Vinoth Chandar / Flickr CC
Boletim da falta d’água em SP, 07/04 a 13/04/15*:
– A cidade de Nova York está em racionamento de água há mais de um ano. Boa parte dos nova-iorquinos já se acostumou a tomar banho pela manhã, já que à noite não há mais água nas torneiras. No Queens, moradores passam vários dias sem água, às vezes mais de uma semana, sem saber ao certo quando o abastecimento será regularizado. No Bronx, moradores chegaram a receber água contaminada por esgoto, e alguns precisaram ser hospitalizados. Mas o problema não se restringe a esses distritos, atingindo também as regiões mais badaladas de Manhattan. Um restaurante localizado no chiquérrimo Upper East Side não tem água com pressão suficiente nos banheiros para acionar a descarga. No Chelsea, uma lanchonete hipster mantém há meses os banheiros fechados para clientes. E a duas quadras do Central Park, uma unidade do Starbucks simplesmente não abriu as portas este domingo: “Closed due to lack of water”, informava um cartaz.
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– Se o parágrafo acima parece absurdo, impensável, inconcebível ou mesmo francamente ridículo, é porque é. Quem seria capaz de imaginar a Big Apple nestas condições, há um ano, sem que o assunto merecesse destaque diário na imprensa? Alguém realmente acredita que em Nova York a situação chegaria a esse ponto?
– E, no entanto, em São Paulo só ficamos sabendo que uma unidade da Starbucks fechou em plena avenida Paulista por falta d’água porque havia gente protestando contra o PT na porta (http://goo.gl/AvXO3a).
(- Não é só no Starbucks que falta água – no Queens, digo, em Diadema também. Algumas pessoas chegaram a ficar dez dias sem água em casa – http://bit.ly/1GEbm3T)
– A crise hídrica praticamente sumiu da imprensa. A maioria das notícias esses dias tem sido sobre o nível dos reservatórios – Cantareira fica estável (http://goo.gl/euyCVyhttp://goo.gl/y9IaqV) –, e só. Por que isso acontece? Pessoalmente, culpo não apenas a óbvia e evidente blindagem do governo Alckmin como também uma crise mais ampla no jornalismo que extrapola em muito o antipetismo da imprensa. Os jornais vão pulando de crise em crise sem se aprofundar nos problemas, como reconhece a própria ombudsman da Folha (naofo.de/3rv8). Daqui para frente, isso deve piorar, já que agora ainda menos jornalistas trabalham na Folha e n’O Estado. Em suma: no inverno, os problemas no abastecimento devem se agravar – e a imprensa estará ainda menos preparada para cobri-los.
– Não por acaso, talvez a melhor análise sobre a crise hídrica em São Paulo esta semana foi publicada no Guardian (http://gu.com/p/4754q/stw). A autora critica que os analistas financeiros, ao especular sobre o Brasil, simplesmente não levam a crise hídrica em consideração: “Tentar separar as economias do meio ambiente (…) é como tentar separar mente e corpo. Simplesmente não funciona.” E, realmente, por que levariam? Basta acessar as homepages da Folha e d’O Estado para constatar que falta d’água deixou de ser notícia esses dias.
– Aliás, aparentemente 19% dos clientes Sabesp também não acreditam que haja qualquer problema com o abastecimento de água no estado, dado que aumentaram o consumo em plena crise (http://goo.gl/9HOiWJ). Mas nada é mais educativo do que esta estatística: bairros ditos ~~~nobres~~~ gastam cerca de 40% mais água do que bairros periféricos. Agora vai explicar para o pessoal dos Jardins e das Perdizes que eles precisam aprender a usar água civilizadamente com o pessoal do Grajaú (http://goo.gl/XzscT4).
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Seção Grandes Obras™
– Eis aqui um bom exemplo da superficialidade com que a imprensa de maneira geral vem cobrindo a crise hídrica. Esta semana ficamos sabendo que o governo do estado planeja construir novos reservatórios (com previsão de entrega para 2018) para abastecer a região de Campinas e reduzir a dependência do sistema Cantareira (http://goo.gl/9mT2cD). Quão boa é essa proposta? O artigo cita Antonio Carlos Zuffo, professor da Unicamp que sabe tudo de hidrologia, dizendo que a proposta é importante, mas ao mesmo tempo cobrando mais investimentos em esgoto. Já o ambientalista Paschoal Loner diz que o impacto ambiental seria grande demais. A obra ainda está em fase de estudo de impacto ambiental e o dinheiro virá do governo federal, e isso é tudo que sabemos. E então? O que pensar da Cantareira caipira? Algumas perguntas que não posso deixar de me fazer: Se o projeto é bom e adequado, por que a obra não foi feita antes? Por que o dinheiro virá do governo federal? É do PAC esse recurso (mais de um bilhão)? Esta é uma obra de médio prazo – será feita em regime emergencial, sem licitação, como a interligação Billings-Alto Tietê? Pode isso, aliás – obra emergencial com previsão de término para daqui a três anos? Os reservatórios poderiam ser construídos em algum outro local para minimizar o impacto ambiental? O ambientalista diz que “existem outras áreas” – quais são elas?
