A organização de Rupert Murdoch enfrentou protestos contra o escândalo das escutas telefônicas
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Todo mundo na Grã-Bretanha conhece o escândalo das escutas telefônicas feitas pelo jornal News of the World, e a maioria sabe que no centro dele está um dossiê com documentos e arquivos de computador reunidos pelo detetive particular Glenn Mulcaire. Escondidos pela polícia em 2007, esses registros foram laboriosamente trazidos à superfície por jornalistas e advogados, e revelaram um comportamento ilegal e ultrajante. O dossiê Mulcaire, em outras palavras, causou danos incalculáveis à organização de Rupert Murdoch (proprietário da empresa News International, que controlava o extinto News of the World).
E se houvesse outro dossiê semelhante, elaborado por outro detetive particular, contendo registros de atividades potencialmente ilegais de jornais como o Daily Mail, o Mirror, o Express — na verdade, da maior parte da Fleet Street (rua onde estão as sedes dos principais jornais britânicos)? Seria certamente dinamite política.
Surpreendentemente, esse dossiê existe, e seu conteúdo é mesmo explosivo. Ainda mais surpreendente é o fato de ele continuar em grande parte desconhecido por uma combinação de sigilo oficial e acobertamento da imprensa. Embora a Grã-Bretanha tenha um comissário da Informação encarregado de proteger o público de abusos aos dados dos cidadãos, e esteja em curso um inquérito público, comandado pelo juiz Brian Leveson, dedicado a investigar falhas na conduta da imprensa, esses arquivos permanecem fechados.
O dossiê, conhecido como Operação Motorman, foi apreendido em 2003 durante buscas feitas pelo Escritório do Comissário da Informação (ICO, na sigla em inglês) nos escritórios e na casa do detetive particular Steve Whittamore.
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Durante anos, Whittamore e um pequeno grupo de colaboradores abasteceram jornais com uma gama de serviços: de pesquisas inteiramente inocentes em bancos de dados públicos, até o acesso ilegal ao Computador Nacional da Polícia, com a ajuda de funcionários corruptos.
Whittamore mantinha registros razoavelmente organizados. Para cada transação ele anotava a data, o nome do jornal e o jornalista que encomendou a informação, a pessoa que era o alvo da pesquisa, o tipo de informação solicitada e (às vezes) o valor cobrado. Esses registros — pelo menos 17,5 mil deles — o ICO copiou em planilhas eletrônicas, em arquivos separados, conhecidos como o Livro Azul (principalmente dados da News International), o Livro Vermelho (com informações do Grupo Mirror) e os livros Amarelo e Verde (incluindo jornais como o Mail e o Mail on Sunday, o Grupo Express, o Observer e uma série de revistas)…
Whittamore e alguns colaboradores foram condenados em 2005, mas nenhum dos jornalistas que encomendaram trabalhos chegou a ser processado. A lei prevê que profissionais que pagam por esse tipo de informação não infringem a lei se demonstrarem que a ação foi justificada pelo interesse público. Entre 2005 e 2006, o ICO elaborou dois relatórios incisivos alertando os jornais sobre a ilegalidade das operações e listando importantes usuários dos serviços de Whittamore. O Daily Mail estava no topo, com 952 investigações encomendadas por 58 jornalistas. Os jornais do Mirror eram também grandes usuários do serviço, e a lista incluía ainda o Express, os títulos da News International, o Observer e diversas revistas.
Escusado dizer que os relatórios mal foram noticiados nos próprios jornais, mas o ICO acredita que eles tiveram o efeito desejado; o órgão diz não ter evidências de que as práticas ilegais persistam hoje.
O escândalo das escutas do News of the World gerou novas dúvidas sobre o dossiê Motorman. Quando o escândalo veio à tona, foi natural perguntar se outros jornais estavam envolvidos na violação de caixas postais telefônicas e outros modos ilegais de coleta de informações. Mas o relatório do ICO de 2006 mostrou 305 jornalistas encomendando mais de 3.000 investigações junto a Whittamore, e o comissário da Informação à época, Richard Thomas, declarou: “Não vi um só sopro de interesse público”.
No inquérito Leveson, porém, os jornais — Mail, Express, Mirror etc. — até agora se safaram. Ninguém lhes perguntou, de forma detalhada, se eles seriam capazes de justificar todas essas transações conhecidas e potencialmente ilegais. E, o que é pior, o próprio dossiê Motorman — partilhado entre advogados, editores e executivos de jornais — não foi divulgado junto ao público, nem analisado pela imprensa.
A imprensa argumenta que a revelação não seria justa, e que o dossiê Motorman diz respeito ao passado; mas o Motorman não é mais histórico do que as escutas telefônicas. Na verdade, certamente há razões para se perguntar se os números de celulares, que tantas vezes Whittamore foi chamado a descobrir, não eram usados para a violação.
E, embora Whittamore tenha sido condenado em 2005, bem depois da Operação Motorman, os jornais continuaram usando seus serviços. O Mail admitiu tê-lo empregado em 2007, e o Express usou seus préstimos ainda em julho de 2010.
O Motorman é o escândalo da imprensa que continua sendo acobertado.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto publicado originalmente no site inglês Open Democracy
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