Kari Louhivuori, professor veterano e diretor de escola, não desiste de seus alunos mais difíceis
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Era o fim do semestre letivo na Escola Abrangente Kirkkojarvi, em Espoo, um vasto subúrbio a oeste de Helsinque, e Kari Louhivuori, veterano professor e diretor da escola, decidiu tentar algo radical para os padrões finlandeses. Um dos alunos do sexto ano, um menino albanês-kosovar, não conseguia acompanhar a grade curricular, resistindo aos melhores esforços do professor. Uma equipe de educadores especiais da escola — incluindo um assistente social, uma enfermeira e um psicólogo — convenceu Louhivuori de que o problema não era de preguiça. Então ele decidiu fazer o menino repetir o ano, uma medida tão rara na Finlândia que se tornou praticamente obsoleta.
“Peguei Besart naquele ano como meu aluno particular”, disse-me Louhivuori no seu gabinete, onde há na parede um pôster do Yellow Submarine, dos Beatles, e no armário uma guitarra elétrica. Quando Besart não estava estudando ciências, geografia e matemática, ele estava estacionado ao lado da mesa de Louhivuori, na frente da sua classe com alunos de 9 e 10 anos, abrindo livros que tirava de uma pilha alta, lendo vagarosamente um deles, depois outro, e então os devorando às dúzias. Ao final do ano, o filho de refugiados kosovares havia dominado a língua cheia de vogais do seu país adotivo e chegara à percepção de que poderia, de fato, aprender.
Anos depois, Besart, então já com 20 anos, apareceu na festa natalina da escola levando uma garrafa de conhaque e um enorme sorriso. “Você me ajudou”, disse ele ao ex-professor. Besart abrira sua própria oficina mecânica e uma firma de limpeza. “Nada demais”, disse Louhivuori. “É isso que fazemos diariamente: preparar a garotada para a vida.”
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Transformação
“Custe o que custar” é a atitude que guia não só os 30 professores da Kirkkojarvi, mas a maioria dos 62 mil educadores em 3.500 escolas da Finlândia, de Turku à Lapônia. Quase 30% das crianças finlandesas recebem algum tipo de ajuda especial durante seus primeiros nove anos de formação educacional. A escola onde Louhivuori leciona atendeu, no ano passado, 240 alunos do primeiro ao nono ano; e, contrariando a reputação finlandesa de homogeneidade étnica, mais de metade dos seus 150 alunos do nível elementar são imigrantes — da Somália, Iraque, Rússia, Bangladesh, Estônia e Etiópia, entre outras nações.
A transformação do sistema educacional finlandês começou há cerca de 40 anos, como principal combustível de um plano de recuperação econômica do país. Os educadores tinham pouca noção do seu sucesso até 2000, quando os primeiros resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), um exame padronizado aplicado a estudantes de 15 anos em mais de 40 locais do mundo, revelaram que os jovens finlandeses eram os melhores leitores. Em 2010, o país apareceu em segundo lugar em ciências, terceiro em leitura e sexto em matemática, entre quase meio milhão de alunos.
Não há exames padronizados obrigatórios na Finlândia, exceto pela prova prestada no último ano do ensino médio. As escolas da Finlândia recebem financiamento público. Cada escola segue as mesmas metas nacionais e contrata pessoal do mesmo universo de educadores pós-graduados, e os empregados das agências governamentais que as gerem, de autoridades locais a funcionários nacionais, são educadores, e não administradores de empresas, líderes militares ou políticos de carreira.
Atividades
Na Finlândia, 93% dos alunos concluem o ensino médio em colégios regulares ou profissionalizantes, cifra que é 17,5 pontos percentuais superior à dos EUA, e 66% seguem para o ensino superior, índice mais elevado de toda a União Europeia. No entanto, a Finlândia gasta cerca de 30% menos por aluno do que os EUA.
Os professores finlandeses passam menos horas na escola por dia e menos tempo nas salas de aula do que os professores americanos. Eles usam o tempo adicional para preparar currículos e avaliar seus alunos. A lição de casa é mínima. A escolaridade compulsória só começa aos 7 anos. “Não temos pressa”, disse Louhivuori. “As crianças aprendem melhor quando estão prontas. Por que estressá-las?”
