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O sociólogo Ariel Wilkis (ao centro): “A desconfiança se multiplica quando se pensa no dinheiro nas mãos dos pobres”
[O livro] Las sospechas del dinero responde a quê?
Tratei de jogar com uma dupla desconfiança: a desconfiança com relação ao dinheiro e com relação aos pobres. Ambas se multiplicam quando se pensa no dinheiro nas mãos dos pobres. Para alguns, o dinheiro traz individualismo, tem um princípio corruptor e é sinal ou sintoma de degradação moral, de dissolução de laços sociais. O dinheiro gera incertezas porque é o meio de meios; pode se converter em outra coisa e quem o transfere nunca consegue controlar totalmente o que será feito com esse dinheiro. E quando o dinheiro é transferido a pessoas que, por sua condição social, são retratadas por parte da sociedade como suspeitas de gerarem insegurança e medo, então a incerteza do dinheiro aumenta. A desconfiança sobre o pobre está relacionada com a desconfiança com relação a um outro desconhecido, que gera perigo e apreensão. Uma sociologia moral do dinheiro permite mostrar que o dinheiro tem muitas outras faces e muitos outros papéis na vida social em geral e na vida social do mundo popular em particular. O mesmo produz afeto, lealdades, solidariedades como também conflito, brigas. Por isso, o dinheiro que vem das políticas sociais multiplica ao quadrado a desconfiança sobre o dinheiro e sobre o mundo popular num marco no qual parte da sociedade pensa que tem direito de desconfiar por se tratar de dinheiro público.
Daí se referir ao incômodo gerado pela Pensão Universal por Filho…
Digo que a política social transformou-se numa política de transferência de dinheiro. A pesquisa que enfrentei transcorreu num momento oportuno para entender que o dinheiro não é um objeto, um instrumento neutro, mas algo que traz preconceitos e estigmas, em algumas ocasiões através do dinheiro que é transferido pela política social da Pensão Universal por Filho (AUH, na sigla em espanhol). Agora, minha pergunta é a seguinte: “Se a AUH é um direito, por que uma parte da sociedade se arroga o direito de julgar a transferência e o uso do dinheiro?” Se nós o definimos como um direito, não se pode julgar moralmente o uso que é feito do dinheiro. Paradoxalmente, quanto mais dinheiro a política social transfere, mais uma parte da sociedade se arroga o direito de fazer esse julgamento.
Por que a Villa Olímpica [bairro popular de Buenos Aires, local da pesquisa do autor]?
Este lugar me permitiu observar o mundo popular em relação com o mundo da política, da religião, da família, da economia. Particularmente porque naqueles anos [2006-2010] o bairro estava vivendo um processo de transformação e urbanização que me permitia ver – em pequena escala – a transformação social. Era um momento de urbanização no qual o Estado estava transferindo recursos, inclusive monetários, para pagar cooperativas e a construção de moradias.
Como foi esse processo?
Nem todo o bairro transformou-se com a mesma velocidade. Esse processo de urbanização permitia ver as desigualdades internas do mundo popular. Havia famílias em posição muito melhor para se apropriar da nova moradia e outras que não tinham recursos próprios para usar a moradia de forma adequada. Como me disse uma liderança do bairro: “Muitos se dão conta do quão pobres são quando têm que se mudar para a nova moradia. Porque na casa precária as condições estão adequadas a essa precariedade, mas quando passam à nova moradia se dão conta de tudo o que lhes falta”.
Qual foi o principal achado da sua pesquisa?
A possibilidade de colocar um objeto ausente – o dinheiro — na interpretação do mundo popular, seja para as ciências sociais ou para o jornalismo. Ver como o dinheiro arma e desarma projetos familiares, políticos, comissões religiosas, aspirações de ganhos. Eu procurava o peronismo e encontrei o dinheiro; buscava fazer uma pesquisa que me permitisse atravessar muitos mundos sociais, muitas esferas da vida social do mundo popular e não me concentrar em uma só. O que eu tinha mais presente era essa instituição organizadora do mundo popular para as ciências sociais na Argentina (e não somente), chamada peronismo. Trabalhei uma sociologia dramática do dinheiro,
flickr/ansesgob
Bairro popular em Buenos Aires: políticas de transferência de renda podem gerar preconceitos e estigmas
Que lugar ocupa o dinheiro na vida cotidiana das famílias?
