O ecologista Carl Safina se tornou conhecido internacionalmente por estudar e escrever sobre os oceanos e as criaturas que os habitam. Agora, Safina voltou sua atenção para a vida interior dos animais, explorando, como ele próprio diz, “o incrível mundo de nuances que muitas destas criaturas experimentam em suas vidas”. O resultado é o livro Beyond Words: What Animals Think and Feel [“Além das Palavras: O que os animais pensam e sentem”, em tradução livre], publicado em julho nos Estados Unidos.
Na entrevista a seguir, Safina discute a rica existência — cheia de fortes vínculos familiares, interações lúdicas, cooperação e competição — de animais sociáveis complexos como os elefantes, os lobos e as baleias orcas. “Eu queria que as pessoas entendessem que estas criaturas levam vidas valiosas para elas mesmas, vidas intensas, vidas que significam algo para suas famílias, amigos e rivais”, diz.
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Safina, que é professor da disciplina de Natureza e Humanidade da Universidade de Stony Brook, em Nova York, e é autor de livros publicados em diversos países, também discute como nossa recusa em ver os animais como criaturas ricas e complexas produziu um efeito brutal sobre a sociedade humana. O autor também critica algumas pesquisas sobre comportamento animal, afirmando que elas são responsáveis por uma compreensão incorreta do mundo natural. “Eu repudio completamente a ideia de que um animal possa 'ser aprovado' em um teste desenvolvido por seres humanos”, diz Safina. “É completamente irrelevante se o animal corresponde ou não aos nossos conceitos de qualquer coisa”.
O que o levou a escrever este livro?
Carl Safina: O meu primeiro interesse na vida foi sobre o que os animais fazem e quais suas motivações. Embora todo o meu trabalho tenha estado centrado no oceano, meus interesses nunca estiveram confinados a ele. Eu sou um grande amante dos animais, especialmente dos que levam uma vida livre. O outro motivo é o fato de que falamos sobre conservação nos seguintes termos: dizemos que a população foi reduzida em 80%, que perderam 70% de seu habitat, que há apenas 3.000 indivíduos restantes. Estes são apenas números. Os números por si só não dão conta da situação. Eles não são o suficiente. E, como frequentemente dizem os ditadores, é uma sorte muito grande que a morte de uma única pessoa seja uma tragédia enquanto a de milhões apenas um número. As pessoas não se identificam com os números. Eu quis mostrar não apenas o que está em jogo, mas também quem está em jogo. Eu queria que as pessoas entendessem que estas criaturas levam vidas valiosas para elas mesmas, vidas intensas, vidas que significam algo para suas famílias, amigos e rivais, e que eles se empenham muito em permanecer vivos e em manter seus filhotes vivos. Neste sentido, portanto, eu estava contando uma história sobre a conservação de uma maneira bastante diferente, e tentando fazer com que os animais pudessem defender a perspectiva deles.
Falando de indivíduos, você escreveu que um lobo não é “isso” [“it” é o pronome utilizado em inglês para animais e objetos], mas sim “alguém”. Fale um pouco sobre isso.
A distinção que eu tinha em mente entre animais do tipo “isso” e do tipo “alguém” não tem nada a ver com o valor do animal. No caso de alguns animais, as relações sociais os definem. Um mosquito, por exemplo, não é definido por quem ele é em seu grupo social. Mas um lobo, um golfinho, um papagaio ou um corvo são. E alguns destes grupos são permanentes, durando várias décadas, como no caso dos elefantes e das baleias. Alguns grupos duram o tempo do período reprodutivo, como no caso das aves e da relação estabelecida entre elas, seus parceiros reprodutivos e filhos; embora algumas aves tenham uma relação que dura a vida inteira com seus parceiros. Eu seria a primeira pessoa a dizer que a dicotomia entre os animais “isso” e “alguém” é falsa, porque na verdade é um espectro.
Você enfatiza a individualidade de várias espécies, incluindo algumas que surpreenderiam muitas pessoas, como as tartarugas.
Muitos animais são capazes de se relacionar como indivíduos de modos que não tendemos a identificar, como as tartarugas que meu amigo tinha em um museu. Quem imaginaria que as tartarugas têm pequenos chiliques e que gostam da secretária mais do que de seu dono? Quem poderia adivinhar? Imagine o incrível mundo de nuances que muitas destas criaturas experimentam em suas vidas e em seus territórios do qual sequer suspeitamos porque não o conhecemos.
Você escreveu que, por medo de antropomorfizar os animais, alguns estudiosos do comportamento animal acabam produzindo ciência de má qualidade. Como assim?
