Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #05: Mídia
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Estaria a mídia impressa em declínio terminal? As formas de comunicação humana estão mudando e, com leitores manejando iPads ou Kindles e permanentemente online, o que estaríamos perdendo? Hábitos tradicionais, certamente: o jornal diário na porta de casa, a parada na banca, uma rotina seletiva e privada de leitura, uma clara identificação de lealdade política. E o que mais? Ao abandonar nossos jornais, estaríamos deixando para trás um sistema sofisticado de jornalismo diário consistente e reflexivo, um intermediário entre anunciantes e clientes, um vigilante essencial contra a corrupção?
Em uma economia jornalística múltipla, a competição é dura e o consumidor, cada vez mais descrente. A informação audiovisual frequentemente parece mais confiável e acessível do que a palavra escrita. Mas o apetite por notícias continua voraz, não somente em termos da quantidade disponível, graças ao estado da arte da tecnologia, mas também, segundo Jeff Jarvis, diretor do programa de jornalismo interativo da Universidade da Cidade de Nova York, devido a uma demanda crescente por jornalismo de qualidade. A evidência, diz ele, está “baseada na democracia e na inteligência da audiência”. Comunidades política e economicamente engajadas esperam ter cada vez mais acesso a dados, notícias e opiniões.
Se o jornalismo tem se tornado mais abrangente e a demanda por reportagens mais aprofundadas e substanciais é evidente, pode ser que a mídia impressa ainda consiga forjar uma retomada. Os bons, bravos e, sobretudo, espetacularmente ricos empreendedores estão demonstrando crescente interesse na aquisição de jornais impressos, apesar de seus motivos serem objetos de intensa especulação. Em outubro de 2010, o colecionador de arte e bilionário Nicolas Berggruen (que, dizem, leva uma vida nômade em iates e jatinhos particulares) e o executivo e entusiasta do triathlon Martin Franklin injetaram 900 milhões de euros no endividado grupo de mídia espanhol Prisa, conhecido especialmente por seu principal jornal, o El País.
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Interesses diversificados
A compra do icônico jornal Le Monde por três empresários franceses ligados a uma série de setores — moda, comunicação, sex shops e bancos — levantou suspeitas de um oportunismo com razões políticas. Pierre Bergé e Mathieu Pigasse têm uma forte e ativa ligação com o Partido Socialista francês — Bergé ajudou a financiar a campanha presidencial da candidata socialista Ségolène Royal em 2007 — e o terceiro homem do grupo, Xavier Niel, financia dois sites da esquerda francesa. A aceitação da oferta do trio pelo jornal, em julho de 2010, foi uma bela esnobada no então presidente Sarkozy, que era contra a aquisição. Os jornalistas do Le Monde, que são acionistas do jornal e elegem seus executivos, ficaram bem satisfeitos com o resultado.
Antes da compra, rumores de que o ex-senador e magnata russo Gleb Fetisov estaria preparando uma oferta pelo jornal levantaram questões sobre outro tipo de motivação política. O Le Monde poderia ser uma boa plataforma para divulgar as questões russas, tanto as do Estado como as da iniciativa privada, sugeriu Fetisov. Gilles Van Kote, presidente da Sociedade de Editores do Le Monde, declarou-se “um pouco espantado” com o interesse de Fetisov, principalmente porque outro russo, Alexander Pugachev, tinha adquirido 85% do diário France Soir apenas um ano antes.
O próprio Alexander Pugachev já afirmou não pertencer a nenhum partido político. De modo geral, a compra de um jornal que tinha perdido 6,7 milhões de euros no ano anterior por um jovem, poliglota e aparentemente tímido empreendedor russo não causou muito barulho. Em seu auge, há mais de meio século, o France Soir tinha uma tiragem de um milhão de cópias, mas no ano de 2009 as vendas já tinham caído para pouco mais de 20 mil exemplares.
Em tempos de crise na indústria, quando o maior diário da França, Le Figaro, tem uma circulação de apenas 314 mil exemplares, é pouco provável que qualquer agenda política refletida na imprensa cause grande impacto no contexto geral.
