Homenagem dos amigos ao jovem MC, morto em abril de 2011
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É de manhã cedo em Santos, litoral paulista. MC Neguinho do Caxeta retorna de um show para casa. Um carro faz uma ultrapassagem, ouvem-se tiros. Neguinho é alvejado quatro vezes no peito e no ombro, a sua companheira salta do carro em movimento. Outra mulher, no banco de trás do carro, se joga no chão e sofre apenas ferimentos leves. Neguinho consegue conduzir o carro até sua casa e é levado para o hospital. No mesmo dia, 25 de junho de 2012, as páginas dos jornais registravam que os três passageiros tinham sobrevivido.
Enquanto esse cenário se desenhava, eu estava sentada no ônibus seguindo de São Paulo para Santos. Queria chegar a tempo ao tribunal. Nesta manhã iria começar o julgamento de um policial que, entre outros, era acusado de ter assassinado MC Duda do Marapé, no ano passado.
A série de assassinatos de músicos de bailes funk na Baixada Santista começou em abril de 2010, com MC Felipe Boladão e DJ Felipe Silva. Até hoje, não há nenhuma pista ou testemunha. No assassinato de MC Duda do Marapé, em abril de 2011, um cartucho de bala calibre 40 foi encontrado. O mesmo calibre utilizado também pela polícia. Em 2012, também em abril, essa realidade voltou a se repetir — MC Primo e MC Careca foram assassinados em apenas algumas semanas. Um na rua, o outro em seu local de trabalho, no salão de cabeleireiro. Três policiais foram presos, mas libertados após três meses de reclusão.
Já em 2010, o jornal local A Tribuna noticiava que policiais criminosos manipulavam as armas, para que as provas de balística fossem falsificadas. Dois policiais, em condição de anonimato, explicaram em entrevista que eles eram membros de um grupo de extermínio atuante em Santos. Eles não só matavam como também forjavam provas e ajudavam os colegas.
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Mensagem
Quando cheguei a Santos, fui diretamente da estação rodoviária para o tribunal. Buscava me encontrar com Débora Maria da Silva. Ela é membro do grupo Mães de Maio, que demonstrou sua solidariedade para com as mortes dos MCs. Débora está convencida de que policiais corruptos estão envolvidos nos assassinatos, assim como na morte do seu filho, em maio de 2006. Quando perguntei se ela acreditava que outras facções tivessem algum envolvimento, Débora afirmou: “Esse padrão é incompatível com os grupos de traficantes. Os assassinos querem transmitir uma mensagem diferente”.
Mas qual mensagem e por que seriam MCs os principais alvos dos grupos de extermínio formados por policiais? Eu fiz essa pergunta ao longo dos últimos meses a muita gente em Santos e em São Paulo. Realmente todos os MCs que foram assassinados nos últimos três anos pertenciam a um gênero musical que tem o nome de Funk Proibidão. Os funkeiros descrevem neste tipo de música um mundo no qual o tráfico de drogas, assaltos e homicídios fazem parte do cotidiano, assim como policiais corruptos. Eles cantam em nome da criminalidade, não em nome da lei e da ordem. Segundo eles, só existem essas duas opções.
“Perifa”
Na imprensa, é comum que tratem os misteriosos assassinatos na Baixada Santista como ocorrências dos subúrbios periféricos. Mas, analisando melhor, fica claro que essas áreas são centrais. “Periferia é um termo usado muitas vezes como um código para a ‘precariedade’”, confirmou o historiador Danilo Dara. “São sempre os trabalhadores pobres que são expulsos para fora das regiões centrais, para assim abrir espaço para novas construções. Essas áreas negligenciadas da cidade são esquecidas e não se investe nada nelas.”
Danilo mora em São Paulo, mas nos últimos meses trabalhou em Santos, para o Instituto Polis. O Instituto Polis é financiado, entre outros, pela Petrobras, para monitorar de forma sistemática o impacto social do boom na cidade de Santos e região da Baixada. Oficialmente, o objetivo dessa iniciativa é democratizar o processo e reduzir o impacto social negativo. Assim, grupos e iniciativas que poderiam perturbar o processo são integrados, mas de acordo com regras já estabelecidas, e não sujeitas a um processo democrático, de acordo com Danilo. “Para mim, isso parece mais teatro, teatro de democracia, o teatro de participação. Movimentos sociais são eficazes apenas quando eles permanecem autônomos.”
Revide
As Mães de Maio juntaram-se em 2006, quando seus filhos foram mortos. Naquele ano, morreram em poucos dias centenas de jovens nas ruas de São Paulo e na Baixada. Dias antes disso, rebeliões estouraram nas prisões de São Paulo, todas atribuídas à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).
Em maio de 2006, o PCC organizou o maior banho de sangue em São Paulo. Foi motivado pela chantagem de seus líderes por policiais corruptos, e por ter sido decidida a transferência de seus líderes para prisões de alta segurança. O PCC fez então reféns dentro das prisões, e atacou, simultaneamente, postos policiais por toda a cidade. Três dias depois a cidade estava fechada e o governo declarou toque de recolher noturno. A maioria das pessoas assistia a tudo em estado de choque diante de seu televisor.
Nesse período morreram, oficialmente, cerca de 200 pessoas. Organizações de direitos humanos, porém, falam em 500. O povo acreditava que a morte dessas pessoas teria sido culpa do PCC. Só com o tempo, apesar de a polícia se esforçar para manter ocultos os arquivos, ficou claro que policiais tinham criado um tipo de “revide”. As vítimas eram na maioria jovens e pobres, sobretudo negros. Viviam nas periferias. Alguns tinham registro policial, outros já tinham passado pela prisão. Mas a maioria das vítimas era estudante e trabalhador. Normalmente, homens, mas se estivessem com as namoradas ou mulheres ao lado, elas também eram mortas. Além de São Paulo, os arredores de Santos também foram alvo de assassinatos.
