“O crime não se paga, avilta”. Li essa frase em meados dos anos 1980, na casa de meus pais. Eu tinha 12 anos e, na parte superior do closet do quarto de meu irmão, havia um depósito oculto de objetos proibidos: revistas pornográficas que meu pai havia trazido da Europa, vários exemplares da Penthouse e da Playboy. Mas o maior prêmio era uma cópia de capa dura de “Juliette, ou as Prosperidades do Vício”, do Marquês de Sade. Nem todas as curvas das playmates alcançavam o nível de surpresa que a leitura de Sade me causava. Aquele era um livro clandestino: eu não sabia se pertencia a meu pai ou ao meu irmão, sete anos mais velho que eu, mas evidentemente ninguém esperava que eu tivesse acesso a ele. Hoje mantenho na memória apenas fragmentos das descrições sexuais, mas a frase inicial (ou final?, não me lembro bem) me causou uma profunda impressão.
UM ANO DO DESAPARECIMENTO DOS ESTUDANTES DE AYOTZINAPA
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“O crime não se paga, avilta”. Eu me lembro de ter buscado em um dicionário o significado de “aviltar”, mas, ainda assim, a frase não me pareceu totalmente clara. O que me impressionou foi a primeira parte da frase. “O crime não se paga”. Que contradição. Digo isso pois, na época, minhas leituras de ficção científica eram intercaladas pelo heroísmo infantil de Indiana Jones e Star Wars, ou pelas histórias em quadrinhos da Marvel. Como é essa história de que não se paga pelo crime? Kraven, o caçador, sempre pagava por seus crimes. O Doutor Octopus sempre pagava. Os nazistas, no final de “Caçadores da Arca Perdida”, acabaram por pagar. De qualquer modo, Sade me havia incutido a dúvida. E se o crime, de fato, nunca se pagasse?
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Em 1987, uma revelação. Adquiri o novo disco do Sting, shakesperianamente intitulado “… Nothing Like the Sun”. Entre vários sucessos, havia uma canção melancólica e lenta chamada “They Dance Alone” (Elas Dançam Sozinhas). A voz de Sting e um parágrafo recitado por Rubén Blades me informaram da existência de um sujeito chamado Augusto Pinochet e das atrocidades da ditadura chilena. “Elas dançam com os desaparecidos/Dançam com os mortos/Dançam com amores invisíveis”. Diferentemente dos vilões da Marvel, Pinochet não parecia estar próximo de pagar por seus crimes. A ditadura tinha 14 anos no Chile, minha idade, durava tanto tempo quanto minha vida até então. De repente, eu tive a impressão de entender a que se referia Sade com aquela frase em seu livro. Por mais que se queira, o crime não necessariamente se paga, mas se torna mais duro, curtido. Nick Fury, de S.H.I.E.L.D. não virá fazer com que os vilões tenham o que merecem.
Outro disco incrível de 1987, “The Joshua Tree”, do U2, terminava com uma faixa pouco festiva, intitulada “Mothers of the Disappeared” (Mães dos Desaparecidos), uma referência poética de Bono às desaparições de civis por parte dos governos da Argentina, do Chile, de El Salvador e da Nicarágua. O que eu poderia dizer, o que poderia fazer um adolescente mexicano de classe média, tão afastado dessas realidades latino-americanas? Ao redor de mim, na Naucalpan suburbana em que cresci, ninguém parecia dar a mínima. Quando a única coisa que interessa é “a quanto amanheceu o dólar”, as mães dos desaparecidos no Chile se tornam personagens de ficção.
Às vezes acho que a América Latina, para os mexicanos, parece uma invenção que ocorre ao sul de Chiapas. Os crimes de Estado eram coisas que aconteciam apenas no Chile e na Argentina. A guerra contra o narcotráfico, coisa de colombianos.
Hoje, com pouco mais de 164 mil mortes de civis entre 2007 e 2014 – o dobro do que foi registrado no mesmo período em países como Iraque e Afeganistão, que oficialmente estão em guerra – o México é a síntese da realidade latino-americana. Pinochet, esse principiante, fez desaparecer “apenas” três mil de seus compatriotas. Em nosso país, a cada ano, pelo menos 20 mil civis morrem ou desaparecem em meio a uma aura de mistério, sem explicações, sem que as autoridades digam ou façam qualquer coisa. A dimensão destes dados estatísticos é apavorante, no entanto, nada parece acontecer.
Sapdiel Gómez Gutiérrez
Manifestação realizada na Cidade do México para pedir que os jovens sejam encontrados (setembro de 2014)
É preciso viver, dizem os pragmáticos, para que estes problemas não nos sepultem, é preciso sair e trabalhar. Estou parcialmente de acordo: não digno que não seja o caso de seguirmos vivendo, o que me surpreende é a sutileza com a qual o fazemos. A Colômbia talvez tenha inventado o realismo mágico, mas no México nós o aperfeiçoamos até o ponto em que podemos “viver” entre atrocidades como o desaparecimento forçado dos 43 normalistas de Ayotzinapa, fingir demência e, claro, ficarmos incomodados porque o dólar já passou dos 17 pesos. Nunca subestimem a capacidade de um mexicano de escapar da realidade. Esta é a magia do nosso realismo mágico. Somos os reis da apatia, do cinismo, do virar-se para o outro lado, da memória seletiva.
Vinte anos depois de ler Sade, um ano depois de Ayotzinapa, confronto meu pessimismo com amargura e confirmo que, sim, o crime não se paga: avilta. A única coisa que podemos fazer é não permitir que as atrocidades de nossos governantes sejam esquecidas. Valorizar a memória dos desaparecidos. Talvez as próximas gerações encontrem a forma de fazer com que paguem, e comprovem que Marques de Sade nunca teve razão.
*Texto publicado originalmente no suplemento especial da revista Emeequis
**Tradução: Henrique Mendes