A Finlândia garante pré-escola para todas as crianças de 5 anos, onde a ênfase é na brincadeira e na socialização. Entre as crianças de 6 anos, 97% frequentam a pré-escola pública, onde começam a ter atividades acadêmicas. As escolas oferecem comida, atendimento médico, acompanhamento pedagógico e serviço de táxi se for necessário.
Além de finlandês, matemática e ciências, os alunos do primeiro ano têm aulas de música, artes, esportes, religião e artesanato têxtil. O inglês começa no terceiro ano; o idioma sueco, no quarto. No quinto ano, entram biologia, geografia, história, física e química.
Alguns dos reformistas conservadores de maior destaque nos Estados Unidos têm se tornado cada vez mais desconfiados da turma do “nós amamos a Finlândia”, ou da chamada “inveja finlandesa”. Eles argumentam que os EUA têm pouco a aprender com um país de apenas 5,4 milhões de habitantes, sendo 4% deles nascidos no exterior. Para ter uma segunda impressão, saí de Espoo e rumei para leste, até um bairro carente de Helsinque chamado Siilitie (“caminho do ouriço”, em finlandês), conhecido por ter o mais antigo projeto habitacional para moradores de baixa renda na Finlândia. O edifício escolar, um caixote de 50 anos, fica numa área arborizada. Metade dos seus 200 alunos do primeiro ao nono ano têm deficiências de aprendizado.
A escola recebe 47 mil euros por mês em verba para contratar auxiliares e professores de educação especial, que recebem salários ligeiramente maiores do que os professores de salas comuns, porque eles precisam cursar um sexto ano de formação universitária, e há mais demanda por seu trabalho. Há um professor (ou assistente) em Siilitie para cada sete alunos.
Iniciativas
A educação na Finlândia nem sempre foi uma maravilha. Até o final da década de 1960, a maioria das crianças deixava a escola pública depois de seis anos (as demais iam para escolas particulares, escolas de “gramática acadêmica” ou “escolas populares”, que tendiam a ser menos rigorosas). Só privilegiados ou sortudos recebiam uma educação de qualidade.
Em 1963, o Parlamento finlandês tomou a ousada decisão de escolher a educação pública como melhor aposta para a recuperação econômica. A segunda decisão crucial ocorreu em 1979, quando reformistas exigiram que todos os professores concluíssem um mestrado de cinco anos em teoria e prática do magistério numa das oito universidades estatais — com custos cobertos pelo Estado. Desde então, os professores na prática obtiveram um status semelhante ao de médicos e advogados.
Em meados da década de 1980, um último conjunto de iniciativas sacudiu das salas de aula os últimos vestígios de regulamentos impostos de cima para baixo. O controle sobre as políticas educacionais passou para as câmaras municipais. O currículo nacional foi reduzido a um conjunto de diretrizes amplas. Todas as crianças deveriam ter aulas nas mesmas salas, com muita ajuda disponível de professores especiais para garantir que nenhuma criança ficasse realmente para trás. A inspetoria fechou suas portas no começo dos anos 1990, deixando a inspeção e a responsabilidade a cargo de professores e diretores.
Imigrantes
Mas ainda há desafios. O paralisante colapso da Finlândia no começo da década de 1990 trouxe novos desafios econômicos para este “Estado europeu confiante e assertivo”, como qualifica David Kirby no seu Uma história concisa da Finlândia. Ao mesmo tempo, imigrantes entraram em grande número no país, aglomerando-se em conjuntos habitacionais para pessoas de baixa renda, e impondo um ônus adicional às escolas.
Há alguns anos, o diretor da escola Kallahti, Timo Heikkinen, começou a notar que, cada vez mais, pais finlandeses ricos, talvez preocupados com o crescente número de crianças somalis na Kallahti, passaram a mandar seus filhos para alguma das duas outras escolas próximas. Para atrair novos alunos, Heikkinen e seus professores conceberam novos cursos de ciências ambientais que tiravam proveito da proximidade da escola com a floresta. E um novo laboratório de biologia com tecnologia 3D permite que alunos mais velhos observem o sangue fluindo dentro do corpo humano.
O resultado ainda não apareceu, admitiu Heikkinen, “mas estamos sempre buscando formas de melhorar”.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto originalmente publicado na revista Smithsonian
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