Eles se recusam categoricamente a fazer a pergunta sobre se os animais são ou não conscientes. A ciência deveria ser uma empreitada movida pela curiosidade. Nossas mentes deveriam estar sempre abertas para tudo o que é possível e deveríamos explorar as possibilidades a fim de checar se há evidências. Você não pode se fechar antes mesmo de fazer a pergunta, ou afastar uma pessoa de sua profissão simplesmente porque ela escreveu um livro sobre a consciência animal, onde há grandes evidências que mostram as diferentes formas por meio das quais os animais têm consciência de si e de seu ambiente. Isto se parece mais com dogma religioso, deveríamos liberar a curiosidade para conferir o que realmente há no mundo. É por isso que isso é ciência de má qualidade. Não é ciência de má qualidade quando começamos por presumir que os animais pensam de uma forma diferente de nós. Mas é má ciência quando insistimos na ideia de que eles não pensam.
David Dennis / flickr CC
Grupo de leões em Serengeti, na Tanzânia; para Safina, “por termos dado um nome ao leão Cecil e sabermos quem ele era em seu grupo social, ele se tornou um 'alguém'”
Parece que a antropomorfização é quase uma ferramenta para você, uma forma de acessar a mente do animal.
A antropomorfização é nosso primeiro bom palpite sobre os motivos que levam um animal a fazer algo. Os animais dão sentido ao seu mundo de maneira semelhante a nós, já que têm imperativos semelhantes.
Quando parecem estar famintos, é porque realmente estão famintos. Quando estão felizes e se divertindo enquanto brincam uns com os outros ou com seus filhotes, é porque estão de fato felizes e se divertindo. Dizer, portanto, que um animal está obviamente com fome, para depois negar a possibilidade de que ele seja capaz de se divertir não é algo muito científico, e não condiz com as evidências. Portanto, este tipo de antropomorfização é a melhor explicação. Mas é preciso depois averiguar se isso faz sentido. Por exemplo, você pode ver dois elefantes acasalando. Sua tendência à antropomorfização pode levá-lo a presumir que os elefantes estão apaixonados. OK, esse é um palpite inicial bom. Mas então você continua observando e percebe que o macho simplesmente vai embora. Eles não têm qualquer vínculo. OK, portanto, não estão apaixonados. Seu palpite estava errado. Você pode deduzir isso observando-os.
Os chimpanzés são uma das espécies que passaram no teste da marca e do espelho, um experimento que visa determinar a autoconsciência do animal. Os pesquisadores fazem uma marca de algum tipo no rosto do animal e observam se ele a toca em seu próprio corpo, enquanto se olha no espelho.
Eu repudio completamente a ideia de que um animal possa “ser aprovado” em um teste desenvolvido por seres humanos. É completamente irrelevante se o animal corresponde ou não aos nossos conceitos de qualquer coisa. Esta é outra forma de ter certeza de que você não sabe o que está acontecendo, porque insiste na ideia de que eles têm de fazer o que você diz que eles têm de fazer, e logo a única coisa que você está buscando é averiguar se o fazem ou não. Você não está observando o que eles de fato fazem.
Que dano advém de interpretações falsas como esta?
O principal dano é que, assim, as pessoas podem continuar dizendo a si mesmas que são as únicas criaturas que têm alguma ideia do que está acontecendo ao redor de si mesmas, ou as únicas que têm vidas intensas ou valores, o que é exatamente a mesma coisa que as pessoas dizem sobre outras pessoas que desejam oprimir. Você vê pessoas dizendo as mesmas coisas sobre os animais, e o dano causado não é apenas que você deixa de conhecer o mundo tal como ele realmente é, o que já é algo terrível, mas também que você propicia o abuso, a miséria e a dor aos que estão ao seu redor.
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Benh Lieu Song / Flickr CC
Família de elefantes no parque nacional Amboseli, no Quênia: alguns grupos sociais formado por animais são permanentes, durando várias décadas, como no caso dos elefantes e das baleias
Você escreveu que, quando olha para os animais, não os vê como alteridade. O que isso diz sobre nós mesmos, como espécie, saber que talvez precisemos ver estas outras criaturas como semelhantes a nós a fim de salvá-las da extinção e não fazer coisas terríveis com elas?
Isto mostra que os seres humanos têm uma mentalidade particularmente estreita, e que amplificam a alteridade em tudo ao seu redor porque têm cérebros tribais que estão sempre alerta à presença de estranhos. Somos muito parecidos com os lobos, neste sentido; quando encontramos membros de outros grupos, os encontros não são amigáveis, diferentemente do que acontece com os bonobos, os chimpanzés ou os elefantes. Existem, portanto, animais que são amigáveis com estranhos e animais violentos com estranhos. Nós somos violentos com os estranhos. Desta forma, amplificamos todas as diferenças e acabamos por ter um problema insuperável no que diz respeito às relações étnico-raciais nos EUA, meu país, e em todo o mundo. Se não odiamos pessoas de outras etnias, odiamos as que são de nossa própria etnia mas têm outra religião. Se a religião for a mesma, nós as odiamos porque pertencem a uma denominação diferente da mesma religião. É inacreditável como a alteridade é totalmente amplificada.
