Calixto Adida foi o escolhido pela jornalista Amanda Rossi para ilustrar a capa de seu livro Moçambique, o Brasil é aqui (editora Record). Trajando uma camisa da seleção brasileira com o número 11 e o nome Robinho nas costas, o camponês não é só mais um fã do futebol pentacampeão do mundo. Adida vive em umas das regiões que mais chamou a atenção da política externa “ativa e altiva” do governo brasileiro desde 2003. Os brasileiros se tornariam figuras presentes em seu dia a dia.
O governo brasileiro também usou a fama futebolística para acenar a Moçambique. Por meio do ministério do Esporte e uma ajuda da mineradora Vale, doou uma fábrica de bolas para o país africano. Esse presente era representativo para a nova política que o ex-presidente Lula propagandeava no continente: eram os africanos que dariam o pontapé para o seu próprio desenvolvimento.
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Essa política, no entanto, tem outra face. Adida vive no corredor de Nacala, onde o agronegócio brasileiro avança em ritmo acelerado. O governo incentivou a ida da Embrapa para analisar o solo da savana africana e fazer o que, na década de 1970, foi feito com o cerrado brasileiro. O projeto, que mescla cooperação com a presença de empresas privadas, vai tirar muitos camponeses de suas terras e já levanta muitas questões no país.
Nada, porém, gera mais controvérsia do que a Vale. A empresa tem em Moçambique o maior projeto brasileiro em toda a África, estimado em 8,2 bilhões de dólares. Quando venceu a concessão para explorar a mina de Moatize, no norte do país, a empresa valia mais de 20 vezes o PIB de Moçambique. Até agora já removeu mais de 1,3 mil famílias de suas terras por conta das operações, mas ainda vai reassentar muitas outras para a construção de uma ferrovia e um porto para escoar sua produção.
Para complementar a história, Amanda conseguiu com exclusividade telegramas secretos do Itamaraty que ajudam a trançar o complexo jogo de interesses e a aproximação do governo brasileiro com as empresas nacionais que desejavam fazer negócio com Moçambique.
Foi nesse cenário que a jornalista viu as maiores diferenças entre as duas vezes em que esteve no país. Na primeira, em 2010, viu o quanto de interesse Moçambique despertava nos brasileiros e via nos olhos dos moçambicanos a esperança de que a política brasileira fosse ser diferente das dos países do norte. Na segunda, pôde ver de perto a face capitalista das empreitadas das empresas brasileiras e os questionamentos dos habitantes do país que não viam o desenvolvimento tão sonhado mudar suas vidas. Para ela, o que atrapalharia as pretensões do Brasil de ser “um grande irmão” para a África é não há um projeto claro que equilibre o apetite das empresas com a vontade de cooperar. “Tudo ainda é feito no jeitinho”.
Leia a entrevista com a jornalista Amanda Rossi a seguir.
Em um dos apêndices do livro o ex-presidente Lula diz que “para estar na África precisa gostar muito de África”. Como você chegou até Moçambique? Qual foi o seu interesse?
Amanda Rossi: Nesse aspecto eu concordo com o Lula, a gente acaba se envolvendo com a África. Moçambique é um país que atrai brasileiros, nós somos muito bem recebidos e nos sentimos muito em casa. Apesar de todas as grandes diferenças, a gente acaba se envolvendo emocionalmente com o país.
Eu fui pela primeira vez pra lá em um intercâmbio da Universidade de São Paulo (USP) e quando eu cheguei, tive um impacto muito grande por conhecer uma África diferente daquela que a gente pintava no Brasil. A gente tinha um estereótipo muito forte da África como um continente de fome, de epidemia, de guerras, de ditadura, que foi algo que realmente aconteceu, mas no momento em que fui o continente já estava superando isso.
Quando surgiu a ideia do livro?
