Linha de transmissão: como ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff comandou a reforma do setor em 2007
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A presidente Dilma Rousseff anunciou uma redução no preço das tarifas de energia elétrica no país: em média, de 16,2% para os consumidores domésticos e de 28% para os industriais. A ideia básica é antecipar a renovação de contratos de concessão celebrados em 1995 e que vencem entre 2015 e 2017, garantindo a queda dos preços. A mudança será feita numa parte expressiva dos contratos do sistema: 123 usinas geradoras, 85 mil quilômetros de linhas de transmissão e 44 distribuidoras. Eles representam 20% da capacidade instalada de geração, 83% da rede básica de transmissão e 30% do mercado de distribuição de energia.
Estudo realizado pela Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) em 2011 aponta que a tarifa média de energia industrial no Brasil, de R$ 329 o megawatt-hora (MWh), é muito superior à tarifa internacional média, de R$ 215 reais o MWh, e 131% superior às de nossos principais parceiros comerciais — apesar de no Brasil mais de 80% da produção de energia elétrica vir de usinas hidrelétricas, uma das formas mais baratas de produção.
Uma série histórica com a tarifa média anual, publicada no livro Setor elétrico brasileiro: uma aventura mercantil (Confea, 2009), de Roberto d’Araújo, mostra que de 1974 a 1982 as tarifas médias residenciais, as mais altas, se situaram na faixa entre US$ 50 e US$ 60, e as industriais eram mais ou menos a metade disso. O sistema elétrico nacional nesse período era formado por empresas concessionárias estatais federais (na geração e transmissão) e distribuidoras estatais em cada estado, todas ligadas a uma holding federal, a Eletrobras, que gerenciava todo o sistema.
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A partir de 1982 e até 1989, as tarifas caíram, como parte de uma política mais geral do governo de controlar a inflação. Justamente nesse período, as empresas públicas de infraestrutura de maneira geral, e as elétricas em particular, mergulharam no turbilhão da crise da dívida externa brasileira contraída nos anos 1970 e que explodiu no início dos anos 1980. Essa contenção artificial dos preços foi corrigida com medidas para facilitar a privatização do setor. De 1996 a 1998, a tarifa residencial vai a US$ 104. A partir de 2004 as tarifas sobem ainda mais, para chegar a US$ 150 dólares em 2007, após mudanças capitaneadas pela então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff.
Os investimentos nos setores de infraestrutura realizados nos anos 1950 e 1960, de maneira geral, tinham sido feitos por meio de captação de empréstimos junto a organismos internacionais, com taxas de juros fixas e relativamente modestas. A partir de meados dos anos 1970, com o propósito de manter as altas taxas de crescimento do “milagre econômico”, as estatais foram usadas para tomar empréstimos externos que nasciam muitas vezes da necessidade do Brasil de fechar seu balanço de pagamentos.
No final dos anos 1970, no entanto, a política monetária americana mudou, afetando todo o sistema financeiro internacional. Os juros foram puxados para cima, e as dívidas dispararam. De acordo com estudo do BNDES sobre o processo de privatização do setor elétrico, o pagamento de juros, que representava 15% da utilização da receita das empresas em 1975, passou a 68% em 1985 e 98% em 1989.
Privatização
Para sair dessa situação, a solução liberal que passou a dirigir o país após a eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, foi a venda do patrimônio estatal para diminuir o sufoco fiscal do Estado, recuperar a capacidade de investimento do setor e baixar custos pela introdução de mecanismos de mercado. Numa política deliberada de preparar o setor para a privatização, na década de 1990 a tarifa de energia começou a subir.
As grandes vendas de estatais do setor elétrico ocorreram nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002). Foram vendidos para o setor privado nacional e estrangeiro cerca de 20% da geração federal, boa parte da transmissão, também federal, e quase todas as distribuidoras de energia elétrica, estaduais. As operações renderam aos governos US$ 29 bilhões de dólares, US$ 22 bilhões em receita e US$ 7 bilhões em transferência de dívida.
A capacidade de investimento das estatais do setor estava reduzida a quase zero. E como começou a faltar investimento em geração, o governo FHC optou por instalar usinas termelétricas, que, embora mais caras, eram de maturação mais rápida. O programa atraiu multinacionais como Enron e El Paso e empresários nacionais, como Eike Batista. Em 1995 o Brasil tinha capacidade para geração de 55 mil megawatts de energia, sendo 8,4% de geração termelétrica, incluindo as nucleares, e 91,6% de hidrelétrica. No final do ano passado, o total chegou a 105 mil megawatts, sendo 77,4% em usinas hidrelétricas, 17,3% em usinas termelétricas — incluindo 1,9% em nucleares —, 1,27% em eólicas e 4,03% em usinas de biomassa. O crescimento do parque termelétrico, mais caro, também explica o aumento das tarifas de energia no país.
Integração
O sistema elétrico brasileiro é integrado. A quantidade de energia que o sistema precisa a cada momento varia, e as geradoras são ligadas e desligadas da rede em função dessa variação por um organismo independente, o ONS (Operador Nacional do Sistema). De forma racional, o ONS coloca em operação em primeiro lugar as usinas hidrelétricas, de custo operacional mais baixo. Depois, se necessário, ordena a entrada em operação das térmicas, mais caras.
