Fila para atendimento em unidade do SUS em hospital de Serrinha (BA) para realização de cirurgias de catarata
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #08: Crise na Europa
Leia as outras matérias da edição nº 8 da Revista Samuel
Maria precisava de uma consulta médica com um especialista. Embora não fosse um caso de emergência, ela esperou quase dois meses para conseguir uma consulta e o único lugar que tinha tal especialidade era a 50 quilômetros de sua residência. A situação, fictícia, parece ser o retrato do serviço público de saúde mostrado pela grande mídia, mas é, na realidade, a encontrada por usuários de planos de saúde suplementares.
Atualmente, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009 – Perfil das Despesas do Brasil do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgada em setembro de 2012, os brasileiros gastam 7,2% de sua renda mensal com saúde, entre planos e remédios. Mas como explicar um aumento nos gastos com saúde por parte do cidadão, superando os investimentos do poder público, e a qualidade dos serviços de saúde cada vez mais precária?
Para Ligia Bahia, doutora em Saúde Pública e professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o fenômeno pode ser atribuído ao aumento das mensalidades e não exatamente ao fato de mais brasileiros se vincularem aos planos privados.
Apoie a imprensa independente e alternativa. Assine a Revista Samuel.
Despesa pública
De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009, a despesa de consumo das famílias brasileiras com bens e serviços de saúde chegou a R$ 157,1 bilhões — 4,8% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2009. Enquanto isso, a despesa da administração pública com esses bens e serviços foi de R$ 123,6 bilhões (3,8% do PIB).
Para Ligia Bahia, esse crescimento dos planos de saúde ainda interfere na universalização do SUS. “Como as interfaces entre o setor privado e o sistema público são muito extensas no Brasil, a existência de um mercado de planos de saúde em expansão representa um obstáculo concreto à universalização do direito à saúde. Os planos de saúde são os principais vetores de desigualdade do sistema de saúde brasileiro”, analisa.
Baseado em dados do relatório Estatísticas de Saúde Mundiais 2011, da OMS (Organização Mundial de Saúde), o CFM (Conselho Federal de Medicina) mostra que o governo brasileiro tem uma participação menor do que as suas necessidades e possibilidades no financiamento da saúde pública. Do grupo de países com modelos públicos de atendimento de acesso universal, o Brasil é o que tem a menor participação do Estado (União, Estados e Municípios). Esse percentual fica em 44% (contra 56% da participação da iniciativa privada), quase a metade do que é investido pelo Reino Unido (84%) e Suécia (81%) e muito inferior a países como a França (78%), Alemanha (77%), Espanha (74%), Canadá (71%), Austrália (68%) e Argentina (66%).
Coberturas restritas
De acordo com Lígia Bahia, as coberturas dos novos planos para os segmentos de renda C e D são ainda menos abrangentes do que as tradicionais dos planos básicos brasileiros, que já são bem restritas. “O desenho dos planos corresponde à acepção de diferenciação da qualidade da mercadoria de acordo com o preço. O problema é que na saúde tal distinção colide com todas as concepções sobre a igualdade biológica da humanidade”, explica.
Vale lembrar também que o próprio poder público ajuda a financiar a saúde suplementar ao oferecer esse tipo de benefício como parte da remuneração aos servidores. Muitos servidores públicos consideram que a saúde pública é para os pobres e que o plano privado de saúde ajuda a desonerar o SUS.
Mercado da saúde
O enfraquecimento do SUS em detrimento do crescimento dos planos de saúde também pode ser observado em outros aspectos. Um exemplo é a aquisição, anunciada no início de outubro de 2012, de 90% da empresa brasileira Amil pela estadunidense United Health. Dependendo da interpretação, o assunto é considerado inconstitucional, uma vez que está previsto na Constituição Federal o veto a “participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no país, salvo nos casos previstos em lei”. No entanto, a Lei nº 9.656/98, conhecida como Lei Geral dos Planos de Saúde, autoriza a participação de capital estrangeiro. A questão merece, no mínimo, um sinal de alerta.
Isabel Bressan, diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, em artigo publicado na página da instituição, analisa a compra e aponta o enfraquecimento do SUS. “Certamente, o investidor americano acredita que caminharemos para ser como nos EUA, onde o governo paga por planos mequetrefes para pobres e idosos, garantindo para as empresas de saúde uma renda imensa gerada pelo subsídio público.
Não por coincidência, há um projeto de lei (PL 489/2011) nesse sentido, de uma deputada federal do Ceará (Ronalba Ciarlini do DEM-RN), que propõe o pagamento de um adicional em dinheiro para quem recebe Bolsa Família, para aquisição de plano de saúde. Há também uma sugestão de representantes das seguradoras de saúde de que o governo complemente o pagamento de planos para idosos como forma de compensar os preços exorbitantes que cobram das pessoas com mais de 60 anos.
* Texto publicado originalmente no jornal semanal Brasil de Fato
NULL
NULL