Imagens por Digital Globe / Anistia Internacional
Satélites registraram ataques contra povoados em Darfur, no Sudão, em 2010
Eles estão a centenas de quilômetros de altitude e são capazes de ver em tempo real como os bombardeios indiscriminados de Bashar al Assad destruíram várias regiões da Síria. E também que milhares de pessoas que há dias abandonavam suas casas fugindo da guerra se encontram agora em território seguro. São satélites que nos últimos tempos se estão transformando em praticamente as únicas testemunhas da destruição que paira sobre alguns rincões do planeta.
No início de janeiro, a Anistia Internacional recebeu informações sobre ataques do Boko Haram na cidade de Baga, no nordeste da Nigéria. Segundo explica Christopher Olof, membro da organização, não há nem jornalistas nem investigadores de direitos humanos capazes de chegar à região e algumas instalações de telecomunicações foram destruídas.
“Os meios de comunicação mal publicaram matérias no momento porque as informações eram escassas”, diz. A ONG, no entanto, foi capaz de dirimir as dúvidas graças a imagens de satélite de momentos imediatamente anteriores e posteriores ao ataque. Com isso, pôde comprovar que cerca de 3.700 estruturas tinham sido danificadas ou destruídas. Sua análise posterior “lançou luz sobre um crime que, de outro modo, teria passado despercebido”.
A Anistia não é a única ONG que utiliza este tipo de imagens. São muitas as instituições que necessitam observá-las e analisá-las para ter acesso, ainda que seja virtual e a distância, àqueles lugares onde seus colaboradores não podem estar fisicamente por questões de segurança, como costuma acontecer com as regiões em conflito.
Olof explica que também servem para propiciar avaliações detalhadas e sistemáticas de uma área específica para localizar, por exemplo, centros secretos de detenção, demolições generalizadas de moradias ou deslocamentos forçados.
A Human Rights Watch (HRW) também utilizou as informações dessas ferramentas para, entre outras coisas, calcular o uso indiscriminado de bombas que o regime sírio empregou em Alepo e Daraa (Síria), ver as dezenas de milhares de casas que foram destruídas no país, localizar valas comuns e o local onde centenas de soldados iraquianos foram executados pelo Estado Islâmico em junho do ano passado em Tikrit, documentar a destruição de povoados no Sudão ou em Mianmar e até mesmo na Turquia, ou identificar os sírios presos em um campo minado perto da cidade de Kobane.
Essa organização realiza investigações em mais de 90 países, entrevistando ativistas locais, autoridades, sobreviventes e testemunhas de violações de direitos humanos, e embasa seu trabalho com os dados proporcionados por esses satélites. Com isso, não só confirmam massacres perpetrados em determinado lugar como também, por exemplo, planejam novas missões comprovando se seus investigadores terão acesso ao trabalho in loco.
“Foi assim que conseguimos identificar mais de 30 povoados na República Centro-Africana onde a maioria das casas tinham sido queimadas em 2013. Era uma situação que até o momento não tinha sido documentada pelos meios de comunicação e que tanto a ONU como a Cruz Vermelha desconheciam”, explica Josh Lyons, um dos investigadores da HRW. Graças aos satélites, a organização pôde mapear a região e alguns de seus ativistas viajaram até povoados para encontrar sobreviventes, documentar os ataques e investigar os responsáveis.
Normalmente, afirma Lyons, as imagens obtidas por satélite ajudam a encontrar evidências que endossam o que uma testemunha disse sobre um incidente em particular. “Buscamos pistas nessas imagens que coincidam com os depoimentos” e que às vezes também servem para demonstrar quais imagens entre as que conseguem chegar das zonas de conflito pelas redes sociais são reais.
Os satélites que captam essas imagens são óticos ou de radar, e são capazes de rastrear milhões de quilômetros quadrados por dia. Por exemplo, o GeoEye-1, da DigitalGlobe, um dos maiores provedores de imagens satelitais, com quatro em funcionamento atualmente, recolhe informações de mais de 350 mil quilômetros quadrados a cada dia, com uma margem de erro de menos de cinco metros. Já o WorldView-1, também da DigitalGlobe, percorre até 1,3 milhão de quilômetros quadrados diários.
Os satélites óticos têm incorporadas câmeras bastante potentes e, ao contrário das câmeras comuns, “não só captam a radiação de cor vermelha, verde e azul, como também identificam detalhes que não são do espectro visível, como podem ser as frequências de infravermelhos”, explica Mateo Burgos, catedrático da Universidade Politécnica de Madri.