A gente sabia muito pouco dessa aproximação brasileira. Sabíamos que o Lula estava viajando, que o Brasil estava abrindo embaixadas e que o volume do nosso comércio exterior estava crescendo, mas não sabíamos qual era a cara disso, o que de fato as empresas estavam fazendo, e como os africanos recebiam essa chegada do Brasil. Então na primeira vez que eu cheguei esses temas apareceram de uma maneira muito forte, comecei a escrever reportagens sobre essa relação sul-sul. Voltei pra cá nesse meio tempo e vendo que os negócios brasileiros por lá só cresciam pensei que valia a pena contar essa história em um livro, aumentar um pouco mais, já que a gente tinha pouca informação sobre isso no Brasil.
Na apresentação do livro você diz acreditar que deve ser dada à África a chance de contar a sua própria história. Os negócios do Brasil colaboram pra isso?
A presença do Brasil colabora quando a gente pensa na postura política. Se formos pensar na cooperação de norte-sul (dos mais ricos para os mais pobres), o Brasil se diferencia um pouco no discurso. Quando você vê a cooperação dos países ricos, existe muita interferência nas políticas públicas, isso não é de agora, é um modelo que existe há décadas e que tem gerado cada vez mais críticas nos países africanos. A China, que é um modelo que se diferencia desse tradicional, também faz algumas exigências econômicas, principalmente para explorar recursos naturais. O Brasil não tem essa interferência e, no discurso político, faz propaganda de suas políticas sociais.
Agora as empresas brasileiras, como diz Mia Couto [escritor moçambicano] no livro, não são muito diferentes das empresas dos outros lugares do mundo. Tentam conseguir melhores valores nos contratos e pagar o mínimo de imposto possível. Nesse aspecto a gente vê que o Brasil não dá muita margem de escolha, como os outros países também não davam.
O exemplo mais emblemático que é retratado no livro é do maior negócio do Brasil na África hoje, que é a Vale. Ela chega a Moçambique com um forte apoio do governo Lula, e deixa muito pouco espaço para o governo moçambicano negociar, porque ela valia quase 20 vezes o PIB do país. Foram negociados termos muito favoráveis à Vale, e questionáveis do ponto de vista do que eles deixam de legado pra Moçambique. Então quando a gente pensa que os moçambicanos estão tendo essa oportunidade de serem sujeitos da história com relação às empresas brasileiras, nós não estamos sendo muito diferentes das empresas do resto do mundo não.
Por outro lado, há também projetos de cooperação interessantes, como a fábrica de remédios anti-HIV. Como a população moçambicana vê isso?
Ela tem o potencial de ser bastante transformadora, porque Moçambique tem uma das maiores incidências de infecção pelo vírus HIV do mundo. No sul do país, a incidência chega a ser de 20% da população, e todos os medicamentos do coquetel são importados e o país nem tem dinheiro pra comprar esses medicamentos; todos eles hoje são doados por países do norte.
O projeto é muito interessante, mas revela toda essa dificuldade da cooperação do Brasil. Essa fábrica é um projeto em parceira com a Fiocruz. Ele é muito interessante porque o Brasil se propõe a “não dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Trata-se de uma pesquisa do Brasil com medicamentos genéricos indo para Moçambique. Os desafios são enormes porque lá praticamente não tem faculdade de farmácia, não tem acesso aos insumos que se usam pra fazer os medicamentos, é um projeto difícil.
Só que como o Brasil ainda deixa a desejar na estrutura, a fábrica demorou muito pra se viabilizar. Quando o presidente Lula ia pra lá, ele sempre visitava o projeto, sempre saíam matérias na mídia, mas é um projeto pouquíssimo conhecido porque ainda não está dando resultados concretos. Depois de 10 anos do projeto assinado é que eles conseguiram, pela primeira vez, fazer um medicamento do coquetel. A fábrica ainda corre sérios riscos agora porque o Brasil começou a enfrentar um concorrente que não se imaginava, que foram as indústrias farmacêuticas privadas da Índia, que viram no projeto uma chance de entrar no mercado de medicamentos do continente. Corre-se o risco de, após muitos anos de sacrifício da Fiocruz e de outros agentes, perder o projeto para a iniciativa privada, porque era pra ser uma fábrica estatal.
