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Verão carioca de 2014 será lembrado pela vitória dos garis em movimento por melhores condições de trabalho
Eles limpam o lixo das ruas e calçadas diariamente. Fazem o trabalho mais sujo e um dos menos valorizado na nossa sociedade. Apesar do uniforme laranja fluorescente, são invisíveis para boa parte das pessoas. Trabalhavam até 12 horas por dia, com salários de R$ 800, correndo a cidade apressados, sempre de forma gentil. Moram em favelas. São em sua maioria negros e tem um sindicato comandado há décadas pelo mesmo grupo político que faz acordos salariais em negociatas fechadas com as empresas e com a prefeitura, que doa dinheiro para campanhas de políticos, que taxam grevistas de vândalos e marginais.
Fazem parte de uma imensa nova classe trabalhadora precariada que nos últimos anos, apesar de todas as dificuldades, disputou um espaço inédito na sociedade brasileira. Os miseráveis, agora mais incluídos através de um governo popular, passaram a ter um horizonte e uma utopia para além do prato de comida. Nesta nova posição conheceram a internet. Compraram aparelhos celulares, notebooks e tablets genéricos. Reconheceram um espaço onde poderiam se relacionar e se organizar sem o patrulhamento imposto pelas organizações trabalhistas, pelo Estado, o capital e a mídia.
Foram sambando das redes para as ruas e criaram uma greve vitoriosa em pleno Carnaval do Rio de Janeiro. Esta é a história dos garis cariocas.
Os adversários
No dia primeiro de março, um sábado, começava oficialmente o Carnaval brasileiro. Depois de uma articulação iniciada nas redes sociais, através de comunidades e perfis criados pelos garis, os trabalhadores da Comlurb convocam uma greve. A categoria exigia aumento do salário base para R$ 1.200, 40% de insalubridade e reajuste do ticket alimentação de R$ 12 para R$ 20. O momento não poderia ser mais apropriado. No Carnaval, as ruas da cidade ficam completamente tomadas e a limpeza feita pelos garis é fundamental para a cosmética da festa.
Mas os garis pararam. E por essa ninguém esperava.
Controlado há anos por um mesmo grupo, o Sindicato dos Trabalhadores da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) historicamente costurou os acordos salariais em negociações nada transparentes. As relações políticas entre dirigentes sindicais e governo jogavam uma nuvem de desconfiança sobre os verdadeiros interesses defendidos pelo sindicato.
Este sentimento foi um dos motivadores para os primeiros debates e provocações trazidas pelos garis nas grandes discussões públicas pelas ruas e praças do Rio de Janeiro.
A posição da prefeitura e do prefeito Eduardo Paes desde o primeiro momento da greve foi de negar e desqualificar o movimento grevista com a conivência do sindicato. Declarações públicas do prefeito chamavam os grevistas de minoria de vândalos e os acusavam de motim.
O sindicato, fazendo jus ao distanciamento da categoria, fecha um acordo pífio de reajuste de 9% no salário e declara de forma artificial o fim da greve, uma jogada ensaiada com a prefeitura e a grande mídia.
A justiça do trabalho considera a greve ilegítima. A empresa Comlurb inicia uma política de intimidação clara enviando cartas, telegramas e até mesmo mensagens de texto (SMS) individuais anunciando uma demissão em massa dos garis grevistas. A Polícia Militar e uma escolta armada privada são colocadas nas ruas para garantir a volta ao trabalho, e uma campanha difamatória contra a greve é orquestrada.
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Garis reunidos em assembleia frente à Câmara Municipal dos Vereadores do Rio de Janeiro
Novas alegorias
Enquanto isso, os grandes veículos de comunicação, principalmente as Organizações Globo, agem enquanto imprensa oficial da prefeitura, embarcando na onda difamatória de desconstrução do movimento. Extensas matérias no jornal “O Globo” e no “Jornal Nacional” apelam para os argumentos judiciais, para o não reconhecimento da greve pelo sindicato e a pouca adesão de trabalhadores, tentando jogar a opinião pública contra os garis.
O lixo acumula-se nas ruas e nas praias. O mal cheiro, característico de algumas regiões pobres da cidade, chega ao centro e à zona sul.
Ao mesmo tempo, feridas muito mais profundas de nossa realidade política começam a ser expostas pelo movimento. Reforça-se o sentimento de abuso e desconexão da realidade do governo de Eduardo Paes, e consequentemente de boa parte da classe política brasileira, evidenciando que os aclamados investimentos na cidade maravilhosa não chegam às bases, e que o modelo sindical compartilha claramente da mesma crise de representatividade de governos, partidos e imprensa.
Desde o primeiro momento, a paralisação dos garis mostrava-se um movimento diferente. Enfrentando ao mesmo tempo a prefeitura e o próprio sindicato, que a principio deveria ser o defensor dos interesses dos trabalhadores, tinha um grande desafio pela frente. Como esta gente até então “oprimida” poderia construir um processo político autônomo e lutar contra inimigos tão poderosos?
A resposta veio de forma contundente. Uma faísca de consciência política fez incendiar a chama laranja que tomou conta da cidade, ganhou apoio nacional e internacional, e na maior humildade apresentou elementos revigorantes para o processo democrático brasileiro. Com uma ação política desafiadora, os garis contra-atacaram e organizaram seu desfile político pelas avenidas do Rio de Janeiro.