As Mães de Maio estão sendo muito procuradas, ouvidas e convidadas. Recebem prêmios e conquistam, passo a passo, alguns de seus objetivos, não apenas moralmente, mas também judicialmente. No mês de junho a sepultura do filho de Débora foi reaberta, com inúmeras câmeras direcionadas para ela, enquanto chora nos braços de uma amiga. Ela tinha conseguido, após seis anos de investigação, a exumação do corpo do seu filho para recuperar uma bala que ainda estaria alojada em seu corpo. Igualmente longa é também a luta para que esse caso seja investigado a partir desse passo.
Ataques
Durante o nosso encontro em Santos, a perícia médica lhe telefonou, e Débora chorou. Desta vez de alívio, por terem encontrado a bala, uma pista que pode levar ao assassino.Durante o meu encontro com Débora, ela tenta entrar em contato com os familiares dos MCs assassinados. Ela quer que eles se juntem ao movimento. Mas, depois que o pai do MC Felipe Boladão foi ameaçado, passando a viver sob proteção policial e escondido, ninguém quer falar com ela. Em geral, todos se encontram em estado de choque por ainda há pouco tempo MC Neguinho ter sido quase uma nova vítima. Apenas uma semana depois do ocorrido, Neguinho deu uma entrevista para a televisão. Ele está muito magro e pálido, e com o pavor expresso no rosto. “Eu não tenho ideia nenhuma de quem queria me matar. Eu não tenho inimigos”, repete por diversas vezes.
Somente uma investigação policial e um julgamento justo devem definir quem foram os responsáveis pela morte dos MCs. Mas é justamente na polícia que muitas pessoas não confiam. Em um mês a polícia mata entre 20 a 30 pessoas, somente em São Paulo. A justificativa é a “resistência seguida de morte”. Em maio, o número chegou a 50 mortes. Em junho, morreram, surpreendentemente, muitos policiais militares, enquanto trabalhavam nos chamados “bicos”.
Estaria São Paulo vivendo novamente um terror e um “revide” como em maio de 2006? Vários ônibus foram queimados e linhas suspensas. As pessoas ficam desemparadas nas ruas. Essas não são boas notícias para um país que em dois anos deve organizar um Mundial de futebol e, em quatro anos, os Jogos Olímpicos. Mas, pelo menos, São Paulo segue agora sob os holofotes da mídia, assim como de órgãos federais. Em agosto, o Ministério Público Federal afirmou a necessidade de trocar o comando da polícia de São Paulo, uma vez que a instituição aparentemente havia perdido o controle.
“Na semana passada”, diz Vinícius, de São Paulo, “a polícia entrou num baile funk e começou a disparar do nada”. Como assim? “Não sei, do nada as ruas estavam bloqueadas e eles começaram a atirar. Você tem que correr ou se esconder numa casa”. Vinícius tem 15 anos e é membro do grupo Funk pede Paz no Facebook. Pela primeira vez, marcaram encontro pela internet para o enterro do MC Careca em Santos: “Nós criamos, a partir de uma rede de festas, algo novo”. Os jovens querem desconstruir a criminalização do baile funk e estão produzindo um vídeo onde aparecem, choram pelos mortos e pedem para que essa situação não continue assim. Outros publicaram uma música com o titulo Funk pede Paz. Também planejam contato com prefeitos e vereadores, e organizam mais demonstrações que eles chamam de caminhadas.
Encontro
Vinícius vive na Zona Leste de São Paulo. Marcamos um encontro lá, e tive então de andar uma hora e meia de trem, até o Itaim Paulista. De manhã cedo o trem está quase vazio. Todos seguem pelo fluxo contrário para ir trabalhar.
Vinícius parece ainda mais jovem do que um garoto de 15 anos. Seu capuz está fortemente amarrado na cabeça. Seu rosto estreito parece incrivelmente vulnerável. Não é fácil acompanhar o raciocínio de Vinícius. Ele fala que há muitos bailes funk, quase toda noite, mas que, por conta da violência que está destruindo a cena, quase não acontecem mais. Há três meses que não há baile algum, desde abril, com a morte do MC que fora assassinado na Baixada Santista.
Depois entendi que Vinícius e os jovens chamam tudo de baile funk. Podem ser festas de rua que começam com pouca gente, mas acabam juntando cerca de mil pessoas. Nessas festas, aparecem carros com potentes autofalantes. Nesses eventos, não há somente funk, mas também hip hop e pagode. Também são chamadas de baile funk as grandes festas, com performances ao vivo, controle de entrada de pessoas, segurança etc., mas esse tipo de festa não tem acontecido mais.
Vinícius tem respostas curtas e precisas. Claro, essa é a maneira de um jovem de 15 anos demonstrar que é legal. Mas também são as circunstâncias. Ele me observa seriamente, não ri. No fim da nossa conversa, eu lhe pergunto se ele tem um sonho. Por momentos seus olhos brilham e surge um sorriso. Ele diz sem hesitar: “Uma festa de baile funk tão grande que iria parar São Paulo”. Ele utiliza a mesma frase que a imprensa utilizava para falar de maio de 2006, quando o sistema prisional parou a cidade. Não tenho noção se ele tinha consciência disso. Mas o sonho é claro. Toda a cidade deveria se unir por um batidão.
Tradução por Bruno Ribeiro, para a Caros Amigos
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