Faltou ao Brasil criar estruturas definitivas para prestar esta colaboração; a gente faz de uma maneira completamente desarticulada. É que antes o Brasil recebia essa ajuda de fora e agora começou a fornecer, mas nós estamos há 12 anos nessa e sempre fazendo tudo “no jeitinho”.
Nessa esteira dos projetos simpáticos, tem um exemplo muito emblemático que foi a criação de uma fábrica de bolas em Moçambique. Quando você busca notícias da época você encontra o ministério do Esporte falando sobre o projeto e como ele era bacana. Mas quando você olha na outra ponta você tem outra impressão: o Brasil doou essa fábrica de bolas mas ela funcionou durante alguns meses e depois se tornou inoperante.
Essa discussão tem que ser feita, porque o Brasil é uma economia importante no mundo, e temos que saber qual o papel solidário dele. Outro ponto é discutir que tipo de projeto a gente quer que o Brasil tenha, o que a gente quer levar pra fora? Hoje alguns movimentos sociais brasileiros já começam a participar dessa discussão e começam a questionar o governo.
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Amanda Rossi / Livro 'Moçambique, o Brasil é aqui'
Vista da mina de carvão da Vale em Moatize, Moçambique
Os projetos privados do Brasil em Moçambique – Vale e ProSavana – são os que mais geram contradições e reações negativas da população. Quais são esses impactos?
Esses são os maiores exemplos, não só em Moçambique como na África como um todo, da oposição à presença brasileira. A gente começa a ver os impactos nos locais onde as empresas e os projetos estão e vê o Brasil começar a ser questionado.
No começo, havia na população uma perspectiva positiva em relação à Vale, porque era uma grande empresa que estava chegando com um discurso diferente, trazido pela presença do Brasil. As pessoas da região ficaram entusiasmadas de, de repente, vir a ter uma oportunidade de trabalhar e participar daquele desenvolvimento que estava sendo prometido. Quando a Vale começa a operar de verdade as pessoas começam a se decepcionar, porque muitas foram removidas de onde viviam e levadas pra uma área muito distante, com características de solo muito diferentes. Essas pessoas tinham perfis camponeses que dependiam muito da agricultura. Tem um líder de uma comunidade que foi removida que fala da Vale com bastante mágoa e diz que “não há desenvolvimento pra quem foi reassentado”.
No ProSavana foi a mesma coisa, com a diferença que pela primeira vez o Brasil misturou o interesse privado com a cooperação. Ele ainda não está completamente implementado, mas a gente vê a mesma coisa que aconteceu com a Vale anos atrás: tem a expectativa de que ajude a população, mas tem várias pessoas que já estão dizendo “mas vocês brasileiros vão chegar aqui, vão pegar as nossas terras, vão colocar a gente aonde, o que vai acontecer com os nossos modos de vida tradicionais?”
O ex-presidente Lula, na entrevista que deu para o livro, diz que as empresas têm que ser diferentes e que como o governo dá financiamento e apoio político então ele pode exigir. Só que não existe nenhum instrumento concreto hoje para que o Brasil possa fazer isso. É uma discussão que está pra ser feita como várias outras e, como não é feita, quem tem poder de pressão leva a agenda.
Sua narrativa traz algo novo, que são os telegramas secretos do Itamaraty. O que ele diz sobre a política externa brasileira? Falta transparência para o Itamaraty?
O Itamaraty tem uma característica pragmática. E o interessante é que quando você olha os documentos você vê que pouca coisa mudou: ele sempre se propôs a ajudar as empresas brasileiras quando tivessem negócios em países africanos, desde a época dos governos Médici e Geisel. Algo que é diferente de hoje com relação à ditadura é o discurso solidário, então se a gente tem esse discurso, nossa obrigação é ser coerente e tentar equilibrar esse desejo de fazer mais negócios.