Alguns desses infravermelhos são sensíveis à vegetação e podem ser utilizados para ver como os bosques crescem, ou como as colheitas variaram. Outros podem medir o calor e captam zonas brilhantes onde há focos como consequência de incêndios ou explosões.
Esse tipo de satélite necessita da luz do dia para poder recolher suas imagens. No entanto, os satélites com radar são capazes de captar imagens de noite e de dia, e podem até mesmo superar obstáculos como a névoa ou as nuvens. “São capazes de atravessar esses obstáculos e até podem ver coisas enterradas no solo, a pouca distância da superfície”, explica Burgos. Por isso foi estudada sua aplicação para a detecção de minas antipessoa.
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Freedom House / Flickr CC
Crianças sírias em campo de refugiados em Atmeh, no norte do país: satélites documentaram fluxo e crescimento de campos na região
As imagens tomadas por estes satélites têm de ser interpretadas por analistas humanos. Nesse sentido, os óticos levam vantagem, já que as imagens que obtêm são muito semelhantes às que nossos olhos estão acostumados. As tiradas com radar são mais difíceis de analisar, não têm cor, e, quando têm, não costumam corresponder à realidade. Por isso, necessitam de um processo muito complexo para serem entendidas e interpretadas e, embora as imagens sejam realmente um auxílio em muitas ocasiões, “é difícil confirmar um massacre usando apenas imagens de satélite”. Isso faz com que, na medida do possível, tentem contrastá-las com dados recolhidos in loco, explica Micah Farfour, analista na DigitalGlobe.
Por outro lado, esses satélites circulam de um polo a outro, dando voltas, e seguindo habitualmente uma órbita específica. Nesse caminho vão tirando as fotos e a cada volta que dão se deslocam um pouco na órbita para não passar sempre pelo mesmo local. Por essa razão, o tempo que levam para visitar de novo os lugares pelos quais passaram ontem é mais ou menos longo (pode demorar vários dias), o que torna difícil conseguir informação pormenorizada e por minuto de cada lugar.
Embora hoje não possamos saber se acabaram de bombardear uma cidade no Iraque, podemos, sim, saber amanhã. No final, “se massacraram um lugar, quando o satélite voltar a passar verá as casas destruídas, verá que algo mudou, verá o trajeto percorrido por um grupo de pessoas que foge de seus países em guerra”, afirma Burgos.
A Espanha também controla, por meio do Ministério da Defesa, dois satélites desse tipo; o Paz (radar) e o Ingenio (ótico). O primeiro tem um tempo de revisita de um dia, é bastante rápido e pode colaborar com outros satélites para que essa visita se realize, por exemplo, a cada 12 horas.
Esse tipo de informação visual foi utilizado em várias ocasiões como prova em tribunais, no Tribunal Penal Internacional e até no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. “Por exemplo, a adoção em 2008 de uma ordem de prisão contra Omar Al-Bashir, presidente do Sudão, se deu graças ao uso de imagens de satélite que demonstravam a destruição de aldeias em Darfur”, explica Olof.
Também são utilizadas em pesquisas independentes que, com frequência, influem em processos judiciais. Assim, foram usadas para investigar o conflito entre a Rússia e a Geórgia ou as violações de direitos humanos nas prisões secretas da Coreia do Norte.
Infelizmente, a tecnologia ainda apresenta muitas limitações. O principal desafio na hora de utilizar essas imagens em um contexto legal é a análise e interpretação exaustivas que elas requerem. Um tribunal poderia não aceitá-las como prova se o que mostram não for muito evidente.
No fim, como explica Burgos, são imagens digitais tomadas a centenas de quilômetros de distância. “O tamanho do pixel é muito grande, e fisicamente falamos da ordem de dois por dois metros cada um.” Por isso, ver coisas pequenas, como pessoas, é realmente difícil. Para enfrentar esse problema estão começando a investigar com aviões não tripulados equipados com sensores que atuam de modo similar aos satélites.
De qualquer modo, essas imagens satelitais proporcionam “uma evidência irrefutável e quase de caráter científico” de que está ocorrendo uma violação dos direitos humanos, afirma Olof. As imagens são poderosas e ajudam, acrescenta ele, a mobilizar os cidadãos. Lyons lembra que essa tem de ser uma ferramenta a mais para a denúncia, não a única, e insiste em que defensores de direitos humanos devem, sempre que possível, visitar os locais em questão. A defesa desses direitos não pode nem deve reduzir-se à tecnologia.
Tradução: Maria Teresa de Souza
Matéria original publicada no site do jornal espanhol El Diario.