Área do Pinheiro após a reintegração de posse em janeiro de 2012: moradores não são priorizados
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“Ninguém esperava que o local onde foi fundado o Jardim Edite, antes do início dos anos 1970, seria, um dia, uma das áreas mais disputadas da cidade.” A reflexão é de Gerôncio Henrique Neto, 69 anos, líder comunitário de uma favela que foi demolida por conta da Operação Urbana Água Espraiada, na zona Sul de São Paulo. As casas modestas, na maioria de alvenaria, ficavam em uma das áreas que, no início da ocupação, em 1973, estava longe de ser o que é hoje.
Nos anos 1990, o local, antes indesejado e destinado aos pobres, transformou-se em uma das mais valorizadas áreas da capital paulista. A região entre a Avenida Berrini e a Marginal Pinheiros fez parte da expansão econômica da cidade para o chamado vetor sudoeste, que abriga atividades do setor terciário de elevado capital. Maciços investimentos foram feitos para melhorar a infraestrutura, como a construção do complexo Ayrton Senna, dos túneis Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Jânio Quadros e da Avenida Águas Espraiadas, na gestão Paulo Maluf (1993-1996). Mas as pessoas que moravam ali não foram, em nenhum momento, prioridade.
A urbanista Mariana Fix descreve no livro Parceiros da exclusão (Boitempo Editorial) como quase todas as moradias foram destruídas na área em que Gerôncio, um dos 12 mil moradores que o Jardim Edite chegou a ter em 1995, instalou-se. Além de inúmeras irregularidades no processo de remoção, parte dos antigos moradores foi parar em áreas de mananciais (muitas vezes com incentivo de agentes do poder público e de construtoras) como a da represa Billings, onde se ergueu o Jardim Edite II, em uma antiga ocupação clandestina.
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Cidades desiguais
A formação de novos centros financeiros, que ignoram direitos básicos da maioria dos cidadãos, mostra um perverso processo que envolve o capital imobiliário e parte do Poder Público como sócios na construção de uma cidade segregada, fenômeno que não se restringe apenas a São Paulo. E é uma segregação que se torna mais evidente na medida em que as terras disponíveis para a construção de empreendimentos imobiliários ficam escassas. Nessa corrida em busca do novo ouro do mercado, lotes que antes abrigavam famílias de baixa renda têm sido requeridos judicialmente, e as decisões sempre tendem para o lado do proprietário, mesmo que ele esteja devendo impostos ou que sua propriedade não cumpra a função social preconizada pela Constituição Federal. O caso da violenta reintegração de posse realizada no Pinheirinho, em janeiro de 2012, em São José dos Campos (SP), foi emblemático nesse sentido. Retiraram-se cerca de 9 mil moradores, que lá viviam desde 2004, para devolver a terra ao seu dono, a massa falida da empresa do especulador Naji Nahas.
“O Estado brasileiro é patrimonialista, o Raimundo Faoro já mostrou isso e a urbanista Ermínia Maricato vem chamando a atenção para esse fato há muitos anos. Ele legitima quem tem patrimônio e, principalmente, quem tem patrimônio fundiário, quem tem terra. Os donos do poder e os donos da terra são os mesmos”, analisa Kazuo Nakano, urbanista do Instituto Pólis. “Diante disso, como fazer com que o Estado regule a terra em prol do interesse públicos, se vai atingir interesses privados? E existe a lógica eleitoral. Quem financia a campanha a vereador, prefeito, deputado, governador, presidente da República? Desde os anos 1960, são as grandes empreiteiras, que dependem de obras públicas; hoje, é o mercado imobiliário formal, os órgãos das incorporadoras, são as empresas de ônibus, as empresas de lixo.”
O processo de reprodução de cidades desiguais, no qual cada vez mais as pessoas com menor renda vão para as áreas mais distantes dos centros, tem se intensificado no Brasil, indo além das grandes metrópoles. “Metade da população brasileira mora na informalidade, 20% em favelas. E as pequenas e médias cidades do País estão reproduzindo exatamente o mesmo modelo”, diz João Sette Whitaker Ferreira, coordenador do LabHab (Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos) da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), e autor do livro O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano (Ed. Vozes).
Para Whitaker, há uma relação estreita entre a ação do poder público no espaço urbano e o aprofundamento das desigualdades. “Em qualquer cidade capitalista, o preço fundiário e imobiliário é decorrente do valor de localização, que é constituído pela infraestrutura urbana que ele abriga — mobilidade, saneamento etc. —, que fazem com que um lugar seja mais urbano em relação aos outros”, explica. “A contradição é que quem produz a infraestrutura que faz aumentar o preço da terra é o Estado e é resultado de investimento social, público. E esse investimento público que gera valorização é apropriado individualmente, no que é chamado de mais-valia urbana. Apropriado pelo sujeito que tem dinheiro, pelas elites.”
Interesses privados
Hoje, diversos municípios do Brasil experimentam um boom imobiliário, com os preços do metro quadrado, seja para alugar ou comprar, subindo muito acima da inflação e também em comparação com outros bens. Em São Paulo, por exemplo, o custo do metro quadrado de imóveis teve alta de 26,4% nos últimos 12 meses, conforme o índice FipeZap.