Sobre a transparência, acho que falta sim. Particularmente, eu queria que todos os ministérios tivessem telegramas, porque a gente teria mais condições de conhecer a história dos bastidores. Isso acaba sendo uma praxe só do Itamaraty então a gente acaba tendo acesso a muita informação que a gente não tem em outros ministérios; alguns embaixadores se comunicam de forma muito franca. A história contada pelos telegramas é muito interessante porque são os bastidores da política, como o governo vai auxiliando as empresas, como ele vai participando desse diálogo.
Uma questão curiosa e que não dependeu do governo brasileiro é a presença da Igreja Universal em Moçambique. Como isso se contrapõe aos valores religiosos da população moçambicana?
As igrejas e as novelas brasileiras correram o seu próprio caminho; mesmo antes de o governo Lula ir para a África elas já estavam galgando esse espaço. Agora a Igreja Universal é a igreja evangélica brasileira mais forte no continente: ela tem mais de mil templos e 600 mil fiéis. Assim como no Brasil, lá ela também se contrapõe muito às religiosidades africanas. As religiões africanas têm muita relação com a ancestralidade e com a ideia de magia e feitiço e a presença da Universal cresce justamente no combate à ideia de “feitiçaria”. As igrejas evangélicas brasileiras têm propagandas feitas especificamente para a África em que isso é mostrado. Uma que me marcou bastante mostra uma menina que chega com sapatos muito bonitos em casa e mostra os sapatos pra amiga, que ficava morrendo de inveja. A amiga ia lá e fazia um feitiço e no outro dia aparecia a amiga que comprou os sapatos doente, de cama, com o pé inchado e cheio de bolhas, e a outra ficava toda feliz dizendo “agora o sapato vai ser meu”. A mensagem ali era “venha para a igreja, vamos desfazer essa magia e combater essas feitiçarias”. Já existem vários pesquisadores que questionam muito o impacto negativo [da igreja] naquela cultura e religiosidade, porque você está criminalizando uma prática. Mas ainda não é uma crítica muito presente, só alguns acadêmicos a fazem em espaços bem localizados.
Moçambique teve um passado de lutas, chegando a viver um período no socialismo. Como isso se reflete na população hoje?
Um dos aspectos que me chamam mais atenção na história de Moçambique é como, em tão pouco tempo, o povo moçambicano passou por tanta coisa e como ele consegue se localizar em meio a tanta turbulência histórica. O país foi colônia, depois teve a guerra da independência, um resquício de socialismo, a “viragem” – como eles chamam – para o capitalismo, um período neoliberal, uma guerra civil super sangrenta, depois ficou totalmente dependente da Europa para financiar o orçamento do Estado, e por último chegam a China e o Brasil.
Os protestos de hoje, porém, têm uma natureza diferente. Não se retoma muito a independência, a guerra civil, é um diálogo em que a população diz “queremos participar do desenvolvimento que está acontecendo”. Eles veem que o país está crescendo muito, existem cada vez mais notícias de empresários do mundo todo se reunindo com o governo, e a exploração de vários tipos de recursos naturais, mas quando você olha as condições sociais do país, elas não estão melhorando. Mais da metade da população ainda vive abaixo da linha da pobreza, então mais do que a oposição entre o desenvolvimento econômico e as péssimas condições sociais, ela vai gerando uma turbulência que já começa a se manifestar em crítica e oposição, que era algo que até pouco tempo não existia.
Isso acontece porque não há mediação do governo com as empresas e os habitantes. Quando os moçambicanos são impactados pelas empresas brasileiras, eles reclamam que o governo está sempre do lado da empresa. Existe essa facilidade de diálogo com o governo por parte das empresas, é um país super voltado para os negócios, mas quando começa a haver problemas bem concretos desses impactos dos projetos econômicos, a população tem muita dificuldade de encontrar com quem dialogar.
Entrevista original publicada no site do jornal Brasil de Fato.