Fim do sonho espanhol: poucos postos de trabalho, baixos salários, falta de perspectivas para os jovens
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A imagem da Espanha no mundo é mais ou menos assim: paella, sesta, sol, vestidos estampados, toureiros, sangrias e olé. Hoje, no entanto (ou também), é assim: desempregados, despejos, endividamento, indignação, cortes de pessoal nas empresas e caras de “vamos ver como saímos dessa”.
Mas voltemos por um momento a 2007, a.C. (antes da Crise). Com um PIB (Produto Interno Bruto) maior do que o do Canadá, a Espanha faz parte da “liga dos campeões” da prosperidade. A economia cresce em ritmo feroz, a taxa de desemprego atinge o ridículo nível de 8% — a mais baixa desde 1978 — e, pela primeira vez, o país recebe imigração massiva.
O “milagre econômico espanhol”, assim chamado quando começou em 1998, era sustentado por alguns pilares. O governo incentivou a construção, urbanizando áreas que nunca tinham sido urbanas, e os bancos emprestaram milhões às imobiliárias: o litoral encheu-se de edifícios; o campo, de chalés; os povoados, de Guggenheims; e as ruas, de novos ricos. Só em 2005, as 800 mil residências construídas na Espanha superaram as obras erguidas na Alemanha, Reino Unido e França juntos. Como essas casas tinham de ser vendidas, os bancos abriram crédito como quem abre uma represa.
Com o maior parque imobiliário da União Europeia em plena construção, a necessidade de mão de obra aumentou, e do céu caíram milhões de latino-americanos atraídos pelo Spanish dream. Por terra e pelo mar chegaram milhões de africanos e gente do leste europeu. A Espanha conjugava o futuro perfeito. Mas os preços dos imóveis estavam inflacionadíssimos: um apartamento normalzinho em Madri ou Barcelona podia custar meio milhão de dólares (o preço médio nacional era de US$ 200 mil). Ainda assim, com esses preços, os apartamentos eram vendidos. As pessoas assinavam financiamentos de quarenta anos, com parcelas de 80% do seu salário, mas havia salário e todos faziam assim.
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Dominó
Em 17 de setembro de 2008, do outro lado do Atlântico, um banco norte-americano quebrou. A falência do Lehman Brothers equivaleu a um dedo tocando a primeira pedra de um jogo de dominó. Anos felizes de créditos a entidades e pessoas de duvidosa solvência mandaram a conta. Os bancos norte-americanos foram parar na unidade de terapia intensiva, e os espanhóis tiveram um infarto e deixaram de dar dinheiro. O consumo perdeu o eixo, 70 mil empresas fecharam as portas e os seus trabalhadores foram para as ruas. E, é claro, pessoas que não trabalham não podem pagar suas dívidas.
De 2008 a 2009 foi uma barbárie: de dois milhões e meio de desempregados, o número passou a quatro milhões e duzentos mil. Em 2012, seis pessoas por minuto, 375 por hora, nove mil trabalhadores eram demitidos diariamente.
Francisco Hernando foi uma criança “dickensiana”: passou a sua infância em um barraco e foi um sem-teto até os 29 anos, quando comprou sua primeira casa. Em 2006, dizia ter uma fortuna de US$ 800 milhões. Enquanto alguns o acusavam de corrupção, outros o admiravam por ter encarnado a ideia de um self-made man ibérico. A construção, que leva seu nome escrito em dourado, é a maior obra privada da história da Espanha, com mais de 13 mil residências projetadas. Porém, em 2008, quando os bancos fecharam a chavezinha dos novos ricos, Hernando tinha tantas dívidas que a construção, recém-inaugurada, passou a ser propriedade das cadernetas de poupança que a financiaram. Ao ver que a Espanha afundava, Hernando fugiu.
O conjunto habitacional Francisco Hernando, em Seseña (Toledo), é o museu da crise com todo o seu desalinho. Ali não mora ninguém. Quase ninguém.
Por uma avenida vazia, pós-apocalíptica, o vento arrasta um potinho vazio de iogurte e seu troc, troc, troc é um escândalo. De vez em quando passa uma pessoa. Anna, polonesa, mora há pouco tempo em um dos edifícios de Hernando. Diante da falta de compradores, agora há aluguéis a preços convenientes. Os apartamentos, que há quatro anos custavam US$ 370 mil, baixaram de preço e custam hoje US$ 92 mil dólares. E nem assim são vendidos.
Luxo
Carmen — jaqueta de lã lilás, saia abaixo dos joelhos — é uma dona de casa madrilenha. Ela e seu marido aposentado viviam sem sobressaltos. A pensão do marido, “nem muito, nem pouco”, era suficiente. A casa — o seu imóvel — foi comprada quando a moeda ainda era a peseta, quando o menino era uma criança. O filho, que trabalhava em uma fábrica, decidiu comprar um apartamento há três anos. Papai e mamãe foram os fiadores. Ao assinar o documento, ninguém pensou que a crise chegaria, porém ela veio: um corte de pessoal deixou o jovem desempregado, tiraram-lhe a casa por não conseguir pagar as prestações do financiamento, e agora o banco quer a casa de seus pais.