Então por que Alexander Pugachev se importa? Como filho do oligarca bilionário Sergei Pugachev, ele vem de um clã com interesses em finanças, estaleiros, imóveis, televisão e (mais recentemente) na cadeia alimentícia francesa Hédiard. Essa incursão na mídia impressa seria filantropia ou negócios? O jornal seria apenas um brinquedinho caro? Uma maneira de conseguir confiança? Fazer dinheiro? Melhorar a imagem da Rússia no exterior? Estabelecer uma plataforma para novos contratos? Novaya Gazeta, o último jornal independente de Moscou, comentou que pode ser simplesmente uma “nova moda”. Afinal, comprar jornais é o que os super-ricos fazem hoje em dia.
A única fragilidade percebida até agora em Pugachev, um jovem de 26 anos, é seu gosto por ternos de grife e carros esportivos clássicos. A imagem pública de seu pai, porém, é mais ambígua. A respeitada jornalista russa Yulia Latynina fala em um “passado criminoso”, com pelo menos uma condenação na década de 1980. Nada disso impressionou o público francês. Em todo caso, Alexander agora é um cidadão francês. Ele também enfatizou que o France Soir é um investimento independente e pessoal, que ele está disposto a perder caso a experiência não seja bem sucedida.
A transição no comando do jornal foi um pouco agitada para os Pugachevs. Alexander demitiu o editor-chefe do France Soir, Christian de Villeneuve, assim como a diretora-geral do jornal, Christiane Vulvert. Jornalistas famosos foram contratados e a equipe quintuplicou de tamanho. Mais cobertura de esportes, celebridades e crimes estão na ordem do dia, sempre acentuada por gráficos bem coloridos. Uma campanha publicitária em março de 2010 anunciava um novo tipo de tabloide populista com um grande alcance de mercado, e as vendas chegaram a 90 mil exemplares em agosto do mesmo ano. Não foram os 150 mil exemplares previstos para o fim de 2010, mas, ainda assim, algo notável no contexto francês.
Pugachev admite um investimento de 50 milhões de euros e planeja despejar mais 20 milhões de euros para cobrir as perdas e despesas com uma campanha publicitária lançada no início de 2011.
Boas intenções
“Existem pouquíssimos jornalistas talentosos”, comentou Alexander Lebedev, proprietário dos jornais ingleses Evening Standard e do Independent, em uma entrevista ao diário russo Komsomolskaya Pravda em junho de 2010. “Eles podem ser comparados aos grandes filósofos. Eu acredito que todos os jornalistas deveriam ser como Mark Twain, Anton Chekhov, Arkady Averchenko (um escritor satírico russo do início do século 20), Hemingway e O.Henry. (…) Para mim, jornalismo de verdade é literatura, filosofia, economia, moralidade, valores, a capacidade de mudar o mundo.”
O envolvimento de Lebedev com a imprensa foi descrito por seu amigo Mikhail Gorbachev não como um projeto de negócios, mas como uma “missão social”. Ele gosta de se definir como um “capitalista idealista”, o que pode parecer um pouco extravagante, mas também coloca a questão sobre sua identificação, em termos tradicionais russos, com uma classe intelectual que procura envolver-se socialmente e trabalha pelo desenvolvimento e pela disseminação de educação e cultura.
Lebedev, certamente, é um tipo diferente de intelectual engajado. Ele não só leu os livros certos, visitou as exposições, aprendeu os idiomas e demonstrou compromisso com o interesse público. Além de ser incrivelmente rico e usar tênis, é um filantropo. Construiu um hospital para tratamento gratuito de crianças com câncer em São Petersburgo e está construindo outro. Dono de um dos maiores bancos privados da Rússia, tem participação na gigante da energia Gazprom. Em 2009, vendeu seus 30% de ações na Aeroflot, uma transação de 300 milhões de euros, pouco antes de comprar o Independent, em março de 2010. Mas, ao que parece, ele é também um liberal pró-mídia que faz campanha por apoio internacional para jornalistas ameaçados ou detidos. Ele tem 49% de participação no Novaya Gazeta, o combativo jornal pró-democracia no qual a jornalista russa Anna Politkovskaya, morta em outubro de 2006, trabalhava.
