damon jah / Flickr CC
Sonho ou realidade? Cruzamento em Tóquio, no Japão
Para muita gente, ouvir uma pessoa descrevendo seus sonhos é um tedioso pesadelo. Já para G. William Domhoff, isto é uma vocação: como pesquisador de sonhos, ele os ouve profissionalmente.
No entanto, mesmo um especialista em sonhos tem seus limites.
“Assim que as pessoas descobrem o que faço, querem que eu interprete seus sonhos”, conta Domhoff, professor e pesquisador na área de psicologia e sociologia da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, que escreveu muitos livros sobre o assunto.
Domhoff lida com os sonhos numericamente, preferindo trabalhar com grandes conjuntos de dados e não apenas com relatos individuais. Ao longo dos anos, ele coletou e analisou uma vasta biblioteca de sonhos, sendo um dos fundadores do The DreamBank (“O Banco de Sonhos”, em tradução livre), um arquivo online com mais de 22 mil descrições de sonhos. O banco de dados, que pode ser consultado por qualquer pessoa, é uma tentativa de quantificar uma das mais efêmeras experiências humanas.
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A pesquisa sobre sonhos decolou nos anos 1950, quando o sono REM (“rapid eye movement”, na sigla em inglês, ou “movimento rápido dos olhos” em tradução livre) foi identificado e vinculado aos sonhos. Os cientistas pensavam antes que o sonho só ocorria durante o período REM; hoje, acredita-se que ele também possa ocorrer em outras etapas do sono. (No momento, Domhoff está trabalhando em um livro que explora a conexão entre o “sonhar acordado” e os sonhos durante o sono). A descoberta deu início a uma série de pesquisas em laboratório em que voluntários eram acordados e indagados sobre seus sonhos. A pesquisa em laboratório continua sendo uma forma comum de coletar sonhos, assim como a solicitação de que estudantes e outros grupos os registrem em diários. Mas coletar dados sobre sonhos é algo inerentemente desafiador.
“Você não pode forçá-los a acontecer”, diz Domhoff. E os diários de sonhos apresentam seus próprios riscos. “Estamos sempre à mercê dos participantes, não sabemos se estão narrando o conteúdo de maneira fidedigna ou se estão floreando a história”, diz Domhoff. Por exemplo, um participante tímido pode esconder um sonho de conteúdo amoroso.
O que o pesquisador deve fazer, então? Buscar registros de sonhos mantidos por pessoas por “suas próprias razões”, nos termos de Domhoff. E muitos dos sonhos mantidos no DreamBank são documentos desse tipo.
Há, por exemplo, o diário de um viúvo que começou a registrar todos os sonhos que teve sobre sua esposa falecida. (Domhoff dedicou um artigo inteiro a este diário). O banco de dados possui 3.166 sonhos de uma mulher que os registra desde 1977. Outra sonhadora, “Dorothea”, contribuiu com 900 sonhos registrados ao longo de 53 anos, tendo começado em 1912.
O banco tem sua origem nos registros herdados por Domhoff de seu mentor, Calvin S. Hall, um psicólogo que criou um sistema para a codificação de sonhos que permite aos pesquisadores rastrear itens como personagens, atividades e objetos recorrentes. Hall morreu em 1985 e sua coleção permaneceu inacessível por muitos anos. Em 1999, Adam Schneider, estudante de Domhoff, sugeriu que eles colocassem os textos na internet acompanhados de um mecanismo de busca. O DreamBank nasceu e as coleções atuais foram adicionadas aos registros históricos de Hall.
O arquivo está organizado em 73 categorias de sonhos. A maioria das categorias provêm de sonhos coletados de indivíduos, mas alguns são de grupos aos quais foi atribuída a tarefa de anotá-los, como cegos e crianças suíças. Ao longo dos anos, as pessoas ouviram falar do DreamBank e passaram a enviar seus diários privados para que sejam preservados e disponibilizados para leitura. Domhoff defende a manutenção do anonimato dos sonhadores, e muitos dos pseudônimos do DreamBank são bem-humorados e descritivos, como “Pegasus: o operário” e “Toby: um simpático arroz-de-festa”.
