Wan Kat e seu livro de receitas para melhorar o mundo
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Wan Kat é um personagem muito peculiar no panteão da culinária internacional. Nascido na Holanda, graças aos pais pôde viver a experiência das comunidades hippies dos anos 1970 e muito cedo se aproximou do universo dos ambientalistas e do ativismo político. Acabou por ser conhecido como o cozinheiro dos protestos.
Das grandes manifestações contra a energia nuclear nos anos 1980 aos campos de refugiados nos Bálcãs até as multidões reunidas para expressar o dissenso durante o G8, a sua “cozinha móvel vegetariana” segue os ativistas políticos desde 1981.
Nós o encontramos enquanto ele organizava um grande jantar com sobras de comida. Com um olhar sereno e luminoso, Wan Kat lembra um velho marinheiro em uma breve pausa em terra firme.
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Quando se iniciou a sua aventura como cozinheiro de grandes eventos?
No início dos anos 1980, durante uma grande manifestação contra a bomba atômica na Holanda. Três semanas antes, pensávamos sobre onde faríamos as barricadas e de onde viriam os ônibus. Naquele tempo todos ainda comiam nas redes de fast food porque viviam em grandes cidades. A alimentação alternativa ou biológica era algo que dizia respeito a um grupo de idiotas que vinham do campo e ninguém tinha ideia de como matar a fome de 15 mil pessoas.Decidimos, então, cozinhar e fazer esse trabalho de graça, e as pessoas nos dariam o que achassem justo. Pensaram que fôssemos malucos, mas nos confiaram a tarefa. Acabamos nos lançando na empreitada e hoje, passados 25 anos, posso dizer que preparamos uma gororoba intragável, mas o pessoal gostou e conseguimos, inclusive, pagar os agricultores de quem tínhamos comprado fiado os ingredientes. Depois, visto que já tínhamos a expertise, nos chamaram da Alemanha para cuidar da comida durante uma enorme manifestação. E foi assim que tudo começou.
Como vocês se estruturavam?
A coisa cresceu rapidamente, compramos picapes e equipamentos e assim se iniciou a experiência do Coletivo Rampenplan, palavra que significa “planejamento desastroso”. A nossa ideia era que os maiores desastres são provocados pelo homem, portanto tínhamos de bloquear os projetos que os originavam, como instalações químicas ou nucleares. Estávamos saindo da universidade e ainda não tínhamos feito nada de prático nas nossas vidas. O coletivo ficou muito conhecido na Europa, no âmbito do movimento pacifista.
Já participou de ações políticas na Itália?
Sim, durante a reunião do G8, em Gênova [2001], e também antes, nos anos 1980, estive em contato com a Lega Ambiente em Milão para falar sobre chuvas ácidas.
O mundo do ativismo político que inclui também muitos jovens, squatters…
Sim, frequentemente cozinhamos entre os sem-teto e a polícia. Às vezes estamos tão no meio que eu alerto a polícia, dizendo que estamos cozinhando e que temos panelas de até 300 litros: o óleo fervente em meio aos jatos d’água usados para dispersar a multidão pode ser muito perigoso. Então perguntamos se devemos cozinhar antes ou depois, ou se devemos parar e levar tudo embora, mas deixamos claro que demora mais de uma hora para podermos transportar o óleo…
Que receitas vocês preparam nessas situações?
As receitas são muito simples. Meus pais eram artistas e nos anos 1950 não se fazia dinheiro com arte. Eles construíram uma casa junto com outros setenta artistas e viviam do que sobrava no fim da feira, e geralmente não era carne. Quando saí da universidade, queria entender melhor alguns mecanismos e trabalhei durante dois anos em uma fábrica processadora de carne. Mesmo já sendo vegetariano, lá encontrei ainda mais motivação para continuar sendo. Depois, viajando pelo mundo, vi tanta gente passando fome e analisei as implicações do consumo de carne em relação à destruição dos alimentos. Nós cozinhamos somente receitas vegetarianas ou veganas, mas tentamos escolher aquelas que contemplem também as necessidades das pessoas que normalmente comem carne. Além disso, durante as manifestações, as pessoas não querem comer pratos particularmente “exóticos”. Elas preferem a comida que a vovó preparava. Quando chegam os jatos d’água, ou há tempo para uma pausa das barricadas, você quer um lugar onde possa encontrar um paizão ou uma mãezona que cuide de você, e é bom que tenha também uma comida gostosa. O engraçado é que na Alemanha podemos preparar uma simples sopa de batatas e o pessoal adora.