– Vejo a mesma superficialidade nesta notícia d’O Estado, “Alckmin consegue barrar na Justiça PPP do esgoto em Guarulhos”. Alckmin moveu uma ação na Justiça contra a prefeitura de Guarulhos para impedir uma PPP com a OAS para tratamento de esgoto na cidade, e venceu. Segundo o TJ, o município não tem competência para legislar sozinho sobre saneamento: precisa agir junto com o governo do estado. O TJ julgou que as leis municipais que autorizavam a PPP são inconstitucionais (http://goo.gl/NH9MeU). A notícia diz que a decisão pode desestimular a iniciativa privada de participar em projetos de saneamento (claro), e diz também que o presidente da Sabesp concorda com a posição do governo do estado. Por fim, ficamos sabendo que Guarulhos tem uma dívida de mais de R$ 2 bi com a Sabesp. Faltou explicar qual o interesse do governo do estado em barrar a PPP, para além de prezar pelo respeito à Constituição. É para manter Guarulhos como cliente da Sabesp? Do ponto de vista financeiro, a decisão parece ser boa para a Sabesp; do ponto de vista do saneamento, parece ruim para a população de Guarulhos. Mas tudo isso é só inferência de quem é leiga no assunto e não tem acesso aos autos do processo, só ao comunicado de imprensa do TJ (http://goo.gl/jJ2DEM).
– Sobre a interligação Billings-Alto Tietê, a notícia que temos esta semana vem da própria Sabesp (http://goo.gl/xd3Cqw). Diz lá que saiu a autorização da prefeitura de Ribeirão Pires para a execução da obra, e que ela deve ficar pronta em 2015 (faltou dizer em que mês).
– Saiu também uma notícia interessante – ainda que igualmente superficial – sobre captação de água do Juquiá, uma das obras a longo prazo do governo do estado (a previsão é de que fique pronta em 2017) (http://goo.gl/JxCdcr). A água terá de percorrer quase 100 quilômetros para abastecer a região de Vargem Grande Paulista e até a zona oeste da cidade São Paulo. Quando leio sobre esses projetos para buscar água a dezenas de quilômetros de distância, não consigo deixar de pensar na água que temos aqui mesmo, em SP, tão mal aproveitada e/ou poluída. Não estou falando só do Pinheiros e do Tietê, mas das centenas de rios escondidos que existem na cidade (http://goo.gl/HA70Ew) (http://goo.gl/bvigJd). É incrível que haja tão pouco ou nenhum esforço governamental em fazer uso dessas fontes alternativas de água nesse momento de cirse. Nem desses rios nem da chuva, aliás – mesmo em meio à grave seca no Cantareira no ano passado, o verão 2013/2014 foi apenas o 15o mais árido desde 1943 na cidade de São Paulo – e as chuvas do verão 2014/2015 ficaram bem acima da média histórica (http://goo.gl/gBt9lO).
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Seção Treta
– O TCE está questionando dois contratos emergenciais da Sabesp: um de quase R$8,8 milhões, para fornecimento de óleo diesel para uma usina geradora (?!?) e um de aproximadamente R$26,5 milhões para uma obra na ETA do Rio Grande (http://goo.gl/6z1ujP). Ó o nível da treta: “Os dois contratos foram feitos sem licitação, em caráter de emergência, devido à crise no Sistema Cantareira (…) Entretanto, para o tribunal, o caráter emergencial da licitação é questionável, pois havia estudo de 2013 que apontava um problema meteorológico e hidrológico no sistema. O tribunal também citou estudos e artigos, desde 2007, alertando sobre a possibilidade de uma crise no abastecimento de água em São Paulo.” E parece que a treta pode ir além: segundo o diretor do Instituto dos Advogados de SP, “a mesma argumentação usada hoje pelo tribunal no caso do Rio Grande poderia ser aplicada às outras obras da Sabesp que tenham sido feitas sob o regime de emergência e que dispensaram concorrência” (http://goo.gl/dezN6j).
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– Além disso, o MP instaurou um inquérito para investigar as denúncias de cobrança do ar que passa pela tubulação (http://goo.gl/D8jvzi). Sinceramente? #EuAchoÉPouco
– A Arsesp, por outro lado, acha OK a Sabesp reduzir a pressão abaixo do estipulado pela ABNT, já que estamos numa situação de crise hídrica (http://goo.gl/0tHSqX). É aquilo de sempre: não falta água, não há racionamento (http://goo.gl/3EKRp4), as pessoas que entraram em contato com esgoto sequer ficaram doentes (http://goo.gl/ISm3kF) (a isso chamo “Crise Hídrica Ruth”). Mas na hora de infringir as regras do jogo, isto é, de assinar contratos sem licitação e de manter a pressurização da rede abaixo do estipulado pelas normas técnicas, nossa, aí temos uma situação excepcional onde tudo é permitido (“Crise Hídrica Raquel”).
