Dr. Nakamats e uma de suas invenções, os sapatos PyonPyon: genialidade na autopromoção
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Uma das mais velhas anedotas sobre invenções envolve um burocrata do serviço de patentes, no século 19, que teria se demitido por achar que não havia mais nada a ser inventado. A história, frequentemente contada na imprensa, é absurda. “A história é uma invenção”, diz Yoshiro Nakamatsu. “Uma invenção feita para durar.”
Ele sabe do que fala. Nakamatsu — dr. NakaMats, se você preferir, ou, como ele prefere, sir dr. NakaMats — é um inventor inveterado e inexorável cuja obra de maior sucesso foi o disquete de computador. “Eu me tornei o pai deste dispositivo em 1950”, diz o inventor, que o concebeu na Universidade de Tóquio enquanto ouvia a 5ª Sinfonia de Beethoven. “Não houve mãe.”
Embora o dr. NakaMats tenha recebido uma patente japonesa em 1952, a invenção é disputada pela IBM, que insiste que o dispositivo foi concebido por sua equipe de engenheiros, em 1969. Ainda assim, para evitar conflitos, a Big Blue realizou uma série de acordos com ele em 1979. “Meu método de digitalização de tecnologia analógica foi o início do Vale do Silício e da revolução informática”, diz o dr. NakaMats. Sua voz é baixa, lenta e condescendente, solicitamente deliberada. “Eu sou o ponto de ligação entre Steve Jobs e Leonardo da Vinci.”
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Invenções
O disquete é apenas uma pequena obra no ininterrupto filme de invenções que passa pela cabeça do dr. NakaMats. Entre outras criações (diz ele, com sinceridade) estão o CD, o DVD, a máquina de fax, o taxímetro, o relógio digital, a máquina de karaokê, o CinemaScope, tênis com molas, botas à base de célula de combustível, um sutiã de tamanho médio invisível, um motor à base de água, o menor aparelho de ar condicionado do mundo, uma peruca de autodefesa que pode ser arremessada contra um agressor, um travesseiro que previne que os motoristas cochilem ao volante, uma versão automatizada do popular jogo japonês pachinko, um taco de golfe que emite sons quando a bola é atingida de maneira adequada, uma máquina de movimento perpétuo que funciona à base de calor e energia cósmica, e muitas outras coisas que nunca foram além de sua imaginação.
O dr. NakaMats é o progenitor de uma outra novidade: Love Jet, uma poção para aumentar a libido que pode ser aplicada diretamente sobre a genitália. O componente de computadores e o afrodisíaco vendido sob encomenda — e o dinheiro que eles rendem — tiraram o criador da NakaMusic, NakaPaper e NakaVision da lista de inventores lunáticos trancafiados em um porão. Os dois sucessos financeiros em sua perpétua lista de ideias lhe dão credibilidade. Ninguém ousa rejeitar completamente suas invenções mais ousadas.
Premiado
De fato, o dr. NakaMats quebrou recordes ao ganhar 16 vezes o grande prêmio na Exposição Internacional de Inventores. De todas as honrarias que diz ter recebido, a que mais o orgulha é a de cavaleiro da Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta, antiga ordem de caridade católica. “É por isso que mereço o título de sir dr. NakaMats”, explica.
Seu escritório, instalado num arranha-céu em Tóquio, por ele projetado, é atolado de trabalhos ainda não finalizados. Um quadro negro está coberto de equações matemáticas. Pastas de arquivos estão empilhadas em cadeiras. Cópias de livros escritos pelo doutor, entre eles Invention of politics e How to become a Superman lying down (“A invenção da política” e “Como se tornar um Super-homem sem fazer nada”), estão espalhadas pelo chão.
O dr. NakaMats tem uma postura curvada, é moderadamente forte e tem 84 anos. Veste um terno risca de giz e uma gravata vermelha listrada, acompanhada de um lenço igual no bolso. Por suas contas, o dr. NakaMats já registrou 3.377 patentes, ou três vezes mais do que Thomas Edison (1.093). “A grande diferença entre mim e Edison”, diz ele, “é que ele morreu quando tinha 84, enquanto eu estou apenas no meio da minha vida”.
Esta convicção está enraizada nas pesquisas nutricionais que o dr. NakaMats vem desenvolvendo desde que tinha 42 anos, utilizando a si próprio como cobaia. É por isso que ele fotografa meticulosamente, cataloga e investiga cada refeição que consome. Em seguida, ele faz análises de seu sangue e registra os dados. “Eu concluí que comemos demais”, diz. “É isso o que torna a vida curta.”