Samba no pé
As ofensivas eram respondidas com muita organização e com a instauração de um processo de participação real dos garis. Ficava clara a organização popular e a consciência política. Atos criativos e assembléias diárias somados à convicção da necessidade de união da categoria deram uma grande consistência ao movimento. Dia após dia, a adesão da classe era mais evidente.
Ao não cederem às demissões e ameaças e acelerarem o enfrentamento com atos diários, os garis criaram um clima de confiança fundamental para que a luta por seus direitos fosse o elemento central de criação de um pacto de classe. Este ambiente de união da categoria e a capacidade de diálogo do movimento ganharam, na quarta-feira de cinzas, uma imagem emblemática.
Sorriso, o gari símbolo do Carnaval carioca, conhecido nacionalmente pelas imagens transmitidas pela Rede Globo, a mesma que nesse momento condenava a greve em defesa do prefeito, adere ao movimento e vai às ruas participar do ato sob chuva. Sua imagem, carregado nos braços dos companheiros, toma as redes sociais e vira notícia, da mesma forma que seus passos na Marques do Sapucaí haviam contagiado milhões de brasileiros todos esses anos.
A árdua jornada de trabalho a que o gari é submetido o prepara para o desgaste físico de uma maratona de manifestações, atos e passeatas realizadas diariamente, por oito dias consecutivos. Aliando consciência política, resistência e festividade, demonstraram que não seria fácil contorná-los.
A internet, fundamental no processo de articulação da greve, foi mais uma grande aliada e o principal ambiente de contrainformação. Transmissões ao vivo dos atos e uma ampla cobertura de fotos, vídeos e reportagens virtuais feitas pelos garis e pela mídia ativista desmascaravam a campanha da velha mídia e apresentavam claramente o jogo de interesses colocado nesta disputa. O lixo e o seu cheiro continuavam na rua, mas isso já não era mais um problema apenas dos garis.
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Marcha dos garis nas ruas do centro do Rio de Janeiro conquistou simpatizantes com bom humor
Estandarte de Ouro
Dois grandes atos aconteceram nos dias 6 e 7 de Março, pós-quarta-feira de cinzas. Nesse momento, a tentativa da prefeitura de reduzir os grevistas a uma minoria revoltada tornou-se uma falácia evidente. Os 300 haviam se transformado em uma multidão. A adesão da classe era clara e a sua capacidade de resistência era apresentada com uma leveza carnavalesca desconcertante.
O sábado amanheceu chuvoso, depois de dias seguidos de passeatas sob o sol forte do Rio de Janeiro. O derradeiro ato começou na Central do Brasil e, mesmo com a chuva insistente pela manhã, a presença dos garis foi expressiva. Ali, o reconhecimento do movimento político e seus novos atores já era um fato, tanto para o prefeito como para a sociedade.
A Comissão de Greve, até então ignorada pela prefeitura, passava a fazer parte oficialmente da negociação entre sindicato, Comlurb e poder municipal. Numa última tentativa de manobra, o prefeito Eduardo Paes anuncia naquela manhã, pelo Jornal RJTV da Rede Globo, que na tarde daquele sábado uma reunião no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) decidiria os caminhos da greve. Pegos de surpresa com a noticia pela televisão, sem nenhum comunicado oficial, os trabalhadores grevistas reorganizaram rapidamente seu trajeto e seguiram em direção ao Tribunal para participar do encontro e decidir seus rumos.
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Toneladas de lixo deixam de ser recolhidas das ruas do Rio de Janeiro durante o Carnaval. A greve durou 8 dias
Proposta campeã
A pressão popular dos últimos dias tinha arrefecido as bases que até então pareciam inflexíveis na negociação com a prefeitura e o sindicato. As águas de março, com suas chuvas características, começariam a inundar a cidade com a quantidade de lixo acumulado nas ruas e bueiros. A imagem internacional do país da Copa, já há menos de 100 dias do Mundial, toma uma importância fundamental na pressão dos Garis.
Eduardo Paes foi obrigado a ceder à proposta feita pela comissão de greve. Com isso, o piso passou de R$ 804 para R$ 1.100 mensais, um aumento de cerca de 37%, mais adicional de insalubridade de 40%. O tíquete-alimentação passou de R$ 12 para R$ 20 (66% de aumento), um plano odontológico e outros direitos também foram conquistados. Além disso, as 1.100 demissões por justa causa declaradas anteriormente pela prefeitura como medida punitiva foram revogadas.
Se dependessem do sindicato, os profissionais de limpeza urbana do Rio de Janeiro teriam apenas 9% de aumento. Se dependessem da prefeitura, nunca teriam parado de trabalhar. Se dependesse dos grandes veículos de comunicação, o movimento seria criminalizado e difamado.
Mas os garis não dependiam de nenhum deles. Dependiam apenas da sua capacidade de se organizar. Dependiam da sua dignidade, de sua alegria e potência criativa. Foi assim que eles colocaram seu bloco laranja na avenida pela última vez no sábado, dia do desfile das campeãs do Carnaval, e entraram definitivamente para a história de lutas e conquistas de direitos na imatura democracia brasileira.
O verão carioca deste ano vai ser lembrado pela grande vitória da união dos garis, a escola política que apresentou o melhor enredo para o país
em 2014. Que venham outros carnavais…
* Texto originalmente publicado no perfil do Mídia NINJA no Medium, plataforma colaborativa para a divulgação de matérias e reportagens. Para ver mais especiais do NINJA clique aqui
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