Outro fator crucial na expansão desordenada das cidades é o fato de as administrações públicas praticamente abrirem mão do planejamento em troca das inúmeras concessões feitas ao mercado imobiliário, que acaba de fato sendo o responsável pelo arranjo urbano. No caso de São Paulo, leis de zoneamento chegam a ser modificadas para que novas edificações sejam construídas e comercializadas.
Além das operações urbanas, outras transformações importantes fizeram com que o panorama fosse modificado em função de interesses privados. A financeirização da economia, a internacionalização do setor imobiliário e a abertura do capital de empreendedoras na bolsa de valores modificaram o perfil do mercado, especialmente em São Paulo. “A abertura de capital na bolsa de valores, ocorrida entre 2005 e 2007, trouxe uma grande quantidade de recursos para empresas que mantinham sua atividade concentrada na região Sudeste. Podemos dizer que foi uma captação de recursos bastante considerável”, diz o geógrafo Sávio Augusto de Freitas Miele. Segundo ele, os IPOs (oferta pública de ações, sigla em inglês) tiveram um impacto considerável nos mercados das grandes cidades, pois a quantidade de novos lançamentos e a compra de terrenos para formação de land banks ou “bancos de terrenos” estava atrelada à necessidade de gerar resultados aos investidores.
A partir daquele momento, como não estavam claros quais os critérios que o mercado utilizaria para investir nas empresas do ramo, o primeiro parâmetro que as próprias empresas passaram a oferecer como maneira de mostrar solidez foi o “banco de terrenos”.
Casa própria
Alguns dados mostram como a especulação imobiliária no Brasil constitui, na prática, um problema social. De acordo com o Censo de 2010, realizado pelo IBGE (Instituto Nacional de Geografia e Estatística), o número de domicílios vagos no país é maior que o déficit habitacional, já se excluindo dessa conta residências de ocupação ocasional ou casas em que os moradores estavam ausentes de forma temporária. No país, há 6,07 milhões de domicílios vagos, o que superaria em mais de 200 mil o número de habitações que precisariam ser construídas para famílias que não residem hoje em locais considerados adequados: 5,8 milhões.
“O direito à propriedade é considerado como absoluto, mas só vai até o ponto em que ela cumpre a função social”, lembra Mariana Fix. Existe um arcabouço legal que regulamenta a questão, vinculando-a aos planos diretores e à função do terreno em determinadas regiões da cidade. Há instrumentos como o IPTU progressivo e o direito de preempção, que confere, em determinadas situações, a preferência ao poder público para comprar um imóvel que esteja sendo vendido pelo proprietário a outra pessoa. Ainda assim, o direito à propriedade é tido pela sociedade em geral (e até mesmo por quem não tem posse alguma) como quase intocável.
Essa noção de “propriedade inviolável” também se relaciona ao anseio pela casa própria, ignorando ou subestimando outras formas de moradia. Mariana Fix analisa como essa ideia se tornou parte do chamado “sonho americano”. “Nos EUA, até os anos 1920, 1930, não era assim. Houve uma série de campanhas feitas pelos agentes do mercado imobiliário para que as pessoas passassem a almejar a casa própria, associando-a à felicidade.
A cultura da casa própria também passou a fazer parte do ideário brasileiro, que tem uma trajetória de exclusão e violência na área de habitação. Segundo Fix, no Brasil, a primeira moradia do trabalhador recém-liberto foram os cortiços, ele passa a morar na ilegalidade, ser expulso, como no emblemático caso do cortiço Cabeça de Porco, no Rio de Janeiro, demolido em 1893. Depois há o surgimento das favelas, sempre refletindo uma situação de muita insegurança para os moradores.
O próprio Estado passou a adotar como modelo e única opção de política pública a oferta da casa própria, durante o regime militar, que pretendia resguardar a estabilidade social e a ordem. A esse respeito, Fix lembra uma declaração do então ministro do Planejamento Roberto Campos, quando da instituição do BNH (Banco Nacional de Habitação): “O proprietário da casa própria pensa duas vezes antes de se meter em arruaças ou depredar propriedades alheias e torna-se um aliado da ordem”.
Desde essa experiência do BNH, o governo federal havia se ausentado da função de elaborar políticas públicas de amplo alcance na área de habitação, o que se alterou com a instituição do Minha Casa, Minha Vida, em 2009. “Compreende-se que a população queira a casa própria, mas o Minha Casa, Minha Vida é um reforço à ideologia da casa própria, fechando as portas para outras alternativas. Esse é um tipo de solução de mercado convencional”, acredita Mariana Fix. O programa foi instituído após a crise econômico-financeira de 2008/2009 e era uma ação que se inseria em uma série de medidas de caráter anticíclico do governo, com objetivos que iam além da questão habitacional, como a geração de empregos. Mas foi uma grande oportunidade para as empresas do setor imobiliário ao incorporar pessoas que antes estavam fora do circuito de compra e venda de imóveis.
O programa federal também tem limites para solucionar a questão do déficit habitacional na faixa mais baixa de renda, na qual o problema é mais grave. O geógrafo Sávio Augusto de Freitas Miele cita alguns dados que mostram essa realidade: observa-se que a maior parte das famílias atendidas são aquelas que possuem renda entre três e dez salários mínimos, o que representa cerca de 15% do déficit habitacional do país. “A faixa que comporta as famílias com renda entre zero e três são as menos atendidas e representa cerca de 85% do déficit habitacional”, aponta Miele.
* Texto publicado originalmente na revista Fórum
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