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Montanhas na província de Ha Giang, no Vietnã: guerras constantes ajudaram a preservar a fauna e a flora do país
Não importa para onde você vá ou o que você faça: no Vietnã, perduram os sinais da guerra. A rede mais popular de bares nas principais cidades do país se chama “Apocalypse Now”. Uma das atrações turísticas em Saigon é o antigo túnel vietcongue nos arredores da cidade, onde os turistas podem atirar em alvos com uma AK-47. Misturadas a estas relíquias da “Guerra Norte-Americana”, há também lembranças da revolução contra o Império Francês. Os vietnamitas mais velhos ainda se lembram da luta contra os invasores japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto os mais jovens podem falar sobre a invasão chinesa nos anos 80. Este país e sua população, plantas e animais raramente tiveram a oportunidade de ver a paz durante a maior parte do século 20.
Entretanto a guerra, paradoxalmente, salvou boa parte da biodiversidade vietnamita. Em certa medida, a guerra fez com que os animais ficassem protegidos contra a perda de seu habitat natural, livres da ação de caçadores e afastados dos Ocidentais. Ninguém se aventuraria a entrar em florestas cheias de minas terrestres, caçar em uma zona de guerra ou procurar por novas espécies em regiões adjacentes a um conflito. O confronto constante e moderado deu aos animais que vivem na região da fronteira entre Vietnã, Laos e Camboja algum espaço para respirar.
A sobrevivência em meio a tantos contratempos causa estranheza, mas ocorre tanto no Vietnã quanto em outras áreas de risco, como a zona desmilitarizada entre as duas Coreias.
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Ninguém diria que a guerra é boa para o meio-ambiente. Contudo, os constantes conflitos na região ao longo do século 20 deu às criaturas silvestres uma segunda chance. Mas a sobrevivência da vida selvagem no Vietnã e em outros territórios disputados e zonas fronteiriças, em tempos de paz, é colocada novamente em perigo.
Para compreender como a fauna vietnamita conseguiu sobreviver à guerra, permanecendo escondida ao longo de décadas, fui visitar um homem que trabalhou para o governo do Vietnã do Norte durante a “Guerra Norte-Americana”. O professor Vo Quy é decano aposentado da Universidade de Hanói e antigo chefe de uma comissão estatal cuja incumbência era a preservação de recursos naturais. Ele escreveu o primeiro guia sobre pássaros em língua vietnamita; fundou o primeiro instituto de pesquisa ambiental do país, em 1954; e participou da criação de suas reservas naturais. Foi ele quem arquitetou a “Estratégia Nacional de Conservação”, que mobilizou o povo vietnamita em prol da plantação de 400 mil acres de árvores por ano, a fim de compensar os milhões de acres de florestas e terra arável danificados durante a guerra, tendo recebido a medalha de ouro da organização ambientalista internacional WWF por seu trabalho.
Ainda que ele seja fluente em inglês, nós tivemos que ser acompanhados por um “intérprete” oficialmente aprovado pelo Partido. A despeito da presença do intérprete e do conhecimento de que tudo o que fosse dito seria provavelmente relatado a terceiros, Vo Quy não pareceu ter escondido nada e, muitas vezes, foi bastante crítico ao governo pela lentidão na defesa dos parques e reservas que ele havia estabelecido com tanto trabalho. Ele observou que algumas espécies vietnamitas recém-descobertas conseguiram sobreviver à guerra em parte por conta das dimensões do país. Com 204.773 quilômetros quadrados, o Vietnã tem uma área de cerca de três quartos a da Califórnia (ou seja, é um pouco menor do que a Alemanha). O país também possui cerca de 3.200 quilômetros de costa e cerca de 3.000 ilhas, onde muitas espécies se refugiaram.
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Levando-se em conta o tamanho do país, e também por razões logísticas, apenas “alvos valiosos” foram atacados pelo exército norte-americano, com a maior parte dos bombardeios tendo ficado concentrada em locais como o Caminho de Ho Chi Minh, fronteira entre o Vietnã do Norte e o Vietnã do Sul, ou bases vietcongues conhecidas. Consequentemente, uma grande parte da área silvestre do país escapou dos ataques.
Isto significa que, ainda que mais de 1.367 quilômetros quadrados de florestas tenham sido destruídos durante a Segunda Guerra da Indochina, a vasta maioria das florestas foi poupada. A maior parte dos habitats animais estava fora da zona de combate. As muitas cavernas e sinuosidades das florestas, ambiente preferido dos raros mamíferos recém-descobertos, como a saola (um animal cuja aparência lembra a de um bode, mas que é geneticamente mais próximo aos bovinos), acabou se mostrando um alvo militar difícil para os bombardeios. Vo Quy tem certeza de que muitas outras criaturas conseguiram escapar e está convencido de que elas ainda estão por aí. “A população local está sempre descobrindo coisas sobre as quais nós cientistas não sabemos nada”, disse Quy, em uma afirmação mais tarde confirmada pelo biólogo norte-americano George Schaller: “No Vietnã, certa vez jantei um porco que acreditávamos estar extinto desde 1892”.
