Em três décadas e meia, a demografia das religiões no mundo vai mudar consideravelmente, com consequências significativas para o mundo — políticas, sociais e econômicas. A proporção de várias religiões na população mundial vai permanecer de modo geral a mesma ou diminuir, com exceção do islamismo. No Sul da Ásia, especialmente na Índia, onde as tensões entre a maioria hindu e a minoria muçulmana estão em ascensão, tal mudança demográfica traz o risco de provocar revoltas.
As constatações foram tomadas com base no estudo The Future of World Religions: Population Growth Projections, 2010-2050 (O Futuro das Religiões no Mundo: Projeções do Crescimento da População, 2010-2050, em tradução livre).
No mundo inteiro os muçulmanos têm a mais alta taxa de fertilidade e a mais baixa idade média, e a projeção é que seu número passe de 1,6 bilhão em 2010 para 2,76 bilhões em 2050. Pela primeira vez na história, a população muçulmana vai igualar a de cristãos, até agora o maior grupo religioso do planeta. O número de cristãos nos Estados Unidos, Europa e Austrália vai decair significativamente em razão do grande aumento do grupo dos que se identificam como “sem filiação”, talvez uma indicação de agnosticismo ou ateísmo.
Essas mudanças também terão repercussões nos relacionamentos entre muçulmanos e não muçulmanos globalmente, especialmente no Sul da Ásia – exacerbando tensões existentes ou dando margem a novos desafios para a promoção de relações harmoniosas entre os grupos religiosos.
A população muçulmana de todos os países do Sul da Ásia vai registrar variados graus de mudança. No Nepal e Afeganistão vai mais do que dobrar. Bangladesh terá o menor acréscimo, de cerca de 36%. O número de muçulmanos na República Islâmica do Paquistão e no Sri Lanka vai aumentar em 63% e 48%, respectivamente. No entanto, a maior mudança, e de maior consequência, será na Índia, prestes a se tornar a nação de maior população muçulmana. Sua população hindu vai crescer 35%, passando de 1,03 bilhão em 2010 para 1,38 bilhão em 2050, mas o número de muçulmanos indianos vai aumentar 76%, passando de 176 milhões para 310 milhões no mesmo período. Isso significa que a maior expansão na população muçulmana no Sul da Ásia se dará na Índia.
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Jama Masjid, a maior mesquita da Índia, localizada em Nova Déli
A Índia vai adquirir um novo status em termos de composição religiosa de sua população. Com um total de 310 milhões de muçulmanos, a Índia se tornará o maior “país” muçulmano do mundo. Embora a previsão seja que os hindus continuem a ser a maioria da população, com 77% do total, a proporção de muçulmanos vai crescer de 14% em 2011 para 18% em 2050. O aumento populacional representará um desafio adicional e mais complexo para o sistema político democrático da nação, baseado em uma Constituição secular que prevê justiça, liberdade, igualdade e fraternidade para todos os cidadãos indianos – mas é cada vez mais contestada.
Embora haja melhoria geral nas condições de vida no país, esses benefícios não foram distribuídos de modo equitativo. Os muçulmanos indianos não foram igualmente beneficiados pelo crescimento econômico da nação. Seu status não é muito diferente do ocupado pelo grupo dos dalits, ou intocáveis, em meados do século 20, que levou a uma ação afirmativa compulsória determinada pela Constituição. Tomando 1947 como ponto de referência, os muçulmanos tiveram sua mobilidade social reduzida.
Foi essa constatação que levou a Índia a estabelecer em 2004 um Comitê de Alto Nível do Primeiro Ministro, popularmente conhecido como Comitê Sachar, para investigar se os muçulmanos indianos enfrentavam um grande nível de privação relativa em diferentes esferas e que medidas corretivas poderiam ser adotadas para reduzir injustiças.