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Desde que o banco se tornou público, vários pesquisadores usaram os dados para conduzir suas próprias pesquisas sobre o assunto. O método atual pode ser apenas o começo. Domhoff acredita que a tecnologia atual dos smartphones poderá ser a chave para a coleta de um número ainda maior de sonhos, e ele não é o único. Em 2014, Hunter Lee Soik, ex-freelancer e diretor criativo, organizou uma arrecadação de fundos na soma de US$ 82.500 para criar um aplicativo que as pessoas pudessem usar para registrar seus sonhos e, em seguida, enviá-los a um banco de dados para codificação. Assim como Domhoff, Soik espera disponibilizar aos pesquisadores acesso a dados que os ajudem a entender melhor os sonhos.
E como é ler os textos do banco de sonhos? De certa forma, é como estar em um quarto cheio de pessoas que narram seus sonhos. As narrativas podem ser, ao mesmo tempo, estranhas, monótonas e envolventes.
Toby, por exemplo, sempre sonha com mulheres atraentes e maconha:
“De repente, nós paramos para comer e, então, eu estou no primeiro lugar da fila, olhando para a atendente. Ela é uma ruiva de cabelos lisos, com um rosto muito bonito e dentes perfeitamente brancos. Eu olho para o menu e reconheço o lugar como um Jack-in-the-Box [cadeia de fast-food norte-americana]. Por algum motivo, estou confuso e tenho dificuldade em fazer o pedido. Ela percebe que estou confuso, olho para ela e digo: ‘Eu não estou me confundindo por estar chapado, OK?’, ela olha para mim de maneira sexy e diz: ‘Tudo bem, eu espero’.”
Os sonhos podem ser buscados por palavras-chave. Este é o sonho da “Menina da Costa Oeste”, de 12 anos, com a palavra-chave “gato”:
“Vi uma luz do lado de fora e um OVNI. E.T. [personagem do filme homônimo] saiu, mostrou o dedo do meio e disse “telefone, minha casa”. Minha irmã saiu com meu gato e gritou. E.T. levou minha irmã embora, eu estava bem feliz. Então ele levou meu gato, eu fiquei tão brava que joguei uma pedra enorme nele; ele logo desapareceu. Em seguida, era manhã, minha irmã e meu gato estavam em casa; eu fui para o supermercado Safeway por volta das duas horas e vi Billy Joe Armstrong [sic]. Eu pedi um autógrafo, mas ele fugiu. Seus pais estavam lá.”
Pessoas famosas aparecem com frequência. Ed, o viúvo que registrava apenas sonhos sobre sua esposa falecida, Mary, sonhou que ela e o comediante norte-americano Jerry Seinfeld o abandonaram durante um passeio: “Estou entediado porque não tenho nada para fazer, e irritado com Marry e Jerry por terem me abandonado aqui”.
Depois de visitar e revisitar décadas de dados, será que Domhoff consegue, de fato, interpretar os sonhos? Bom, sim e não.
Domhoff diz entender a ânsia por atribuir sentido aos sonhos.
“Os sonhos são tão reais”, diz. “Tio Frank está doente ou Nancy deu um tapa em Betty… queremos dar algum sentido a isso. Não conseguimos enxergar os sonhos como algo aleatório”.
Mas há muito “ruído” nos sonhos, diz Domhoff. A fim de começar a analisar o significado dos sonhos de uma pessoa, Domhoff precisaria ouvir muitos outros sonhos daquele mesmo indivíduo, e não apenas o primeiro que lhe vem à cabeça. Além disso, embora muitas culturas tenham atribuído um potencial fantástico aos sonhos, indo do diagnóstico de doenças à predição do futuro, a avaliação de Domhoff é um pouco mais sóbria. Os sonhos, diz ele, são uma expressão dos mesmos pensamentos e preocupações que temos quando estamos acordados.
“Se você nunca conseguiu superar seu relacionamento com Joe, se você ainda sente rancor, está irritada com ele ou ainda o ama, então Joe provavelmente vai continuar aparecendo em seus sonhos”, diz Domhoff.
Em outras palavras, você não é a única pessoa que sonha com trabalho. Quanto a Domhoff, é difícil dizer qual o conteúdo de seus sonhos. O próprio pesquisador admite não se lembrar da maioria deles.
Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada no site norte-americano Atlas Obscura. Leia outras matérias sobre sonhos no site clicando aqui e aqui.