O dinheiro circula entre e em direção às classes populares, por dentro e por fora da vida familiar e dos bairros, em redes políticas e religiosas, em transações mercantis e não mercantis, e no marco de atividades econômicas lícitas e ilícitas. Está presente na vida política popular; sem dinheiro é difícil pensar organizações políticas estáveis, ele é necessário para a vida política e, particularmente, para a vida política democrática. Partindo dessa ideia, penso no papel do dinheiro nos vínculos políticos e o que vejo é que – longe de romper ou se opor a solidariedades partidárias, lealdades ou obrigações entre seguidores e líderes – existe uma ressignificação desses vínculos através do dinheiro. Receber ou não receber um pagamento que vem no marco de um vínculo político é interpretado como um sinal de lealdade ou de acompanhamento por parte de um dirigente para com seus seguidores ou de seus seguidores para com um líder. Por isso eu não falo de clientelismo ou corrupção. Tiremos dessa equação o dinheiro e o que vem abaixo não é a corrupção, mas a vida política democrática; porque sem dinheiro não existe democracia. Existe uma heterogeneidade de lógicas em torno do dinheiro…
Quais são essas lógicas?
Uma lógica vinculada à família, outra vinculada à religião, outra vinculada à política. Porque o dinheiro não circula sob uma única forma. Isso se constata quando se observam os orçamentos dos lares e se percebe que esses estão compostos por uma multiplicidade de lógicas de obtenção do dinheiro (trabalho, subsídios sociais, créditos). Vemos uma multiplicidade de lógicas que compõem os orçamentos das economias dos lares e vemos que esses lares estão atravessados por diferentes circuitos. Também se vê que a lógica da necessidade, que costuma ser percebida como a lógica que governa os setores populares, não é a única. A lógica da necessidade é uma entre tantas outras. Aparecem as lógicas do gasto, do empréstimo, do lucro, do investimento, da economia, do consumo… O livro permite ter uma visão mais realista; não é verdade a fórmula “pobres=escassez”. O consumo, por exemplo, pode estar guiado por uma lógica de sobrevivência, mas também por uma lógica do relaxar e desfrutar, uma categoria totalmente excluída do mundo popular; pareceria que o desfrutar é monopólico de certos setores sociais. Esse é um pouco o tom do meu trabalho: marcar certos dramas da vida social; dramas que misturam o desfrutar com situações de exploração. É um convite para pensar o mundo popular a partir de outras figuras e não exclusivamente a partir da figura da escassez, daquele que é objeto do assistencialismo, do catador, do piqueteiro [termo também usado na Argentina para se referir a ativistas do movimento social iniciado por desempregados em 1990].
Como a oferta de crédito impacta o consumo?
O crédito na economia popular tem a ver com o que eu defino como uma nova infraestrutura monetária do mundo popular. Existem novas tecnologias e instituições que fazem com que o dinheiro circule no mundo popular. Pedir um empréstimo e se endividar não são uma coisa nova, ao contrário, para alguns autores é inclusive uma característica própria do mundo popular. O novo é o aparecimento de novos atores com novas tecnologias, instituições e instrumentos de crédito. Empresas de crédito pessoal, grandes lojas que oferecem cartões de consumo, instrumentos de crédito que estão se expandindo em direção aos setores com menos recursos por uma redefinição do lugar que esses setores ocupam no mercado. Há vinte anos, eles constituíam um setor pouco atraente para o mercado; hoje é um setor dinâmico, não residual, ao qual é preciso prestar atenção. Então vemos financiamentos e cartões de crédito com altíssimas taxas de juros. Porque o dilema não é “pagar muito ou pagar pouco”, mas sim “pagar muito ou não consumir”. Existe consumo popular, mas também endividamento. Por isso eu falo em “violência do crédito” porque tanto o endividamento quanto o crédito constituem certo vínculo social atravessado pela violência.
Tradução Simone Mateos
* Texto publicado originalmente na revista Debate, publicação argentina impressa e eletrônica com foco em política, economia e cultura.
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