Reprodução/Norman Barker “Hidden Beauty: Exploring the Aesthetics of Medical Science”
Ciência e estética: imagem mostra o local na placenta onde se desenvolve o cordão umbilical
Oystein Horgmo voltava para sua sala em um hospital especializado em câncer na Noruega quando viu um casal idoso sentado no fim do corredor. Enquanto passava por eles, o casal levantou-se, prestes a ir embora. “A mulher ajustou sua peruca ligeiramente, usando o marido como espelho. Eles acenaram e saíram. Isso durou apenas alguns segundos, mas, para mim, disse tudo sobre o horror e a vertigem que um diagnóstico de câncer coloca sobre nossas vidas cotidianas. A necessidade de continuar normal e a vontade de levar uma vida comum novamente. E o quanto os familiares são importantes quando o temporal começa”, escreveu Horgmo em um post intitulado “Um súbito golpe de tristeza”, em seu blog, “The Sterile Eye” (o olho estéril).
Esse momento comum teria escapado a qualquer outro membro da equipe do hospital, mas Horgmo é um observador por profissão. Ele trabalha como fotógrafo médico incumbido de documentar doenças, deformidades e procedimentos de tratamento. Invadir a privacidade dos pacientes e fotografar a fragilidade do corpo humano em seu momento mais vulnerável não é uma tarefa fácil. As situações vão do desafiador ao divertido. Ele deve garantir, por exemplo, durante uma cirurgia, que os vários matizes de vermelho no interior de um corpo sejam capturados com perfeição, permitindo que estudantes de medicina diferenciem os órgãos. Ou fotografar abscessos cutâneos no sulco interglúteo de uma pessoa, com o paciente separando suas próprias nádegas com as mãos.
Pintura abstrata
Muitas fotografias médicas de doenças terminais como câncer, cirrose hepática ou tumor cerebral podem parecer assustadoramente belas sob a perspectiva da lente. O livro “Hidden Beauty: Exploring the Aesthetics of Medical Science” (beleza oculta: explorando a estética da ciência médica) publicado em 2013, está repleto de imagens de tirar o fôlego. O entrelaçamento das células no interior de um cérebro humano atacado por um tumor parece mais uma pintura abstrata em vários tons de violeta. A imagem da capa do livro lembra uma coleção de belas conchas do mar, mas na verdade são várias pedras extraídas das vesículas dos pacientes.
Norman Barker, o fotógrafo autor de “Hidden Beauty”, lembra-se do dia em que, há trinta anos, como recém-graduado em artes, recebeu um convite para fotografar um rim repleto de cistos extraído durante uma autópsia. “Os médicos disseram que eu deveria fazer aquilo parecer bonito, já que seria usado em uma publicação médica de prestígio”, escreve Barker em seu livro. “Eu me lembro de ter pensado: este médico está louco, como vou fazer essa coisa doentiamente vermelha parecer bonita?”
De certa forma, o livro marca a evolução da documentação da medicina — desde as primeiras ilustrações anatômicas de Leonardo da Vinci, que ainda constam em apostilas de medicina, até as imagens microscópicas que usam tecnologia de ponta impressionante. Ainda assim, a razão de ser da documentação visual continua sendo a mesma: o registro do progresso do tratamento, o compartilhamento do conhecimento entre os clínicos, o arquivamento e o ensino da medicina. As fotografias médicas também podem ser usadas como ferramenta de campanhas do sistema de saúde público.
Reprodução
Ilustração representa o sábio indiano Sushruta Samhita, considerado o pai da cirurgia, em procedimento médico
Sem fotos, por favor
Há alguns meses, Kaushik Roy, neurocirurgião em um hospital público de Calcutá, realizou uma cirurgia envolvendo um raro tumor cerebral. “Não havia nenhum fotógrafo disponível e eu não poderia remover minhas luvas para fotografar, mesmo que tivesse uma câmera”, disse Roy. “Não apenas a maneira como guardamos registros é pobre, como também não podemos publicar evidências visuais em periódicos de relevância”, complementa. Os fotógrafos médicos fazem parte dos hospitais no Ocidente, por exemplo, no Serviço de Saúde Nacional do Reino Unido, integrando o departamento de ilustração médica e registros. Mas são raros na Índia.