O banheiro dourado no apartamento: espaço tranquilo e livre de radiações que podem prejudicar a imaginação
Dieta
Dr. NakaMats acredita que a comida e as bebidas ideais, exercícios moderados e uma vida amorosa incansável irão mantê-lo vivo até 2072. “O número de horas de sono deve ser limitado a seis”, adverte. “Álcool, chá, leite e água de torneira são ruins para o cérebro e devem ser evitados. Café também é muito perigoso. Uma refeição por dia é o ideal, e ela deve conter pouco óleo e não mais do que 700 calorias.”
Sua dieta consiste de uma única porção de purê de algas marinhas, queijo, iogurte, enguia, ovos, carne, camarão seco e fígado de galinha. Ele complementa esta mistura com o Rebody 55 Dr. NakaMats, um suplemento dietético que contém 55 grãos e vários ingredientes secretos.
Em 2005, a investigação do dr. NakaMats sobre as ligações entre hábitos alimentares e inteligência lhe garantiram o prêmio IgNobel, conferido anualmente em Harvard pelo Annals of Improbable Research (Anais da Pesquisa Improvável), um jornal bimensal dedicado ao humor científico.
Supostamente, a maior criação do dr. NakaMats é o próprio dr. NakaMats, um super-herói científico para quem o exagero é um reflexo impulsivo. Trata-se de um cara que garante que o estabilizador de aviões que inventou aos 5 anos de idade “fez com que o modo piloto-automático fosse possível”.
Carreira
Ele concorreu, sem sucesso, para ambas as câmaras do parlamento japonês e para o governo regional de Tóquio, conseguindo cerca de 110 mil dos 4,4 milhões de votos nas eleições governamentais de 2003. “Eu posso fazer com que os mísseis norte-coreanos deem uma volta de 180 graus e retornem diretamente para o seu lugar de origem”, prometeu durante a campanha de 2007. “Não é um segredo, exatamente. Mas se eu disser como, o inimigo descobrirá.”
Sua genialidade para a autopromoção nem sempre agradou seus contemporâneos. “Invenções de verdade abrem nossos corações e mentes, enriquecem nossas vidas, aproximam-nos”, diz o compatriota Kenji Kawakami, o anárquico inventor das chindogu — criações propositalmente bobas e sem utilidades, que são patenteadas, mas não estão à venda. “O Dr. NakaMats só quer saber de dinheiro, fama e ego.”
Kawakami, que inventou tralhas inutilizáveis, que vão do garfo de espaguete giratório ao Forçador de Sorrisos (um conjunto de ganchos que são prendidos à boca para forçar um sorriso) tem mais em comum com o dr. NakaMats do que gostaria de admitir. De acordo com o doutor, muitas de suas engenhocas servem a um único propósito: aumentar a criatividade e a longevidade do homem. “Os únicos recursos naturais do Japão são a água, os peixes, a luz do sol e os cérebros”, observa. “Precisamos criar, ou morreremos.”
Dr. NakaMats garante que seu “espírito inventivo” não vem nem da riqueza, nem da publicidade. “Meu espírito é amor”, diz ele. “Observe, por exemplo, minha bomba de molho de soja.” Aos 14 anos, ele observou sua mãe, uma professora de ensino médio de Tóquio, lutar para despejar o conteúdo de um barril de 20 litros de molho de soja em um recipiente menor. “Era um inverno frio, durante a Segunda Guerra Mundial”, lembra-se dr. NakaMats, cujo pai, Hajime, era um banqueiro próspero. “Não tínhamos combustível para aquecer nossa casa.”
Assombrado pela imagem das mãos trêmulas de Yoshino, ele sonhou com um dispositivo simples, a bomba de sifão de shoyu Churu Churu. “Eu amava minha mãe”, diz dr. NakaMats. “Eu queria fazer com que seu trabalho na cozinha fosse mais fácil.” Hoje, o dispositivo de plástico é usado para bombear querosene; variações podem ser encontradas em lojas de utensílios, no Japão.
Yoshino, que frequentou a Universidade para Mulheres de Tóquio, começou a ensinar ao filho física, química e matemática quando ele ainda era um bebê. Ela encorajou a criança-prodígio a construir protótipos de suas invenções e, em seguida, ajudou-o a registrar as patentes (ele recebeu a primeira por um aquecedor de água “revolucionário”, na oitava série). Após a guerra, o abrigo antiaéreo no quintal tornou-se a oficina do adolescente. Ali ele iria ruminar enquanto ouvia uma gravação riscada de 78 rpm da 5ª Sinfonia de Beethoven.
