor de negativos, onde a chefe era minha mãe. Meu pai também foi operário aqui na Cinecittà”. O que Abete não considerou, diz Dario, “é que para nós a Cinecittà é mais do que o lugar onde trabalhamos”.
Chuva, cansaço e dificuldades cotidianas não distraem os ocupantes das razões do protesto. Como o problema da falta de investimento nos funcionários. “Nesses anos todos, nunca fiz nenhum curso de atualização”, continua Dario. “Os filmes hoje ainda são registrados em película e depois passam para o digital. Mas sabemos bem que em breve se poderá obter o mesmo nível de qualidade com o digital. E nós não estamos prontos.”
E não só: os últimos balanços da Cinecittà Studios estão em queda livre. O valor da produção, que em 2008 era de 40 milhões de euros ao ano, em 2009 diminuiu 40%. “Os nossos preços são tão altos que das 160 produções italianas do último ano, só cinco ou seis foram gravadas nos estúdios da via Tuscolana”, diz Dario.
O abandono
Mesmo assim, a capacidade para competir no mercado é inegável. “Prefiro chamar os operários que trabalham aqui de artistas”, conta Manuela, funcionária dos estúdios há 27 anos. “Você tem de ver os cenários que eles são capazes de montar. Esses empresários acharam por bem mandá-los para o setor de construção. A cenografia será transferida para a via Pontina, nos arredores de Roma, para construir outlets e parques temáticos. Isso significa perder para sempre a prática artesanal adquirida em quase 80 anos de experiência.”
Enquanto isso, os estúdios vão caindo aos pedaços. Para não falar no histórico Teatro 5, o reino de Federico Fellini, o maior estúdio da Europa com seus 3.200 metros quadrados. Há alguns meses houve um incêndio, cujas causas ainda são desconhecidas. “No novo plano industrial está prevista a construção de um novo estúdio”, diz Manuela, com amargura. “Mas qual é a necessidade de construir um novo, se já temos 22 estúdios? Eles deveriam se preocupar em não abandoná-los.” Os funcionários mais antigos da Cinecittà já viram esse filme nos anos 1980, quando uma parte do terreno foi vendida para a construção da Cinecittà2, o primeiro shopping center da capital italiana, inaugurado em 1986. “Na época, também usaram a crise para justificar a venda. Com essa gestão, vamos acabar nos transformando em uma locadora de equipamentos cinematográficos. Perderemos a nossa identidade”, conclui Manuela.
O saber
Roberto é técnico de mixagem de áudio desde 1988. Assim que se formou no Instituto Rossellini de Roma, foi admitido na Cinecittà com um contrato de dois anos de formação. Depois de 15 anos de muito trabalho ao lado do diretor Angelo Raguseo (premiado em Cannes em 2008 pelo filme Il Divo), hoje é um dos dois técnicos que desempenham essa função no setor de áudio. “Para mim era um sonho, o máximo que eu poderia desejar. Trabalhar aqui e fazer aquilo que eu tinha estudado. Mas era uma outra época. Hoje não há ninguém ao meu lado a quem treinar, a quem passar o meu ofício, a minha experiência”, afirma Roberto. “Só a ideia de que tudo isso possa acabar me dói, não posso acreditar na possibilidade de ter de abandonar a Cinecittà, que é a minha vida. E me avilta a arrogância desses empresários, que pensam que podem nos ensinar aquilo que aprendemos em 30 anos de trabalho.”
Tradução Carolina de Assis
* Texto originalmente publicado pela revista italiana Left
NULL
NULL