[O texto a seguir foi publicado originalmente alguns dias após a morte de Chávez; durante mais de uma semana, o corpo do líder bolivariano foi velado na Academia Militar para uma multidão de venezuelanos que formaram filas quilométricas para prestar as últimas homenagens. Nesta sexta-feira (5/4), completa-se um mês do falecimento de Hugo Chávez]
“Queremos ver Chávez”: venezuelanos se aglomeram para fazer uma última homenagem ao “comandante”
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“Não toque no vidro. Não fure a fila. Caminhe. Siga por aqui…”. Hugo Chávez Frías está vestido de gala com um traje verde-oliva e uma boina vermelha. Os punhos em riste desfilam a seu redor. O pavilhão tricolor cobre seu corpo.
Lá fora, sua “maré vermelha” faz frente a um claríssimo céu com o precário abrigo de alguns guarda-chuvas. A calma é interrompida esporadicamente pelo temor de não conseguir selar com um “até logo” uma década de cumplicidades. Nesses instantes, rememorando desesperos como os de abril de 2002, é possível mais uma vez ouvir “queremos ver Chávez”.
A resposta ao clamor é irrefutável: “os três segundos que terão diante de ‘el Comandante’ não se apagarão. Não os percam pela impaciência”.
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Os três aguardados segundos que leva um venezuelano para prestar honras a seu líder são precedidos por uma eternidade forjada em múltiplas filas submetidas à tirania de um sol inclemente e apaziguadas pelo desejo de, uma vez mais, dizer “presente”.
Antes de chegar ao salão Libertador da Academia Militar, estão as conversas da noite anterior, os contratempos de uma longa viagem não planejada, as recordações de mobilizações passadas, os reencontros familiares, a incompreensão do fato irreversível, o horror de um sonho ruim, a comida fria e a bebida quente.
Ao fim das procissões de até 24 horas, a dor foi moldada pelo suor para converter-se em uma serena resignação que se sustenta com o compromisso da continuidade: o refrão “Chávez vive, la lucha sigue” é lançado ao vento e aplaca o desgaste.
As cascas de laranja e as garrafinhas d’água pisadas no barro sinalizam o caminho desde alguma calçada na avenida do Paseo Los Próceres até a estátua equestre do Libertador, última escala antes de alcançar o ataúde com os restos mortais do líder da Revolução Bolivariana.
Não bastou repetir incessantemente os versos de Alí Primera: “Ao que morreu pela vida se chorou”. A dureza dos rostos marcados pelo sofrimento é quebrada na escadaria sob os versos consoladores “canta, canta compañero/ que tu voz sea disparo”.
Velhas com vestidos sujos e cheios de poeira mantêm uma dignidade que não cede aos “espere um momento” dos guardas do local. Uma das senhoras é Marlene Venegas, conhecida como a Caperucita Roja (Chapeuzinho Vermelho), uma espécie de emblema do imaginário popular: “O legado de Chávez é esta revolução. Quem falou em medo! Fez-se herói como Bolívar”.
À sombra mínima de um canhão, Del Valle Brito repousa seus pés cansados. Chegou às 2h da madrugada vindo da cidade de São Félix, a 700 km de Caracas. “Ele merece e agora temos que responder. Plantou algumas sementes e temos que regá-las para que cresçam e se multipliquem pelo mundo.”
Uma sucessão vertiginosa de pequenos detalhes alimentou o terceiro dia de pesar: o beijo de Mahmoud Ahmadinejad e seu punho ao céu; as lágrimas de Alexander Lukashenko, acompanhado de seu filho; os sussurros de Evo Morales; o vozeirão de Cristóbal Jiménez
O funeral de Hugo Chávez não será contado pela História, mas construído como um quebra-cabeças sobre os milhares de “três segundos” que deram a cara ao sol para firmar com seu corpo um pacto irreversível de liberdade.
* Texto originalmente publicado pela AVN, no dia 8 de março de 2013.
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