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Programa para estudantes ruandeses promove o uso de computadores: incentivos para a educação do futuro
Este ano marca o 20º aniversário do genocídio em Ruanda. Em exatos cem dias, de abril a julho de 1994, entre 800 mil e um milhão de ruandeses, predominantemente da etnia tutsi, foram massacrados quando um governo extremista liderado por outra etnia, a hutu, lançou um plano nacional para basicamente exterminar a minoria tutsi e qualquer outra que fizesse oposição à suas políticas, até mesmo hutus moderados. Foi um cenário infernal no qual assassinatos brutais – inclusive de crianças e bebês – eram realizados por pessoas que poucos dias antes eram vizinhas, colegas ou mesmo amigas.
O genocídio só chegou ao final quando a Frente Patriótica de Ruanda (RPF, na sigla em inglês), movimento tutsi liderado por Paul Kagame, saiu da vizinha Uganda e derrubou o governo hutu. Kagame tornou-se presidente em abril de 2000 e continua sendo até hoje.
As coisas mudaram muito em Ruanda desde então, e para melhor. Foi a partir de 2006 que a evolução do país passou a mostrar dados impressionantes: mais de um milhão de ruandeses saíram da pobreza; o acesso à saúde e à educação está em expansão; um boom imobiliário transformou a capital Kigali, e pelo menos dois terços da população do país estão abaixo dos 25 anos, tornando o potencial para a força de trabalho de Ruanda extremamente promissor.
Apesar disso, o austero e exigente Kagame reconhece que o vírus do ódio, raiva e desejo de vingança não é fácil de se livrar: “A realidade é que essas coisas não desaparecem simplesmente”. Outro alto oficial militar da RPF, Deo Nkusi, também explicou a dificuldade de se criar uma cultura de tolerância após décadas de disseminação disfarçada de ódio contra os tutsis – que culminaram no genocídio. “Mudar as pessoas aqui é como dobrar o aço: as pessoas foram dobradas de uma maneira por 40 anos e agora elas têm que ser dobradas de outra. Se fizermos da maneira muito rápida, nós iremos apenas quebrá-las. Temos que exercer a pressão gradualmente.”
Histórico
Em 1994, a população de Ruanda era de sete milhões e dividida em três grupos étnicos: hutu (85%), tutsi (14%) e twa (1%) e a grande tensão existente era entre os dois primeiros.
Apesar de falarem o mesmo idioma, terem tradições similares e viverem basicamente lado a lado, hutus e tutsis foram se tornando “inimigos” durante o período colonial belga, que por décadas favoreceu os minoritários tutsis, dando a eles mais poderes do que para a grande maioria de hutus.
Entretanto, quando Ruanda conseguiu sua independência da Bélgica, em 1962, o país passou a ser governado por partidos políticos associados à maioria hutu, que pôs em prática, então, medidas para expurgar os tutsis de Ruanda, através de discriminação e violência. Em poucos anos, metade dos tutsis já vivia fora do país.
Mesmo assim, dentro de Ruanda, os extremistas da elite política hutu continuaram a fomentar o ódio contra a minoria tutsi – culpando-os por todos os problemas que Ruanda enfrentava, uma vez que eram politicamente independentes. A guerra civil explodiu de fato, em 1990, quando a RPF invadiu Ruanda pelo norte, fazendo com que os extremistas hutus passassem a acusar todo e qualquer tutsi ainda dentro de Ruanda de apoiar os rebeldes. Assim sendo, esses extremistas iniciaram uma compilação secreta de todos os tutsis e hutus moderados para serem assassinados, enquanto armava e treinava milícias de jovens, usados para cometer massacres em pequena escala, sem ligar o governo aos crimes. A mais famosa dessas milícias foi a Interhamwe, que, em 1994, se tornaria a principal responsável pelo genocídio.
O genocídio
Em 11 de janeiro de 1994, o general canadense Roméo Dallaire, comandante das forças de manutenção de paz da ONU em Ruanda, enviou um fax urgente para seus superiores na sede da organização, em Nova York, dizendo ter obtido de fontes internas do governo informações sobre um plano de extermínio dos tutsis, liderados pela Interhamwe. A mensagem ficou sendo conhecida como o “fax do genocídio” – e nenhuma providência foi tomada a respeito do alerta.