As boas intenções de Lebedev têm sido demonstradas através de seu envolvimento com a imprensa e seus atos filantrópicos na Rússia. Ser dono de um jornal não implica envolvimento editorial, e o Independent é ousado a ponto de ostentar a afirmação “livre de influência de proprietários” em sua primeira página. O fato é que o Standard provavelmente teria falido em 2009 não fosse por Lebedev. O Independent também estava à beira do abismo quando ele o comprou, tendo perdido 12,4 milhões de libras no ano anterior.
Desde que o Standard passou a ser gratuito (uma manobra audaciosa e inovadora para uma marca estabelecida), o público do jornal foi de 250 mil para mais de 600 mil leitores. A concorrência sucumbiu e comenta-se que o objetivo seja chegar a uma circulação de um milhão de exemplares. Mas é difícil prever como as coisas vão caminhar para o Independent. Desde 2008, 30 milhões de libras foram investidas nos dois jornais, e ainda não há sinais de lucro.
Ambições globais
Mas se não é o ganho financeiro, qual seria a principal motivação? Missão social? E que tipo de missão é essa, exatamente, e de quem? Salvar a indústria jornalística do Reino Unido? Preservar a diversidade na mídia? Expor verdades inconvenientes sobre a Rússia ou limpar sua imagem desgastada? Há outras possibilidades, claro. Qualquer bilionário é um alvo em potencial para uma série de forças em conflito na Rússia — será que a influência no exterior poderia oferecer alguma proteção?
E há também questões mal resolvidas, como aquela incômoda ligação com o antigo serviço secreto, publicamente reconhecida e descartada no Ocidente, mas nunca completamente esquecida. A extraordinária capacidade de Lebedev de se equilibrar entre os interesses contraditórios de oposição e lealdade ao Kremlim continua sendo confrontada com uma série de questões sobre a “reformulação” da imagem da Rússia e da velha KGB e de seus integrantes. “Há outras maneiras de nos promover no exterior, além de bonecas matryoshka e música de balalaika”, diz Lebedev. “Para mim, a mídia mundial é um fenômeno global”, disse Lebedev ao Komsomolskaya Pravda.
Segundo ele, quando os políticos são fracos, a mídia pode decidir questões cruciais. “Quem, se não os jornais, tem a capacidade de fazer isso? Quem vai fazer o mundo dos negócios se tornar mais transparente? A mídia deve desempenhar um importante papel, não só na batalha contra a corrupção, mas também em alterar os parâmetros de responsabilidade corporativa.”
Seria esse um chamado para uma rede mundial de mídia vigilante e independente, uma combinação de títulos locais e internacionais, perspectivas globais e um novo tipo de jornalismo? Em março de 2010, após fechar a compra do Independent, ele anunciou sua intenção em estabelecer a NIMF (Fundação de Mídia Independente Novaya), uma organização sem fins lucrativos para financiar projetos de mídia globais e instituir um coletivo mundial de jornais ativistas, começando com o Novaya Gazeta, na Rússia, o Independent e o Evening Standard, no Reino Unido. Com seus contatos e a recém-adquirida influência na Europa, Lebedev está apto para a tarefa.
Em Moscou, ele é reconhecido como o magnata intelectual com consciência social, comprometido com algo além das reuniões après-ski de oligarcas expatriados nos Alpes franceses. Na nobre tradição da classe intelectual russa, ele está resgatando grandes instituições democráticas britânicas e promovendo o jornalismo intelectual pelo interesse comum, enquanto convive com celebridades, socialites, políticos e intelectuais. É um arranjo bastante razoável.
Tradução por Carolina de Assis
* Texto publicado originalmente no Eurozine
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