Vi que você tem uma conta no Twitter. Que importância você acha que a web e a tecnologia em geral têm nesse momento?
Escrevi a minha tese no fim dos anos 1970. Os computadores pessoais praticamente não existiam, mas eu acreditava que, em algum momento, eles se tornariam um modo de controlar as pessoas através de uma rede de conexões, um pouco como o Grande Irmão, então eu era fortemente contra. Contudo, ainda antes do advento da web, era possível utilizar um sistema de correio eletrônico através da rede da universidade e eu comecei a me comunicar com pessoas em toda a Europa. Quando estive na Bósnia, era impossível telefonar para fora do país. Criamos uma rede de computadores chamada Zamir, que significa “pela paz”, e formamos assim o primeiro sistema de conexão em uma zona de guerra. Zamir é, ainda hoje, o segundo maior provedor da Croácia. Depois dessas experiências eu obviamente mudei a minha visão sobre o assunto: o princípio é “engorda o monstro até ele explodir!”, porque todas as informações podem ser filtradas, mas é necessário que alguém o faça, e esse é um trabalho gigantesco.
Você vive em uma pequena vila nos arredores de Berlim. Acredita que somente as pequenas comunidades poderão sobreviver?
O nosso mundo, assim como nós o temos vivido nas últimas décadas, está entrando em colapso. O estilo de vida é insustentável e eu me pergunto quem vai pagar a minha aposentadoria. A resposta está nos grupos de pessoas autossustentáveis: em qualquer lugar é possível produzir alimentos suficientes para sobreviver, não é necessário comer banana ou outras comidas trazidas do outro lado do planeta. Não haverá mais combustível para transportar todos aqueles produtos para o supermercado. A coisa mais incrível é que podemos produzir alimentos suficientes para todos, mas estamos subutilizando nosso território para produzir coisas das quais não precisamos, enquanto temos de importar o resto. Isso significa que somente as pequenas comunidades poderão sobreviver, e não as pessoas sozinhas.
As grandes metrópoles podem de alguma forma reproduzir esse modelo?
Claro, se começarem a cooperar com o campo. Durante o cerco a Sarajevo, por exemplo, nada podia entrar na cidade, por isso a comida era produzida no espaço urbano. Passamos vinte toneladas de sementes debaixo do nariz dos sérvios e a população começou a cultivá-las. Para onde você olhasse, veria pés de tomate ou de abobrinha. Inclusive perto das trincheiras onde ficavam os soldados. É essa a atitude que os habitantes das grandes metrópoles deveriam retomar. As flores são lindas nos parques, mas as verduras também têm o seu apelo! É necessária uma alternativa ao hambúrguer, uma fórmula para ativar uma cooperação entre os grandes centros urbanos e o campo. Para cidades como Turim, Roma ou Milão é muito difícil encontrar soluções para esses problemas. Mas se começarem agora, talvez daqui a vinte anos os primeiros resultados possam ser vistos. Depois de mais de trinta anos de batalha, finalmente as pessoas começam a dizer que talvez esses (ou seja, nós) não sejam só uns idiotas gritando no deserto… Não é preciso que aconteça uma guerra, em qualquer lugar é possível chegar a esse modo de pensar. E não dá pra viver só de hambúrguer.
Tradução por Carolina de Assis
* Texto publicado originalmente no diário italiano il Manifesto
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