– A Câmara de SP, por sua vez, está sugerindo no relatório da CPI da Sabesp uma revisão geral do contrato do município com a empresa (http://goo.gl/mbf8tz). Acho que só conseguirei entender isso melhor depois de ler o relatório, que ainda precisa ser votado.
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Seção O Estado de São Paulo Tem 4 das 5 Cidades com as Maiores Taxas de Dengue do Brasil, Mas Deve Ser Só Uma Coincidência
– Nenhuma menção à crise hídrica na reportagem (http://goo.gl/1c7SKz).
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Seção Psicose / O Iluminado / insira aqui o filme de terror de sua preferência:
– O Brasil é o primeiro país do mundo a aprovar o plantio de eucaliptos transgênicos (http://goo.gl/mHNd5S). Antes de falar dos transgênicos, uma palavrinha sobre os normais (http://goo.gl/0NsdOl): “O monocultivo do eucalipto (…) parece floresta, mas não é. Uma floresta de verdade é constituída pela biodiversidade e não por um único espécime, como o eucalipto. (…) Estima-se que, em média, cada árvore de eucalipto absorva cerca de 30 litros de água potável ao dia, gerando um desequilíbrio hídrico sem precedentes.”
– Bem, isso os eucaliptos normais. O que os transgênicos têm de diferente é que demoram apenas cinco anos e meio em vez de sete para atingir o ponto de corte – e, embora seu cultivo tenha sido aprovado pela CTNBio, o professor Paulo Kageyama da Esalq (e integrante da Comissão!) argumenta que ele trará contaminações e prejudicará a indústria de mel orgânico (http://goo.gl/0NsdOl). Calma que fica pior:
– “[Plantações de eucalipto] geram desertos. (…) A densidade de plantas provoca elevado volume de extração de água do subsolo. A capa que cobre o solo retém a maior parte das águas da chuva, dificultando o reabastecimento dos lençóis freáticos. (…) Em cinco anos o eucalipto GM (geneticamente modificado) retiraria do solo o mesmo volume de água e nutrientes que o eucalipto tradicional levaria sete anos para incorporar. Evidentemente em situações de escassez de água o problema se agravaria. (…) Uma lavoura sedenta será substituída, após cinco anos, por outra lavoura sedenta, que em cinco anos dará lugar a outra. As áreas com florestas de eucalipto serão bombas de sucção d’água, trabalhando em metabolismo acelerado até que acabe a água.” – palavras de Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo e ex-membro da CTNBio (http://goo.gl/Kwv8zB)
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Seção Política(gem)
– A Piaui deste mês traz uma reportagem ótima sobre os bastidores políticos da crise hídrica em São Paulo (http://goo.gl/6kZXGb). O curioso é que, embora excelente, a reportagem também dá conta de que a crise praticamente acabou. Ela começa com a ministra do Meio Ambiente em janeiro de 2014 e termina em março de 2015 com fontes do governo estadual dizendo que não haverá rodízio, de modos que – su-ces-so. E de fato – do ponto de vista político, a crise realmente acabou. Pode faltar água na Paulista, em Diadema ou em Araras (http://goo.gl/P5qHkG), não importa: o importante é que a crise hídrica saiu dos holofotes e, dizem, há uma crise política muito mais severa em curso. Os manifestantes de ontem que o digam (http://goo.gl/AvXO3a).
AGENDA
– Audiência pública da ARSESP sobre a revisão tarifária da SABESP, 15/04 às 9h na Praça Ramos de Azevedo (http://goo.gl/qEJx5W)
– Bloco da Água no Ato Contra a Direita, Por Mais Direitos, 15/04 no Largo da Batata (http://goo.gl/9wVBg2)
– Estreia do primeiro episódio da web-série Volume Vivo seguida de debate com o diretor Caio Ferraz, Marussia Whately da Aliança pela Água e Carlos Thadeu de Oliveira do Idec, 15/04 na Matilha Cultural (http://goo.gl/IRVkTp)
– Conversa sobre falta d’água no programa Propriedade de uso comum, 15/04 no Ateliê 397 (estarei lá!) (http://goo.gl/5Llv35)
– Série de 4 oficinas de construção de biodigestor, em abril na Fundação Julita (http://goo.gl/fBb7Il)
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E esse foi o boletim de 07/04 a 13/04/15. Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais.
*Este e todos os boletins passados estão disponíveis no boletimdafaltadagua.tumblr.com