“Quem dá de presente caviar honra o seu convidado”, leio na entrada do Salão de Gourmets, no Ifema, o centro de convenções onde se realizam as feiras em Madri. O estande do caviar iraniano Caspian Pearl é o maior e mais suntuoso de uma feira grande e suntuosa. A encarregada faz um muxoxo com os lábios antes de responder se a crise afetou o consumo de caviar na Espanha: “O preço baixou um pouquinho, mas vamos lá, não é uma queda que deva ser considerada importante”.
De acordo com um estudo da Luxury Spain (Associação Espanhola de Luxo), em 2011 as vendas de produtos exclusivos no país tiveram uma alta de 25% em relação a 2010. Entre presuntos Bellota expostos como obras de arte, chocolate com ouro de vinte e três quilates e água da marca Porsche, passeia Marisa Varona com ar de mal humorada. Proprietária de um catering de luxo, reclama que os fornecedores não a atenderam “de forma profissional”. “É necessário recuperar o glamour dos outros anos. Na feira e no país: falta glamour.”
Esquizofrenia
Se alguém chegasse a Madri, digamos, de uma ilha remota, não entenderia nada. O ilhéu veria nas bancas de jornal as seguintes manchetes: El País: “Rajoy prepara ‘medidas contundentes’ para espantar o fantasma do resgate”; Diario de Jerez: “Espanha entra em beco sem saída”.
O tempo todo, todos os dias, em qualquer formato, estas são as notícias, as últimas notícias. Esse visitante, porém, aterrorizado pela imprensa, pensando que será assaltado em breve por uma massa de gente desesperada para mendigar um pedaço de pão, andaria alguns passos e veria a seguinte cena: bares com mesas lotadas nas calçadas, restaurantes, lojas e supermercados todos cheios, fila para comprar produtos de tecnologia, gente saindo dos teatros e dos cinemas.
Josep-Francesc Vall, docente na Esade, universidade de negócios com sede em Barcelona, e renomado analista de consumo na Espanha, explica-me essa esquizofrenia. “Por um lado, o número de pessoas que não perderam seus empregos é muito maior do que o de pessoas que estão desempregadas. Por outro lado, as famílias estão se convertendo em um poder de resistência, o que permite que muitos membros que estão desempregados possam continuar alimentando-se regularmente. Cabe destacar o papel de muitos aposentados que graças aos seus rendimentos são capazes de manter uma família.”
Para Valls, a diferença entre os hábitos de consumo antes da crise e agora é que todos olham os preços e fazem comparações. Os comerciantes percebem que agora é assim, então tome ofertas, promoções, descontos.
“É fácil afirmar que há uma experiência subjetiva da crise, provavelmente independentemente da situação socioeconômica de cada um”, diz Ricardo López, psiquiatra de um hospital público da região de Castilla-La Mancha. Para explicar isso, podemos ficar com uma visão simplista e considerar que os meios de comunicação e os políticos transmitem uma imagem apocalíptica e isso gera temor, ou considerar que há um fenômeno de retroalimentação. A retroalimentação consiste, segundo López, na existência de um grupo importante de pessoas desempregadas (25% da população), outro de pessoas com dívidas que não podem quitar (talvez 35%) e 12% de pessoas empregadas que sentem que seu emprego está ameaçado pela má situação econômica da empresa onde trabalham, pelos cortes do governo.
Perspectivas
“Crise de isto-é-o-que-existe” é como a define Verónica Vicente, jornalista de 29 anos, que suspeita que seu futuro, como o de 300 mil espanhóis que saíram do país desde que a crise surgiu, está no exterior. A jovem de Alicante recebeu seu diploma no mesmo ano em que a Espanha ganhava o título de país em crise. Encadeou trabalhos de bolsista, mal remunerados ou diretamente gratuitos, com um trabalho em um jornal à beira da falência e outro, que sem previsão de fechar, exige muito por salário exíguo.
“Nunca trabalhei tanto por tão pouco, não passo fome e não compro roupa, não vou ao cinema e não viajo. Isso não é apocalíptico, mas tampouco poderia construir nada por minha conta se minha família não me desse respaldo financeiro”, disse ela.
Pessoas como Verónica receberam dos meios de comunicação um apelido: mileuristas. Trata-se de gente preparadíssima, que não ganha nem mil euros. O baixo salário não é o pior, mas sim as perspectivas. Em um país cada vez mais envelhecido e com tanta gente jovem que não tem acesso ao Seguro Social, o famoso estado de bem estar espanhol (com direito à saúde, educação, aposentadoria para os mais velhos) está ameaçado.
É domingo e é primavera. A rua Argumosa, em Madri, está cheia de gente. Os garçons saem dos bares com bandejas cheias de cervejas, azeitonas e batatas fritas e, diante dos copos gelados, volta a palavra: crise, crise, a crise. O inverno, porém, foi antipático, e agora o sol começa a esquentar. Nas mesas, dá para ouvir risadas, gente xingando como sempre se ri e se xinga na Espanha. Neste domingo de primavera, nesta esquina, a única coisa amarga é a cerveja.
Tradução por Mari-Jô Zilveti
* Texto originalmente publicado na revista mexicana Gatopardo
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