Roberto d’Araújo narra uma história exemplar, que ajuda a entender como essas regras atuaram sobre as tarifas. A Light, distribuidora no Rio de Janeiro, comprava até então energia de Furnas, uma das quatro grandes geradoras nacionais. Com as novas regras, podia comprar de qualquer geradora. Passou, então, a adquirir energia da Norte Fluminense, uma usina termelétrica do seu próprio grupo econômico. Quem gerava a energia era Furnas. Como não faltava energia hidráulica para suprir todo o sistema, a Norte Fluminense ficava desligada.
O MAE (Mercado Atacadista de Energia), organismo encarregado de definir acertos do novo sistema, via que Furnas tinha gerado mais do que tinha vendido, e a Norte Fluminense, que tinha contrato de venda de energia com a Light, tinha recebido, mas não gerado. Para fechar a equação, as duas empresas iam então ao mercado de curto prazo: Furnas “vendia” o que sobrara, e a Norte Fluminense “comprava” o que estava faltando. No mercado de curto prazo, Furnas vendeu e a Norte Fluminense comprou energia por R$ 24 reais o MWh, bem menos que os R$ 76,03/MHh previstos nos contratos normais de Furnas, de longo prazo. E a Norte Fluminense, sem gerar, recebeu da Light R$ 133/MWh.
Apagão
Antes mesmo que todo o projeto de liberalização do mercado se completasse, o “apagão” do sistema elétrico brasileiro em 2001 trouxe grande desconfiança em relação ao modelo. A privatização foi paralisada ainda no governo FHC e, ao final de 2002, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, começou a gestação de outro modelo.
Há, então, uma disputa dentro do governo. Num dos lados estão os nomes mais conhecidos do setor elétrico brasileiro: Luiz Pinguelli Rosa, Roberto d’Araújo e Ildo Sauer. No grupo vencedor, a atual presidente, Dilma Rousseff, que é nomeada ministra de Minas e Energia.
Alguns aspectos do modelo são revertidos. Amplia-se o controle estatal sobre comercialização de energia e novos investimentos. É descartada como estatista a ideia de um comprador único, que venderia energia para todas as distribuidoras a partir da otimização do sistema. Adota-se um modelo em que todas as distribuidoras devem comprar a energia de que precisam em frações adquiridas de cada uma das geradoras, por meio de inúmeros contratos bilaterais.
As distribuidoras não podem mais descontratar uma parcela da energia que distribuem — antes, 30% podiam ser adquiridos no mercado livre — nem podem mais contratar energia de empresas do mesmo grupo. Não se propõe uma reestatização. E, ao contrário do que queria o grupo derrotado, amplia-se o mercado livre.
Hoje o mercado livre representa 30% do mercado de energia no Brasil. Ele é formado por cerca de 700 grandes consumidores, os maiores beneficiários dos baixos custos de geração hidrelétrica. Eles compram com contratos de prazos curtos, de seis meses, e escolhem os fornecedores, num mercado competitivo. Os consumidores residenciais e os pequenos e médios empresários ficam presos ao mercado cativo, cujas tarifas foram reajustadas anualmente de acordo com o previsto na legislação. Como o sistema é um só, se os grandes consumidores pagam menos, a consequência é que o mercado cativo paga a diferença. Um outro fator que explica a alta dos preços é que os investidores do setor (investidores estrangeiros, empresas nacionais, setor financeiro, fundos de previdência e pessoas físicas) esperam lucros além da parcela destinada a reinvestimento. E essa parte da renda sai do setor.
É nesse panorama que foi anunciada a mudança por Dilma. Ela não mexe nas regras gerais do mercado livre, mas fixa novos critérios para a definição da tarifa a ser cobrada pelas concessionárias no mercado cativo. Uma medida provisória, a MP 579, autoriza a prorrogação dos contratos de concessão de geração, transmissão e distribuição por 30 anos; 20 anos no caso das termelétricas. Para a renovação, as geradoras hidrelétricas devem aceitar remuneração por tarifa calculada pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e garantir a alocação, por contrato, de cotas de energia às concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional. A remuneração e as cotas serão definidas pela agência.
As concessionárias de transmissão e de distribuição também terão novos contratos. Se houver excedente de energia contratada por uma concessionária, cotas serão cedidas para outra que tenha déficit na energia contratada compulsoriamente. No caso em que esse mecanismo não for suficiente para compensar as variações nos níveis de contratação, o repasse dos custos de aquisição de energia para as tarifas dos consumidores finais será autorizado pela Aneel.
Outra parte da redução da tarifa virá da eliminação de um de seus componentes, a amortização dos investimentos. Na renovação dos contratos, as concessionárias serão indenizadas pelos investimentos não amortizados ou depreciados até agora. Esse será, certamente, um ponto de muitas divergências entre as concessionárias e a agência reguladora. A Aneel avalia que essas indenizações girem em torno de 21 bilhões de reais, mas as concessionárias esperam receber até 47 bilhões de reais.
* Texto publicado originalmente na revista Retrato do Brasil
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