Marta Mestre
Bisi Silva em exposição no Museu de Arte do Rio
A curadora nigeriana e diretora do Centre for Contemporary Art (CCA) de Lagos, Bisi Silva esteve no Brasil para um período de residência no Instituto Sacatar (Ilha de Itaparica, na Baía), visitou a Bienal do Mercosul, as cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro onde deu um workshop no Museu de Arte do Rio (MAR), e aproveitou para conhecer ateliers de artistas e instituições ligadas à herança africana do qual é exemplo o sítio arqueológico Cemitério dos Pretos Novos, antigo entreposto de escravos, no bairro da Gamboa.
Bisi Silva faz parte de uma geração de agentes culturais africanos que viveram grande parte da sua vida na diáspora (Reino Unido, EUA e França), e que recentemente optaram por regressar aos países de origem. É em Lagos que tem desenvolvido programas importantes no âmbito da arte contemporânea, e no fortalecimento de redes culturais no continente, programas educacionais que fazem do CCA um pólo importante de difusão da cultura contemporânea, onde já colaboraram artistas brasileiros ou radicados no Brasil: Eustáquio Neves, Rosangela Rennó, Amilcar Packer e Carla Zacagninni, e os curadores Adriano Pedrosa e Solange Farkas.
Aproveitamos a sua passagem pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para lhe colocar algumas perguntas sobre as suas impressões do Brasil.
Cortesia CCA Lagos
Family Portrait 2: tela do nigeriano Kelani Abass, exposta no Centre for Contemporary Art de Lagos
Comecemos com o tema da diáspora e seus enraizamentos. Da tua experiência em outros países fora do continente africano, que especificidades encontraste da herança cultural africana aqui no Brasil?
Não é fácil explicar, mas deixa-me começar por dizer que da minha experiência em Salvador apercebi-me de um choque cultural, porque ali eu vi uma parte considerável da minha própria cultura, que se manifestava viva na Bahia. A comida, por exemplo, é completamente igual. Fui num restaurante e havia 44 pratos, sendo que pelo menos 35 eram muito similares à gastronomia nigeriana, e desses 44, 25 tinham os nomes originais em nigeriano, o que foi realmente incrível e fascinante. Mas também outros aspectos tais como as religiões e festas tradicionais como o egungun. A primeira vez que vi na Bahia, disse para mim “Oh my God! Isto poderia ser Lagos”.
Não foi evidente para ti que o Brasil também fazia parte desta diáspora africana?
Quando se pensa em diáspora, aquilo que inconscientemente falamos é na diáspora norte-americana, e a diferença entre os afrodescendentes na América do Norte e no Brasil é vasta, porque a escravidão nos EUA acabou mais cedo do que no Brasil, e por isso essa ideia de memória é mais abstrata no contexto americano em todos os sentidos: comida, modos de vestir, rituais, etc. Porém no Brasil “acontece” ainda. Alguém me descreveu isto de uma forma muito particular. Quando eu me referi a uma absoluta desconexão entre África e Bahia, apesar de haver “muita” África na Bahia há uma desconexão com a verdadeira África, a resposta que me deram foi que os baianos acreditam que a Bahia “é” África. Foi aí que percebi finalmente a potencialidade deste ponto de vista. E na realidade aquilo que sinto, especialmente na Nigéria, é que muitas das nossas tradições estão a desaparecer e, nesse sentido, talvez na Bahia possamos encontrar sobrevivências desse passado, com certo grau de autenticidade, mas também de sincretismo.
Fizeste algumas curadorias importantes em que abordaste noções relacionadas com identidade, gênero, corpo ou sexualidade. Um exemplo foi a exposição Like a Virgin… onde expuseste o trabalho de Zanele Muholi, cujo potencial é o de acender o debate sobre experiências femininas ainda pouco exploradas na arte contemporânea nigeriana. Tens procurado alargar esta tua pesquisa à arte brasileira produzida por mulheres? Como vês esse debate acontecer no Brasil?
Não creio que tenha um panorama completo sobre a arte brasileira produzida por mulheres, mas, olhando na superfície, diria que ainda é muito dominada por homens, aliás, a maioria das studio visit que fiz foram a artistas homens. Conheço algumas mulheres e tomei contato com três ou quatro das quais aprecio o trabalho na Bienal do Mercosul. Artistas como Rosangela Rennó, que já colaborou com o CCA em Lagos, ou Eneida Sanches em Salvador, com obras muito poderosas e instigantes.
Cortesia de Zanele Muholi and Stevenson Cape Town
Imagem produzida pela artista sul-africana Zanele Muholi
A impressão que tenho é que depois de um certo boom midiático em torno da arte contemporânea africana, até há bem pouco tempo, e de uma agenda criada em torno das bienais emergentes no continente, tem havido um arrefecimento do meio artístico sobre a produção artística contemporânea africana. Continua a ser necessária uma agenda para a arte contemporânea africana, para que ela tenha visibilidade nos circuitos?
Vejo que a tua questão tem dois lados, e depende em qual do lado te colocas. De fato, ainda temos de ter uma agenda de forma a que os artistas contemporâneos africanos possam ter mais visibilidade, e inverter a tendência das exposições internacionais que se dizem “globais”. Ainda é frequente que em vinte artistas estrangeiros tenhas somente um africano, tendo em consideração um continente com 54 países e mais de um bilhão de pessoas. Por este motivo tem necessariamente de existir uma “agenda” para que os artistas possam posicionar-se e reivindicar um espaço. De certo ponto de vista isso foi conquistado e tem de continuar. Agora é necessário também que essa agenda mude qualitativamente, e ela está a mudar, principalmente no interesse em pesquisas curatoriais que possam aprofundar elos históricos.
Porém aquilo que para mim é crucial neste momento é desenvolver a infraestrutura física e intelectual no continente. Nós não podemos continuar a ir regularmente a Paris, Nova York e Londres, e voltar para este deserto de meios, onde as coisas não acontecem. É necessário criar espaços de criação, centros de arte, educação e debate. Essa é a minha agenda número um, e estou confiante, pois vejo e continuo a ver as coisas acontecerem. Até a minha agenda pessoal está cada vez mais cheia de eventos de arte aos quais tenho de ir, em várias capitais importantes no continente africano – Cotonou [Benin], Johannesburgo, Maputo, Douala [Camarões], etc., um forte sinal de que as coisas estão no bom caminho.
* Texto publicado originalmente no site Buala, portal online com sede em Lisboa, com foco crítico sobre temas culturais contemporâneos que envolvem Portugal, África e Brasil.
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