Diversos fatores estão modificando o cenário da produção industrial na China e nos EUA
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Durante a maior parte da última década, o Appliance Park, sede da General Electric em Louisville, Kentucky, mais parecia um memorial às proezas da indústria norte-americana do que um monumento em sua homenagem.
A grandiosidade das instalações parece diminuir sua irrelevância. Seis edifícios industriais, cada um com o tamanho de um grande shopping suburbano, alinham-se em fila. O estacionamento à frente deles tem mais de um quilômetro de extensão e conta com seus próprios semáforos, instalados para controlar o caos que outrora acompanhava a mudança de turnos. Mas em 2011, o Appliance Park empregava menos do que um décimo do número de funcionários que em sua época áurea.
Em 1951, quando a General Electric projetou o parque industrial, a ambição da empresa era tão grande quanto o próprio terreno. Em 1955, o Appliance Park empregava 16 mil funcionários. O número continuou crescendo ao longo dos anos 60, chegando ao seu pico em 1973, com 23 mil funcionários. Em 1984, as instalações tinham menos funcionários do que em 1955. O atual CEO da GE, Jeffrey Immelt, tentou vender toda a empresa em 2008, mas, com a economia despencando, ninguém quis adquirir o negócio. Em 2011, o número de empregados chegou ao seu mínimo: 1.863 pessoas.
No entanto, naquele ano, algo curioso e motivador teve início. Em 10 de fevereiro, o Appliance Park abriu uma nova linha de montagem no edifício 2, para fabricar aquecedores de água de baixo consumo. Foi a primeira linha de montagem nova no complexo industrial em 55 anos; os aquecedores de água eram antes fabricados por uma empresa chinesa terceirizada pela GE.
Em 20 de março, apenas 29 dias depois da inauguração, o Appliance Park abriu uma segunda nova linha de montagem, no edifício 5, para produzir refrigeradores de alta tecnologia, a versão mais nova de uma série antes fabricada no México.
Outra linha de montagem está em construção no edifício 3, voltada para a fabricação de lava-louças em aço inoxidável, a serem lançadas no começo de 2013. O edifício 1 ganhará uma linha de produção para máquinas de lavar roupas e secadores; a GE nunca antes as manufaturou em solo americano.
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Ciclo de vida
Em artigo na Harvard Business Review, Immelt declarou que “a terceirização está rapidamente se transformando em passado para a GE Appliances”. Quatro anos após tentar vender o Appliance Park, ele agora está gastando US$ 800 milhões para tentar trazer o lugar de volta à vida.
O que aconteceu? Há cinco anos, para não falar em 10 ou 20, a lógica inconteste da economia global era a de que você não poderia fabricar muita coisa além de hambúrgueres de fast-food nos Estados Unidos. Agora, o CEO da principal empresa americana de produtos de linha branca diz que não é o Appliance Park que se tornou obsoleto, mas sim a terceirização no exterior.
Nos anos 60, enquanto o mundo de produtores e consumidores no qual vivíamos estava em seu período áureo, o economista de Harvard, Raymond Vernon, propôs sua teoria do ciclo de vida desses produtos. Os EUA teriam uma vantagem ao fazer produtos novos e de alto valor, escreveu Vernon, por causa de sua riqueza e de seu poderio tecnológico; fazia sentido, no começo, que engenheiros, montadores e distribuidores trabalhassem próximos tanto uns dos outros, quanto dos consumidores, para obter um feedback de qualidade mais rápido e para moldar o design e a manufatura do produto de maneira adequada.
Na medida em que o mercado crescesse e os produtos se tornassem padronizados, a produção também seria feita em outros países ricos e os competidores surgiriam. Então, finalmente, quando o produto estivesse plenamente maduro, sua manufatura passaria de países ricos para países mais pobres. Em meio à competição intensa, os custos seriam uma preocupação primordial.
Até o começo dos anos 2000, você podia contratar 20 ou 30 trabalhadores no exterior pelo custo de um no Appliance Park. Avanços em comunicações e tecnologia de informação, bem como a tendência de liberalização, convenceram muitas empresas de que já não havia mais motivos pelos quais o projeto e o marketing não pudessem ser feitos em um país, enquanto a produção, desde o início, ocorresse do outro lado do mundo.
A tendência parecia inexorável. No entanto, o que está acontecendo na GE, e em outras empresas americanas, revela outra história, mais otimista. Por muitos anos, várias americanas trataram a fabricação de seus produtos como algo incidental — uma parte genérica, intercambiável e de valor relativamente baixo do negócio. Isso soava bem na teoria. Na prática, era como escrever um livro de receitas sem nunca ter cozinhado.
Juntando as peças
Lou Lenzi agora é o chefe de design da GE. Mas por anos ele trabalhou para a Thomson Consumer Electronics, que fazia pequenos produtos de linha branca com o logo da GE. “O que achávamos é que tanto faz quem está juntando as peças de uma lava-louças”, diz Lenzi. “Mas há um conhecimento inerente ao processo que também vai embora quando o processo de fabricação é transferido para outro país. E você não o recupera.”
