“… Em 1985 um homem exigiu um cessar-fogo. O chamado não foi escutado. Essa vida foi calada em meio a uma fogueira fatal diante de todos os colombianos, atônitos e silenciosos”. Assim começa o informe final da Comissão da Verdade sobre a retomada do Palácio da Justiça colombiano, que resultou na morte de 96 pessoas, incluindo todos os juízes da Suprema Corte.
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Reprodução/Facebook Xinhua/Mauricio Alvarado
Foto sobrepõe imagens históricas a cenário atual dos acontecimentos
Em 6 de novembro de 1985 um grupo de guerrilheiros do M-19 invadiu o prédio onde funcionava a máxima instituição de Justiça do país. Em 7 de novembro de 1985, “um tanque disparando contra os reféns que haviam passado a noite ali é a prova adicional da crueldade excessiva e a covardia contra a Suprema Corte de Justiça”, como define Carlos Medellín Becerra, filho do juiz da Suprema Corte Carlos Medellín Forero, morto no chamado holocausto do Palácio.
As marcas do episódio permanecem na sociedade colombiana. A revista colombiana Semana afirmou que a tomada do Palácio é para a Colômbia, o que o atentado terrorista contra as Torres Gêmeas é para os norte-americanos: “um fato que mudou a história do país para sempre”.
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Processo de reconstrução do Palácio durou 14 anos e custou o equivalente (em valores atualizados) a R$ 650 milhões
Passados 30 anos, “o desprezo pela vida e pelos direitos humanos foi e tem sido a constante” na Colômbia, diz Becerra. Em artigo publicado pelo jornal El Espectador, e que a Revista Samuel traduz na íntegra, o advogado e diplomata relembra como foram as horas antes e depois do massacre: “diante do massacre mais espantoso contra a justiça, apenas silêncio. (…) Sim, os assassinaram. A todos. O país o viu. Todos o vimos”.
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A memória e a verdade do Palácio de Justiça
A Corte Suprema de Justiça se encontrava sozinha em meio a uma violência que havia sido desatada pelo narcotráfico e um desastroso processo de paz
Já são 30 anos. Nisso, como em quase todas as coisas da vida, o tempo é circular e relativo. Digo isso porque são muitos anos de história, mas apenas alguns segundos diante da tristeza e da morte. As lágrimas não passam com o tempo. Depois de todos esses anos, são muitas as reflexões em torno da tomada do Palácio de Justiça em 6 de novembro de 1985. Mas, a que mais permanece é a solidão. Não me refiro à solidão das famílias, mas à solidão da Justiça na Colômbia. Para as novas gerações, é importante lembrar o ambiente histórico que se vivia naquele momento.
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Incidente foi transmitido pelos meios de comunicação do país, mas poucos jornalistas colombianos investigaram o ocorrido
A Suprema Corte de Justiça estava sozinha em meio à violência generalizada que havia sido desencadeada por cartéis de drogas e um desastroso processo de paz com os guerrilheiros. Diante do primeiro, a Corte havia recebido sérias ameaças do cartel de Medellín pelo processo contra a extradição de narcotraficantes. Nesse momento, a Corte examinava a constitucionalidade do tratado de extradição com os EUA.
Quanto ao processo de paz, a Corte havia se pronunciado a favor da lei de anistia para membros dos grupos guerrilheiros, havia estabelecido posição contra o julgamento de civis por parte dos juízes militares e investigava as denúncias de torturas e desaparecimentos forçados de pessoas, cuja responsabilidade recaía sobre a Força Pública.
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Movimentos de direitos humanos da Colômbia pedem que Betancur seja responsabilizado pelos fatos
A Corte era, sem dúvida, a guardiã da civilidade, da legalidade e da democracia. Por isso estava tão sozinha. O país, estava dividido nesse momento como está agora. Se debatia em posições muito mais radicais sobre a paz e a análise racional e jurídica sobre o problema da ordem pública não oferecia grande respaldo. A Corte era, sem dúvidas, um desconforto diante dos setores mais radicais da direita e da esquerda. Em meio a esse ambiente, a solidão era evidente.
Tão isolado estava o Poder Judiciário que no dia do criminoso e covarde assalto guerrilheiro, a vigilância policial havia sido removida do Palácio de Justiça e apenas dois guardas particulares faziam a segurança do edifício. Essas pessoas foram as primeiras a morrer quando o M-19 chegou. Em seguida, tomar os juízes como reféns era simples. Eles estavam sozinhos, porém, como se demonstrou no processo do Conselho de Estado, no dia 18 de outubro de 1985 os meios de comunicação divulgaram a seguinte notícia: “encontrado plano do M-19 para tomar a Corte Suprema de Justiça”.