Durante seus estudos na Faculdade de Engenharia da Universidade de Tóquio, o dr. NakaMats inventou um gravador fonográfico analógico de madeira que poderia ser lido com sensores magnéticos e luminosos. Ele o adaptou para o armazenamento de memória, substituindo os desajeitados cartões usados pela indústria de informática da época. Este primeiro disquete, diz ele, é talvez a mais pura encarnação da “ikispiração”, o método de produção criativa do dr. NakaMats. A “ikispiração” tem três elementos essenciais: suji (“teoria”), pika (“inspiração”) e iki (“praticidade”). “Para obter sucesso com as invenções, todos os três são necessários”, diz o inventor. Segundo ele, “alguns inventores têm pika, mas não têm iki para realizar aquilo que imaginaram”.
Em 1953, ele inventou um relógio de pulso com visor digital. Levaria mais duas décadas até que a Hamilton Watch Company colocasse no mercado o Pulsar, amplamente divulgado como o primeiro relógio digital do mundo.
Após cinco anos como gestor de marketing na gigante multinacional Mitsui, ele saiu para fundar a sua corporação, a Dr. NakaMats de Inovação Hi-Tech, que, no seu auge, chegou a ter mais de cem empregados, em Tóquio, Osaka e Nova Iorque. “A maior parte da minha equipe foi rejeitada por outras empresas japonesas”, diz ele. “Neste país, as pessoas mais criativas são rejeitadas.”
Rotina
O dr. NakaMats mantém seu intelecto livre seguindo uma rotina diária muito rigorosa. Toda noite, na “nakacobertura” de seu edifício, ele se retira para o “quarto tranquilo”, que é, na verdade, um banheiro revestido em ouro 24 quilates. “O ouro bloqueia as ondas de rádio e sinais de televisão que podem ser prejudiciais à imaginação”, conta.
As melhores ideias do dr. NakaMats tendem a aparecer durante longos mergulhos na piscina. “Se você tiver muito oxigênio no cérebro, a inspiração não surgirá”, adverte. “Para privar o cérebro de oxigênio, você deve mergulhar fundo e permitir que a pressão da água encha o cérebro de sangue.” Ele segura o fôlego por quanto tempo conseguir: “Meio segundo antes da morte, eu consigo visualizar uma invenção”, diz. Eureka! Ele anota a ideia em um caderno à prova d’água (invenção sua) e nada para a superfície.
Projeto da poltrona Cerebrex para o aperfeiçoamento da performance humana: “espírito inventivo é amor”
Criatividade
Em uma tarde quente da última primavera, desafiou a morte mais uma vez, mergulhando na piscina privada do Hotel Okura, em Tóquio. Ele fez várias vezes o percurso do fundo da piscina até a superfície, como um fazendeiro que realiza a colheita. Meio minuto após sua submersão, Dr. NakaMats rabisca freneticamente seu caderno e emerge com uma nova ideia.
Segurando o caderno, ele aponta para um rabisco que, para um olhar desavisado, lembra o mapa da linha Ginza do metrô de Tóquio. “O problema mais terrível que o Japão enfrenta hoje é como eliminar lixo radioativo de reatores nucleares”, diz. Seus lábios se curvam em um pequeno sorriso. “Isso é uma solução. Isso é progresso.”
Abastecido de sua essência criativa, o dr. NakaMats volta para casa, onde descansa nos braços do Cerebrex, “robô de aperfeiçoamento da performance humana”, uma longa poltrona coberta que refresca a cabeça do usuário e transmite frequências sonoras através de seus pés. De acordo com seus cálculos, os raios alfa pulsantes da máquina aumentam a visão em 120%, as habilidades matemáticas em 129% e promovem o equivalente a oito horas de sono de qualidade em apenas uma hora de relaxamento.
Reza a lenda que 82,7% das estatísticas são inventadas na hora. O que vale para provavelmente 93,4% dos cálculos científicos de Dr. NakaMats. Ele garante que seu Love Jet é “55 vezes mais poderoso do que o Viagra e faz com que o sexo seja 300% mais prazeroso”. Entre outras propriedades aparentemente mágicas do líquido da luxúria, há o aumento da memória e o rejuvenescimento da pele. “Eu testei o Love Jet em 10 mil mulheres”, diz solenemente o dr. NakaMats enquanto se dirige ao “nakaquarto”. “Não fiz sexo com elas. Apenas registrei os resultados.”
Tradução por Henrique Mendes
* Texto publicado originalmente na revista mensal norte-americana Smithsonian
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