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Grou-da-Manchúria, uma das espécies que se beneficia do isolamento da Zona Desmilitarizada entre as duas Coreias
Além disso, tudo indica que as peculiaridades da guerra ajudaram a preservar a vida selvagem. Ambos os lados empregaram todos os seus recursos e esforços no combate, o que deixou pouco dinheiro para a construção e o desenvolvimento de estradas – atividade que apresenta efeitos de longo prazo sobre o meio-ambiente. Da mesma forma, poucas pessoas ousaram se aventurar e visitar lugares onde os conflitos ocorreram até muito tempo depois do fim da guerra, já que era muito arriscado caçar ou instalar armadilhas nestes locais.
Muitos camponeses ainda têm medo de adentrar regiões cheias de minas terrestres onde conflitos ocorreram. O fato de que conflitos constantes de pequeno porte podem efetivamente proteger a vida selvagem já era conhecido para pesquisadores – mas as hostilidades têm de ser de um tipo específico, com uma situação estabilizada, como nas zonas desmilitarizadas. “Se você tomar o caso do Afeganistão, onde todo mundo carrega um rifle automático, isto já não é muito bom para a vida selvagem”, comentou George Schaller.
As áreas fronteiriças entre países inimigos acabam se tornando, efetivamente, santuários da vida animal, desde que não haja conflitos diretos no local. Colin Groves chama isto de “efeito fronteira”. Poucas pessoas querem arrumar confusão visitando uma terra de ninguém. As consequências podem ser terríveis: na área disputada entre Laos e Vietnã, um pesquisador vietnamita foi morto a tiros por guerrilheiros da Khmer Rouge cambojana enquanto tentava descobrir novas espécies.
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Ao mesmo tempo, a vida selvagem não dá a mínima para as fronteiras políticas humanas. “O Vietnã compartilha muitas espécies e habitats naturais com o Laos e com o Camboja, de modo que vários destes animais endêmicos vivem por ali, especialmente ao longo da Cordilheira Anamita”, diz Martha Hurley, do Museu Americano de História Natural, em Nova York. “Eles não se importam com as fronteiras”. Ou, como nos disse Vo Quy: “Animais não precisam de visto”.
Em 2002, em um estudo publicado na revista Conservation Biology chamado “Efeitos da guerra e do conflito civil sobre a vida selvagem e habitats naturais”, Joseph Dudley e seus colegas escreveram que as terras sem dono há muito tempo já cumprem a função de reservas naturais. Um dos coautores do estudo, Andrew Plumptre, afirmou mais tarde que a questão fundamental parece ser que as espécies acabam voltando a povoar a região assim que os humanos deixam seus habitats por um período de tempo prolongado. “A guerra tem este lado positivo: ela impede que as pessoas se mudem para uma região e se estabeleçam por ali”.
Ou, como disse Vo Quy: “De certa forma, a paz é mais perigosa do que a guerra para as espécies ameaçadas”. O efeito fronteira aparece no mundo todo, tanto em áreas grandes quanto pequenas. A Inglaterra, por exemplo, é conhecida pelas muitas sebes que separam os terrenos entre diferentes fazendas; em meados do século 20, estimava-se que havia no país cerca de 800 mil quilômetros de sebes. Com cerca de três metros de largura, estas pequenas faixas de terra entre campos e pastos, cumulativamente, compõem uma enorme área verde; as sebes funcionam como uma reserva natural em meio a uma terra completamente domesticada.
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Se há uma portentosa biodiversidade nestes divisores de três metros de largura entre as fazendas inglesas, imagine o que acontece na área desmilitarizada entre as duas Coreias, com quatro quilômetros de largura por 250 quilômetros de comprimento. A zona foi criada em 1953, ao fim da Guerra da Coreia, e desde então permanece despovoada. Desta forma, enquanto a industrialização intensa e a agricultura comercial seguem ocorrendo em outras partes da Península da Coreia ao longo de mais de um século, esta faixa de terra permanece intacta.
Abandonada, a natureza se encarregou de repopular a região: cerca de 20 mil aves migratórias visitam esta área fronteiriça anualmente. Isto inclui a maior população do mundo de grous-da-Manchúria (Grus japonensis), espécie ameaçada que se reproduz há muito tempo nesta terra de ninguém, entre dois milhões de soldados de exércitos rivais. Grous chegam a até 1,52 metro de altura, e apresentam uma elaborada dança de acasalamento e um chilreado memorável. Por causa do insuspeito santuário animal, sua população aumentou de 300 para 800. Também se acredita que o urso negro asiático (Ursus thibetanus) e o cervo-almiscarado-siberiano (Moschus moschiferus) sobrevivem em meio às trincheiras, minas terrestres e túneis da zona desmilitarizada das Coreias.
Em última instância, a conservação nas fronteiras acaba sendo uma corrida decisiva entre as forças da preservação e da destruição. Isto nos diz algo sobre a capacidade da natureza de sobreviver, e às vezes até mesmo prosperar, a despeito das dificuldades apresentadas pelos ambientes mais extremos – incluindo as zonas de guerra.
Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada no site da Conservation Magazine, revista norte-americana que se dedica à cobertura de questões ambientais.