Kaushik Ghosh, que deixou de lado uma graduação em medicina para seguir a carreira de fotógrafo médico, admite estar em uma posição de vantagem, explicando: “Um fotógrafo médico precisa do conhecimento básico da anatomia humana e de procedimentos cirúrgicos, além de ser tecnicamente capaz, como fotógrafo. “Para documentar a medicina dessa maneira”, diz Ghosh,” começa-se com um curso em tempo integral de fotografia médica”. No momento, nenhuma faculdade médica da Índia oferece esse curso. No entanto, o Instituto de Pós-Graduação em Educação e Pesquisa Médica (PGIMER, na sigla em inglês) de Chandigarh planeja criar um, informa Ghosh, que está elaborando um currículo que combina elementos de medicina, trabalho com imagem e diretrizes éticas.
Sayantan Bera/ Down To Earth
O fotógrafo Kaushik Ghosh (à dir.) documenta uma cirurgia ortopédica: registros podem deixar médico mais seguros
Documentação visual
Em 600 a.C., Sushruta, sábio indiano que se acredita ser o pai da cirurgia, descreveu procedimentos como o de fazer incisões durante cesarianas, além de documentar o primeiro uso conhecido da anestesia. Sua obra, “Sushruta Samhita”, tem ilustrações de cerca de 178 instrumentos médicos. Infelizmente, o manuscrito original foi perdido. “O Ocidente é diligente na documentação e arquivamento, mas, infelizmente, somos ainda muito relutantes nisso. Os médicos preferem manter registros como observações técnicas por escrito”, disse Ghosh.
Hospitais indianos, mesmo os mais caros, que oferecem acomodações de luxo por 75 mil rúpias (R$ 2.871) a diária, não mantêm registros visuais de seus casos. Um motivo possível, além da pergunta “quem irá custear?”, é que “os médicos indianos têm preocupações legais passando por suas cabeças”, diz Anjonn Dasgupta, cirurgião sênior em Calcutá. “Há bons motivos para acreditar que eles se sentiriam inseguros em manter registros visuais do tratamento.” Ainda mais quando a negligência médica é comum. Há outros, no entanto, como o neurocirurgião Kaushik Roy, que acreditam que a documentação visual pode ajudar a evitar preocupações com a lei, no futuro. “Processos por negligência médica ainda não são muito comuns na Índia. Além disso, um médico também pode ser poupado de ações punitivas se houver evidências visuais de que não ocorreu negligência de sua parte”, diz.
Henry Lou Gibson, fotógrafo americano pioneiro no uso de radiação infravermelha, escreveu em seu livro “Medical Photography; clinical-ultraviolet-infrared”, de 1973: “Pacientes são pessoas, pessoas com problemas. Eles frequentemente estão sentindo dor e, normalmente, estão apreensivos. Para eles, o fotógrafo médico é alguém que, mais uma vez, submete-os a uma rotina institucional. Ele tira fotos, com toda a roupa do paciente ou parte dela removida, para mostrar o que normalmente é uma condição embaraçosa ou uma deformidade. Ainda que a fotografia seja indispensável para o ensino e o avanço da medicina, ela não fornece ao paciente os mesmos benefícios diretos que uma radiografia ou um exame de sangue”.
Quarenta anos mais tarde, uma nova geração de pacientes pensa de maneira diferente. Eles querem entender melhor sua condição médica e pode ser que, um dia, nós os vejamos postando as fotos até mesmo no Facebook!
Tradução Henrique Mendes
Texto originalmente publicado na revista Down to Earth, periódico indiano com foco em ciência, tecnologia e meio ambiente.
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