Corredores na linha de largada da corrida Discovery Kenya: sucesso é fruto dos genes ou da cultura?
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Duas horas, 31 minutos e 51 segundos após a maratona de Boston de 2012 começar, os campeões feminino e masculino já haviam chegado ao final. Poucos minutos depois, os espectadores notaram algo. Os três primeiros colocados entre os homens eram todos quenianos. Quenianas também eram as primeira, segunda e terceira colocadas entre as mulheres. Foi mais uma vitrine para os corredores quenianos e mais uma razão para perguntar: como isso acontece?
Para uma questão popular e direta como essa, há menos consenso do que se imagina. Pesquisas feitas no Ocidente sobre a natureza de corredores quenianos, e de atletas africanos bem sucedidos em geral, são complicadas por algumas questões raciais particularmente espinhosas. Há algo de torpe, afinal, no fato de cientistas brancos avaliarem atributos físicos de africanos. Mas essa hesitação em estudar de fato o sucesso de corredores quenianos permitiu que algumas teorias provavelmente falsas, e muitas vezes culturalmente reducionistas, persistissem.
As estatísticas são difíceis de serem ignoradas. Esse país de porte médio, com 41 milhões de habitantes, domina o mundo em corridas competitivas. Pegue qualquer corrida de longa distância. Você vai descobrir que de 70% a 80% de seus vencedores desde o fim dos anos 1980, quando a nutrição e a tecnologia da África Oriental começaram a chegar perto das do Ocidente, vieram do Quênia. Desde 1988, por exemplo, 20 dos 25 homens campeões da maratona de Boston são quenianos. As mulheres quenianas começaram mais tarde, aparentemente, não tendo vencido nenhuma das maratonas antes de 2000 (possivelmente devido a leis discriminatórias e a uma tradição de forçar as garotas a se casarem, ambas parcialmente abolidas pelas reformas de 1990). Desde então, venceram 9 de 13 provas. O recorde masculino na maratona olímpica é mais desigual, tendo alcançado as três primeiras colocações em apenas quatro das últimas seis corridas. Ainda assim, nada mal para um país. E ainda mais incrível é que três quartos dos campeões quenianos venham de uma minoria étnica de 4,4 milhões, ou 0,06% da população global.
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Sucesso
Verificou-se que o sucesso dos quenianos pode ser inato. Dois estudos europeus diferentes feitos em uma pequena região do Quênia ocidental, que produz a maioria dos campeões, revelaram que homens jovens podem, com apenas poucos meses de treino, superar com segurança alguns dos melhores corredores profissionais do Ocidente. Em outras palavras, eles aparentam ter uma vantagem física comum a seu grupo e que deve ser genética. Os estudos descobriram diferenças significativas no índice de massa corporal e estrutura óssea entre os profissionais do Ocidente e os amadores do Quênia que os superaram. Os quenianos estudados tinham menos massa por altura, pernas mais longas, troncos mais curtos e membros mais delgados. Um dos pesquisadores descreveu uma das diferenças físicas quenianas como “pernas estilo pássaro”, observando que esses traços poderiam fazer deles corredores mais eficientes, especialmente em longas distâncias.
Surpreendentemente, textos populares escritos no Ocidente sobre o bom desempenho dos quenianos em corridas parecem focar menos nessas distinções genéticas e mais em diferenças culturais. Durante anos, o argumento cultural vem sendo que os quenianos se tornaram grandes corredores porque, frequentemente, correm muitas milhas de e para a escola todos os dias. Mas, cerca de uma década atrás, alguém começou a perguntar a quenianos reais se isso era verdade, e verificou-se que o fato não passava de um produto da imaginação de ocidentais: 14 de 20 quenianos pesquisados disseram que eles caminhavam ou pegavam um ônibus para a escola, como faz a maioria das crianças nos EUA.
Outro argumento cultural diz que eles correm descalços, o que ajuda a desenvolver bons hábitos, mas se isso fosse verdade então certamente países muito mais populosos do sul da Ásia, onde não usar sapatos também é comum, poderiam sobrepujar os quenianos. Outro se refere à “comida simples” do Quênia, mas isso, novamente, acontece em muitas partes do mundo e os registros “não tão ótimos” da saúde do Quênia sugerem que o país não descobriu o segredo da nutrição perfeita.
Há ainda uma teoria bajulatória de que o histórico de pastoreio dos quenianos significa que eles pegaram prática correndo enquanto perseguiam suas ovelhas pelo campo.
Falar sobre a grandeza de atletas da África pode ser delicado no mundo ocidental. Séculos de escravidão foram justificados, em parte, por argumentos de que africanos eram “especializados” em trabalho físico, e brancos, em trabalho mental, ideias que persistem no paternalismo e no racismo americanos até hoje. Para um escritor branco como eu (ou um pesquisador branco ou um antropólogo branco), falar sobre os atributos físicos de homens e mulheres negros pode ecoar alguns dos piores momentos da história moderna. E há algo ofensivo em reduzir os africanos à façanha de seus melhores atletas. Afinal, as contribuições do Quênia ao mundo incluem, por exemplo, grandes escritores, ambientalistas e políticos.
Kalenjin
A maioria dos quenianos ganhadores de medalhas olímpicas vem de uma só tribo, os Kalenjin, cuja população é de apenas 4,4 milhões de pessoas. Africanos subsaarianos se autoidentificam por tribos como essa há mais tempo do que se identificam com suas nacionalidades. Portanto, a denominação Kalenjin não é só acadêmica, e a tribo é provavelmente geneticamente isolada o suficiente para que traços físicos comuns possam corresponder a seu sucesso atlético.
Em 1990, o Copenhagen Muscle Research Center comparou garotos quenianos pós-adolescentes a integrantes da famosa equipe de corrida nacional da Suécia (no fim dos anos 1980, os escandinavos eram os campeões mais frequentes). O estudo revelou que a performance de garotos da equipe escolar de corrida em Iten, no Quênia, superou consistentemente a dos corredores profissionais da Suécia. Os pesquisadores estimaram que o Kalenjin médio podia correr mais do que 90% da população global, e que ao menos 500 estudantes de Iten podiam derrotar os maiores corredores profissionais da Suécia nos 2.000 metros.
Diferentemente da pesquisa de 1990, feita apenas alguns anos depois do fenômeno queniano, o estudo de 2000 aterrissou no meio de um debate internacional sobre o porquê de esses jovens homens e mulheres da África Oriental estarem dominando um esporte que vinha sendo um ponto de orgulho do Ocidente. Isso era controverso. “Não se consegue nada neste mundo a não ser que se trabalhe duro, então eu penso que correr é uma atividade mental,” disse o vencedor queniano da medalha de ouro olímpica Kip Keino, que condenou a pesquisa como sendo racista. Ocidentais escreveram sobre “os genes negros da velocidade”, e alguns questionaram se os quenianos teriam uma vantagem injusta.
Corrida, como esporte, é algo inerentemente físico, e traços físicos estão relacionados ao sucesso atlético. Só porque Larry Bird e Michael Jordan são altos não significa que eles não sejam primeiro e antes de tudo ótimos atletas. Todos os atletas devem parte de seu sucesso a seus próprios traços físicos, mas porque corredores Kalenjin compartilham aqueles traços através de um grupo étnico, e porque aquele grupo étnico é parte da história de colonialismo e exploração de brancos sobre negros, é mais difícil falar sobre isso. Mas isso não faz o atletismo deles nem um pouco menos incrível.
Tradução por Rachel Martins
* Texto originalmente publicado na revista The Atlantic
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