Enquanto pesquisava para escrever este livro, você acompanhou cientistas que estudam elefantes, lobos e baleias orca. Conte-nos sobre alguns momentos que o ajudaram a compreender a vida emocional destes animais.
Estávamos observando alguns elefantes em um olho d'água lamacento e os mais jovens estavam brincando na lama e batendo na água com os pés. Os adultos estavam submergindo e balançando a cabeça. Parecia muito óbvio que eles estavam sentindo um grande prazer em fazer aquilo, e várias perguntas poderiam ser feitas: qual é o valor, para a manutenção da sobrevivência, de se cobrir com lama? Nós não fazemos coisas apenas por seu valor para a sobrevivência. Por exemplo, nós não fazemos sexo para cumprir um cálculo que garantirá a sobrevivência de nossa composição genética, mas sim porque é prazeroso.
Desta forma, começamos a entender o sentido do mundo deles da mesma forma como entendemos o nosso. Você não conclui que animais que estão brincando na lama estão bravos, ou que um animal que se volta em sua direção e faz barulho com a trompa quer se aproximar e lhe dar um beijo. Ele está obviamente dizendo para você se afastar. Você entende isso.
Com os lobos, testemunhei uma coisa muito surpreendente. Eu sabia que os grupos de lobos eram famílias. Eu sabia que cooperam entre si e que são leais uns aos outros. Mas eu não esperava ver toda a política envolvida. Eu vi dois irmãos se unindo para atacar uma irmã que queriam expulsar permanentemente do grupo após a morte de sua mãe e de seu pai, bem como de outro adulto macho, o tio. A irmã precoce foi atacada e forçadamente expulsa do grupo. Ela acabou indo embora definitivamente, deixando Yellowstone e rapidamente sendo morta por caçadores. Foi bastante surpreendente ver isso.
Quanto às baleias orcas, é sempre mais difícil observá-las em detalhes, você quase sempre vê apenas as costas delas. Mas a narrativa que eu obtive falava sobre quem elas são e quanto tempo ficam juntas, bem como sobre o fato bastante surpreendente de que as orcas, tanto os machos quanto as fêmeas, permanecem juntos de suas mães pela vida toda, o que pode durar algumas décadas. Pense nas implicações disto.
[Orcas na baía de Tacoma, no estado de Washington, EUA. Foto: Mike Charest / Flickr CC]
Você está pensando nas implicações que o cativeiro tem para elas?
Há argumentos a favor do cativeiro. Mas eu não acho que podemos fornecer o ambiente correto para elas, para que sejam o que são normalmente em liberdade. Elas são grandes demais para ficarem em cativeiro. As baleias orcas são realmente os únicos animais que nunca deveriam ser mantidos em cativeiro.
Da primeira vez que vi baleias orcas em cativeiro, nunca tinha me passado pela cabeça que as pessoas que cuidariam delas estariam ligadas a circunstâncias que destruiriam de maneira tão violenta suas famílias no oceano. Nunca me ocorreu perguntar como esses animais haviam chegado até o cativeiro. Eu não achava que as pessoas poderiam ser tão cruéis.
Quando há comoção pública em torno de alguma injustiça contra um animal, alguém sempre diz que certas pessoas se preocupam mais com os animais do que com seres humanos. Isso foi dito a respeito de Cecil, o leão morto pelo dentista norte-americano. Qual é a sua opinião sobre isso?
Eu me importo com injustiças perpetradas contra pessoas e animais. Injustiça é injustiça. Algumas vezes a injustiça é horrível, em outros momentos, um pouco menos, e, às vezes, podemos fazer algo a respeito. A ideia de que precisamos fazer algo a respeito de certo tipo de injustiça antes que possamos nos preocupar com injustiças de outro tipo parte sempre de gente que não quer que você se importe com algo com o que você já se importa. Eu acho que isso é totalmente inválido. Eu não preciso consertar as pessoas antes de começar a refletir sobre a crueldade contra animais. Não funciona assim.
A questão sobre o leão Cecil tem muito a ver com o fato de que, por termos dado um nome a ele e sabermos quem ele era em seu grupo social, ele se tornou um “alguém”. É por isso que nos importamos. Ao longo da minha vida, o número de leões na África foi reduzido em 75%. Os leões são mortos o tempo todo. Os leões são expulsos de seu habitat o tempo todo. Estamos levando este animal à extinção. Basicamente, só conhecemos três leões: Elsa, do filme “Uma Leoa Chamada Elsa” (1966), o leão Christian, do YouTube, e, agora, Cecil. Mas cada leão sabe quem é em seu grupo familiar e território. Eles não são nem mais, nem menos especiais do que Cecil, e as injustiças cometidas contra eles são ignoradas.
Tradução: Henrique Mendes
Entrevista original publicada no site Yale Environment 360.