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Desde o momento da tomada até seu trágico fim, não cessaram os disparos, as bombas, os 24 tanques, o fogo. Por isso, o presidente da Corte, Alfonso Reyes, exigiu o cessar-fogo imediato, diante do que pressagiava tornar-se um holocausto. O presidente Belisario Betancur, que não quis atender a ligação de Reyes, omitiu seus deveres constitucionais e deixou a barbárie e a morte se instalarem ao longo do Palácio de Justiça. Desde então, temos denunciado o que aconteceu, não porque o imaginamos, mas porque o vimos.
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Cinco anos depois, M-19 se converteu em partido político; o ex-prefeito de Bogotá Gustavo Petro era integrante do grupo guerrilheiro
Os juízes e demais civis foram assassinados. Caíram no fogo cruzado entre a Força Pública e a guerrilha. Os guerrilheiros também morreram. E aqueles que saíram com vida, como é o caso da guerrilheira Irma Franco, desapareceram forçadamente. Assim como todos os capturados ou resgatados suspeitos de ser membros do M-19. No fim da tarde de 6 de novembro, o cenário não poderia ser mais dantesco: juízes, assistentes, motoristas, visitantes e guerrilheiros jaziam sem vida no que, se tivesse sido de conhecimento mundial, sem dúvida seria uma situação devastadora para a estabilidade do governo.
Eis então que eles decidem queimar o Palácio e apagar as provas. A ação primeiro do fogo e depois dos jatos de água dos bombeiros teve seu papel para a vergonha da Justiça e do direito. O ocorrido no dia seguinte, 7 de novembro, foi o epílogo da tragédia: um tanque atirando contra os reféns que haviam passado a noite ali é uma prova adicional da crueldade excessiva e da covardia contra a Suprema Corte de Justiça e Conselho de Estado.
Os meios de comunicação que tentaram denunciar o que estava acontecendo foram censurados pelo governo. O desprezo pela vida e pelos direitos humanos foi, e tem sido, a constante durante o 6 e 7 de novembro de 1985 e os seguintes 30 anos de solidão e esquecimento.
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Todos os desaparecidos trabalhavam na cafeteria do Palácio
Tudo isso nós vimos e denunciamos. Ninguém escutou, nem queria escutar. Nós pedimos uma investigação judicial, à qual o governo respondeu com a criação de um tribunal ad hoc que não concluiu nada. A Comissão de Acusações da Câmara arquivou nossa denúncia com o argumento de que o direito internacional humanitário não estava em vigor. A justiça penal militar fez o mesmo absolvendo os membros das Força Pública e os líderes do M-19 foram anistiados e perdoados sem que houvesse indício de verdade, justiça ou reparação.
Os parentes dos desaparecidos começaram um percurso doloroso de três décadas exigindo justiça e as indemnizações ordenadas pela Justiça foram assumidos por todos os colombianos sem que as ações de não repetição contra os funcionários do Estado responsáveis pelo massacre tivessem avançado. Os juízes, todos eles professores e mártires da justiça, foram esquecidos, e sua solidão persiste nas salas de aula das universidades onde lecionavam, como ocorre na Universidade Externado da Colômbia, onde não há nada que lembre deles. O Externado nunca exigiu investigações, nem se lembrou do ocorrido. Lhe incomodou a memória dos mártires. Diante do massacre mais terrível contra a Justiça, apenas silêncio. Silêncio cúmplice da “Casa de Estudos” com os bárbaros. Sim, eles foram assassinados. Todos. O país viu. Todos nós vimos.
Trinta anos depois começamos a saber de coisas que sempre soubemos. A Comissão da Verdade, a Procuradoria e os juízes apresentaram, com 20 anos de atraso, uma investigação que a Colômbia e o mundo estavam exigindo. Seus resultados, felizmente para a Justiça e o direito, estão tornando-se conhecidos ao lado das decisões da Justiça internacional. A verdade será conhecida. Estou certo. Agora, diante da declaração de que o que ocorreu foi um crime de lesa humanidade, nós esperamos as investigações sobre o assassinato dos juízes, assistentes, secretárias, motoristas e visitantes massacrados no Palácio da “Justiça”. Nada impede isso. A Colômbia e a memória histórica exigem que isso seja feito.
Assista ao documentário da History Chanel sobre o episódio (em espanhol):
* Filho de Carlos Medellin Forero, juiz da Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça, morto no holocausto do Palácio da Justiça. Texto publicado originalmente no site El Espectador
** Tradução: Vanessa Martina Silva