Isso acontece devagar. Quando você primeiro manda uma torradeira ou um aquecedor de água para uma fábrica estrangeira montá-los, você sabe como isso é feito. Você ainda os montava até ontem, mês passado, semestre passado. Mas quando os produtos mudam e a tecnologia evolui, à medida que o tempo passa, à medida que você troca de empresa terceirizada para baixar os custos trabalhistas, a distância entre as pessoas que imaginam o produto e aquelas que o fazem se torna tão grande quanto o Pacífico.
A GE não está sozinha em sua iniciativa de reinstalar as linhas de montagem de seus produtos nos EUA outra vez. A transformação também aconteceu em dezenas de outros lugares, com a Whirlpool, por exemplo, trazendo suas batedeiras da China para Ohio e a Otis trazendo a produção de elevadores do México para a Carolina do Sul. A recalibração de custos nos anos recentes é um dos motivos, e o benefício competitivo de manter a produção por perto é outro. Mas a lógica da fabricação em território nacional vai ainda mais longe, ela é dirigida, em parte, pela recém-descoberta urgência do ciclo de vida do próprio produto.
Há apenas alguns anos, o design de uma nova linha de refrigeradores deveria durar cerca de sete anos. Agora, diz Lou Lenzi, os gerentes da GE trabalham com a ideia de que um modelo não vai mais ser válido dentro de um prazo de dois ou três anos. O ciclo febril de inovações e novos produtos, tão valorizado no mundo dos eletrônicos, infectou todas as categorias de consumo.
O “vício” em componentes de alta tecnologia em itens de uso diário deixa a produção mais complicada; isso tornou a produção nos EUA mais atraente, não apenas porque os fabricantes agora têm de proteger a propriedade tecnológica, mas também porque os trabalhadores americanos são mais qualificados, na média, do que sua contraparte chinesa. E o curto salto entre uma geração de produtos e a próxima torna a alquimia entre engenheiros, publicitários e funcionários da fábrica mais importante.
Onda de inovação
Uma diferença-chave entre a economia americana hoje e a de 15 ou 20 anos atrás é o ambiente de trabalho — não apenas os salários nas fábricas, mas também o grau de flexibilidade dos sindicatos e trabalhadores. Muitos observadores diriam que estas mudanças refletem uma perda de poder por parte dos trabalhadores, e eles estão certos. Mas a gestão, mais consciente dos perigos da terceirização no exterior, também está tentando criar ambientes diferentes (e melhores) nas fábricas.
No final de 2008, Dirk Bowman e Rich Calvaruso, ambos gerentes de fabricação do Appliance Park, quiseram fazer várias mudanças na linha de montagem da lava-louças, que era, segundo Browman, muito longa, barulhenta e cara.
Calvaruso juntou um grupo de pessoas que incluía operários e os convidou a reimaginar completamente a linha de montagem do equipamento. O grupo recebeu a garantia de que, independentemente dos efeitos sobre a eficiência, “ninguém perderia seu emprego por conta da redução de cargos”. A equipe de produção da lava-louças remontou completamente a linha de montagem e eliminou 35% do trabalho.
O que aconteceu com os trabalhadores que não eram mais necessários naquele processo de produção? Bowman e Calvaruso criaram outra equipe e pediram que escolhessem uma peça da lava-louças que acreditavam que a Appliance Park deveria produzir internamente. A equipe escolheu o painel frontal da porta. “É uma parte de interface com o consumidor”, diz Bowman. “Queríamos controlar a qualidade. E na verdade, acreditávamos poder fazer isso de modo mais barato”. E agora nós fazemos.
Se houve um dia um ímpeto de empurrar as fábricas para qualquer outro país, o retorno é mais cuidadoso; muitas coisas nunca vão voltar. A Levi Strauss costumava ter 60 fábricas domésticas de jeans; hoje ela tem contrato com 16 fornecedoras e não possui nenhuma. É difícil imaginar que as grandes manufaturas de roupas voltem para os EUA — seu trabalho é muito básico.
O Appliance Park antigamente usava seus milhares de funcionários na fabricação de cada pequena peça de cada aparelho; hoje, cada componente que a GE decide voltar a fazer em Louisville só é recebido de volta após um cálculo cuidadoso que leva em consideração a qualidade, os custos, as habilidades dos funcionários e a velocidade da produção.
É possível que daqui a cinco anos tudo se desfaça — que o retorno à produção local tenha sido um alarde temporário, que o Appliance Park seja fechado (as práticas em negócios, afinal de contas, estão sujeitas a modismos passageiros).
Mas isso não parece o mais provável. Voltar a trazer empregos para o Appliance Park resolve um problema. Inicia uma onda de inovação no setor de linha branca da GE — as linhas de montagem de cada produto da empresa foram ou serão completamente redesenhadas nos próximos anos.
Grande parte das decisões de terceirização foram tomadas tendo em vista uma única vantagem — a mão de obra barata. A iniciativa de trazer os postos de trabalho de volta é muito mais ponderada. Os empregos não voltam por uma única e simples razão, mas por vários motivos inter-relacionados — o que significa que não vão embora novamente quando um único elemento do negócio ou a economia nacional for alterada.
Tradução por Henrique Mendes
* Texto publicado originalmente na revista mensal norte-americana The Atlantic
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