Advantage Lendl
Lobby do hotel Mille Colline em 2011: o local ficou famoso por abrigar pessoas fugindo do genocídio
Três meses depois, na noite de 6 de abril de 1994, um míssil derrubou o avião que transportava o presidente ruandês, o hutu Juvenal Habyarimana, que estava se aproximando da capital, Kigali. Até hoje não se sabe quem assassinou o presidente, mas essa foi a desculpa para que os extremistas hutus acionassem o plano que o general Dellaire havia descoberto em janeiro.
De maneira diabólica, os radicais assassinaram antes todos aqueles que pudessem se opor ao programa de extermínio, inclusive a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana, uma hutu moderada. Em pouco mais de três meses, acima de 80% da população tutsi de Ruanda foi dizimada, muitos com machados, facas ou pedaços de madeira, gerando as imagens mais horríveis que a humanidade viu desde o Holocausto.
Transformação
As manchas sangrentas do genocídio ainda definem a imagem de Ruanda no pensamento de muitos. Não há como negar que feridas ainda existem e que talvez nunca sarem. Porém, a transformação pela qual Ruanda passou, especialmente na última década, é exemplar, e positivamente inspiradora. Programas bem-sucedidos de reconciliação étnica, saúde e economia, impulsionaram melhorias no país jamais vistas.
Os dados são impressionantes em várias frentes: o PIB triplicou nos últimos dez anos, enquanto a renda per capita subiu de 220 para 600 dólares no mesmo período; a economia vem crescendo em média 7% ao ano desde 2007; os níveis de pobreza caíram 11% desde 2006; e o IDH saltou de 0,314 em 2000 para 0,434 em 2012, um aumento anual em torno de 3%.
O ministro de planejamento econômico de Ruanda, Claver Gatete, afirmou em entrevista ao “Sunday Times”: “Os níveis de pobreza caíram por causa dos grandes investimentos em vários setores de nossa economia. Analisando nosso progresso, em termos do crescimento anual de, em média, 2,73% (IDH), estamos muito acima do patamar africano, cuja média é de 1,34% desde 2000”. Fatores como esses têm atraído investidores estrangeiros em massa, e, de acordo com o mais recente relatório do Banco Mundial, Ruanda é o segundo país “mais fácil de se fazer negócios” na África, e o país que mais avançou mundialmente desde 2005 nesse mesmo critério.
Adam Jones
Edifício no centro de Kigali: Ruanda é o segundo país “mais fácil de se fazer negócios” na África
Limpeza
Os avanços na saúde também têm sido alvo de elogios pelo mundo todo. Desde 2002, Ruanda conseguiu abaixar o número de mortes por Aids em 78%, graças a incentivos na educação, prevenção e distribuição de medicamentos antivirais, que são dados gratuitamente aos pacientes. A mortalidade infantil no mesmo período caiu 70%, levando o professor Paul Farmer, da Harvard University, a afirmar em um podcast do “The Guardian”: “Essas são as maiores quedas em mortalidade já testemunhadas, em qualquer momento ou país”. A ministra da Saúde, Agnes Binagwaho, descreve a filosofia que levou a tais quedas: “Nós entendemos que a saúde é um assunto social, que existem determinantes sociais que influenciam a saúde. Se nós focássemos somente no ministério da saúde, não sairíamos do lugar”.
O progresso ruandês não acaba em números e dados. A capital Kigali foi descrita pela presidente da DHL Express na África, Julie Mutoni, como “a cidade mais limpa e organizada da África”, e pelo banqueiro britânico Charles Robertson, da Renaissance Capital, como “a Cingapura da África”.Todo último sábado do mês é dia de limpeza nacional, quando nas cidades negócios não abrem e todos, de todas as etnias – inclusive o presidente Paul Kagame –, participam dessa atividade em massa que visa não só manter as cidades limpas, mas promover a união nacional. “Esse dia de limpeza tem ajudado Ruanda a se recuperar do genocídio e da guerra civil em múltiplas maneiras, criando um senso de propósito e aproximação entre o povo”, afirma o presidente Paul Kagame.
A África, por conta de inúmeros motivos, é um dos continentes mais problemáticos quando se trata de desenvolvimento econômico e social. Ao observar a história recente de Ruanda, que há 20 anos passou por uma experiência incrivelmente traumática, é inegável concluir que é de fato uma história de sucesso, não só para o continente africano, mas para o planeta como um todo.
*Texto originalmente publicado na Revista Fórum, periódico de opinião inspirado no Fórum Social Mundial.
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