[Quadro de 1852 retrata muçulmanos indianos, com a mesquita Jama Masjid ao fundo| Imagem: Wikicommons]
O Relatório Sachar, divulgado em 2006, marcou uma decisiva mudança das políticas de identidade para políticas de desenvolvimento porque demonstrou que a abordagem dos problemas dos muçulmanos precisava ir além das políticas de identidade e do costumeiro compromisso com o secularismo e pluralismo. Mostrou que as condições dos muçulmanos são apenas levemente melhores do que as das chamadas castas hindus marcadas e tribos marcadas – grupos em desvantagem social que são protegidos– e piores do que a categoria de hindus designada como “outras castas atrasadas”
O Comitê Sachar realizou extensivas consultas por todo o país para documentar as percepções dos muçulmanos sobre o problema que enfrentavam, com foco em identidade, segurança e justiça. A investigação verificou que, ao contrário de outras minorias religiosas, os muçulmanos indianos carregavam o peso extra de serem rotulados como “antinacionalistas” e serem ao mesmo tempo “apaziguados”. Suas más condições econômicas e educacionais significam que o chamado “apaziguamento” não funcionou, e tais marcas de identidade conduzem com frequência à suspeita e à discriminação por pessoas e instituições. A discriminação é disseminada em emprego, habitação e educação. As mulheres muçulmanas enfrentam contínua discriminação por causa de seus símbolos de identidade. Ao mesmo tempo uma maioria de seus compatriotas não muçulmanos considera as características socioculturais da comunidade muçulmana como a causa de seu atraso.
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Em agosto, o governo indiano divulgou dados do Censo de 2011 sobre comunidades religiosas. Uma parte da mídia aproveitou a oportunidade para fazer sensacionalismo com o relatório, buscando apontar que a população hindu na Índia está em declínio enquanto a população muçulmana tem aumentado. Um olhar mais apurado sobre os dados revela que tanto a população hindu como a muçulmana cresceu.
Flickr/CC/Nagarjun Kandukuru
Muçulmanos, cristão e hindus em pintura sacra na cidade de Goa, no interior da Índia
O governo indiano retardou por quatro anos a divulgação dos dados do Censo de 2011 sobre a composição religiosa. Um motivo plausível é que o governo anterior, da Aliança Progressiva Unida, liderada pelo Partido do Congresso, era visto como “pró-minorias/muçulmanos” e não queria que o Partido Bharatiya Janat (BJP, na sigla original), atualmente no poder, explorasse os dados da composição religiosa que mostram um decréscimo na proporção de hindus e um aumento na de muçulmanos na população. A divulgação dos dados da composição religiosa do Censo de 2011 pelo governo liderado pelo BPJ parece ser conveniente do ponto de vista político para consolidar apoio entre o núcleo de seu eleitorado.
Também alimenta movimentos como o Ghar Wapsi, encabelado por grupos afiliados ao BJP, tais como o Vishva Hindu Parishad e o Rashtriya Swayamsevak Sangh e suas ramificações. O movimento Ghar Wapsi se posiciona não como um programa de conversão, mas como uma cerimônia de “purificação” para acolher na nação as minorias cristãs e muçulmanas, vistas como poluidoras da população majoritariamente hindu. É também uma estratégia explícita de polarização da comunidade usando a religião como ferramenta para impulsionar o majoritarianismo, uma filosofia política que sugere que um grupo majoritário tem que deter o papel primordial nas decisões da sociedade.
Movimentos como o Ghar Wapsi são estratégias degradantes e humilhantes que buscam desvalorizar os muçulmanos e os cristãos e lhes negar a autenticidade de sua identidade religiosa. Ações degradantes cotidianas, a experiência de discriminação e repressão, a noção de queixas coletivas, a violação de códigos de identidade culturalmente estabelecidos, deslocamentos econômicos e sociais, guetização, ansiedade e desamparo são poderosos meios de infligir humilhação. Isso leva ao sentimento de baixa autoestima, que por sua vez induz à disposição de desobedecer à autoridade que humilha ou então a se engajar em ostensiva rebelião e a cultivar o ressentimento.
Esse é o desafio do Estado indiano para os próximos anos.
Documentário da TV Al-Jazeera mostra como dalits hindus estão se convertendo ao islamismo para escapar da pobreza (em inglês):
Texto publicado orginalmente pelo site Yale Global Online Magazine
Tradução: Maria Teresa de Souza