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Aos poucos, tornou-se claro que o Rio de Janeiro está sendo virado às avessas. Especialmente no que diz respeito a vários aspectos da transformação cultural no contexto da integração de territórios formais e informais da cidade.
“Eu era quase uma autoridade sobre a violência no Rio de Janeiro”, lembra o escritor Julio Ludemir. “Mas em 2008, quando estava trabalhando com Marcus Faustini, que era o secretário de Cultura em Nova Iguaçu, eu pensei: tem alguma coisa diferente aqui. Uma menina grávida escolhia o nome de seu bebê usando o Google Translate. Ela escolheu um nome húngaro”.
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Lindberg Farias era prefeito de Nova Iguaçu, na baixada fluminense. Como coordenadora de Desenvolvimento Social, a mulher dele, Maria Antonia Goulart, estava trabalhando nas bases de uma das áreas mais pobres do Grande Rio. “Na sala ao lado do gabinete da Maria Antonia, havia uma enorme lan house, com trezentos jovens. Eles estavam cuidando de parte da comunicação da cidade”, conta Ludemir.
O que os meninos querem, mais do que qualquer outra coisa, é que alguém repare neles. Essa realidade foi um componente central da análise feita por Luís Eduardo Soares da situação de segurança pública do Rio de Janeiro no fim da década de 1990 e começo dos anos 2000, no seu livro de memórias Meu casaco de general. O livro trata de sua experiência como secretário de Segurança no governo de Anthony Garotinho. Soares notou que o tráfico de drogas atraía os jovens porque os tornava visíveis.
Uma década mais tarde, temos o YouTube e o funk carioca, trilha sonora para o passinho. Faça uma busca no site de vídeos com a palavra “passinho” e você vai encontrar mais de 29 mil possibilidades.
“Eu tenho acesso a 20 mil jovens”, diz Ludemir. Em setembro do ano passado, ele e Rafael Soares organizaram a primeira Batalha do Passinho, com garotos de várias partes da cidade encontrando-se no Sesc-Tijuca para competir.
O passinho é diferente de outras danças brasileiras por favorecer mais os pés do que o ombro ou quadril — como o frevo. Pode até ter raízes em Recife. Conta-se que um bêbado subiu no palco e dançou o frevo durante um show de Os Hawaianos, um conjunto funk de Cidade de Deus. Pode também ser que o passinho tenha surgido durante um baile na favela de Jacarezinho, na Zona Norte, quando um “bandido doidão” fez alguns passos muito diferentes e todo mundo o imitou…
Coreografia
A música funk utilizada para o passinho é limpa, sem referências sexuais marcantes nem a exaltação da violência. Contudo, alguns jovens vestem camisetas estampadas com desenhos de armas de fogo.
Neste ano, a primeira rodada da Batalha do Passinho selecionou 30 participantes por meio de votação na internet. A competição final aconteceu em abril na favela pacificada do Morro do Salgueiro. Os jurados escolheram três bailarinos para serem premiados com até R$ 3 mil.
Para a primeira rodada, os meninos gravaram com celulares e webcams vídeos deles mesmos dançando. Enviaram os vídeos ao YouTube, e então as pessoas votaram, somando dezenas de milhares de votos. Eles também utilizam a internet para procurar coreografias. A explosão de vídeos sugere que o passinho talvez seja a mais pós-moderna de todas as danças, com elementos reconhecíveis de pantomima, frevo, street dance, striptease, dança do ventre, break dancing, balé e contorcionismo circense. Meninos usam jeans skinny e bonés reluzentes (para trás ou para frente), andam descalços e fazem sobrancelha.
Palco
Resta saber para onde vão esses garotos com mais escolaridade, acesso à internet e autoestima do que seus pais tiveram, visto que a maioria não consegue pensar em muita coisa além de passos ultracriativos. “Faço porque gosto de dançar, não tem alternativa, e gosto de brincar com os amigos,” diz Clayton, 19 anos. Ele já terminou os estudos, mas não trabalha, e não sabe o que quer fazer a não ser dançar. Foi seu irmão mais velho, sargento no Exército, que comprou o computador da família há cinco anos.
Quando alguns meninos saíam da favela depois da Batalha, soldados da polícia pacificadora os mandaram parar para uma revista enfileirada, mãos na parede. “É porque algum mau elemento pode se misturar com eles, não se sabe nunca,” disse um soldado. “Precisamos saber quem entra, quem sai, e o que eles podem estar portando.”
É da natureza de fenômenos de cultura popular que eles tendam a ser adotados, favorecidos e apropriados por quem tem mais poder numa sociedade. O samba e o funk carioca já subiram das ruas aos palcos. Mas o passinho, de acordo com Julio Ludemir, pode ser diferente, porque os tempos são diferentes. Os jovens vão ao baile funk de sábado à noite na Cidade Alta para dançar, e não para assistir um show de palco, ele assinala. Hoje, acrescenta, o Facebook é o palco.
Tradução por Henrique Mendes
* Texto originalmente publicado no blog Rio Realblog
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