“Quando me perguntam: Francisco é tradicional ou progressista? respondo: ele é católico. Ao mesmo tempo em que é um crítico furioso da globalização excludente, do capitalismo, dos empresários, continua pregando o catecismo, a doutrina, o discurso mais tradicional da Igreja Católica”. É o que afirma o autor do livro “El mito de la Argentina laica” (“O mito da Argentina laica”, sem edição no Brasil), o sociólogo argentino Fortunato Mallimaci.
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Francisco recebeu, em 2013, Macri no Vaticano, quando este ainda era chefe de governo da cidade de Buenos Aires
Em entrevista concedida ao jornal Pagina/12, Mallimaci analisa as relações entre política e religião na Argentina e, particularmente, a tensão entre o papa e o presidente do país, Mauricio Macri. Em sua opinião, o papa identifica no atual governo as políticas neoliberais que rejeita, daí o sinal de desconforto emitido durante a mais recente visita de Macri ao Vaticano, em fevereiro. “Francisco rejeita a exploração capitalista e o neoliberalismo, e identifica que tudo isso caracteriza o governo do presidente Maurício Macri, com sua cultura mercado friendly e seus funcionários que foram CEO de multinacionais”, observa.
Mas sua mensagem, assim como a de Bento XVI ou de João Paulo II, é de um catolicismo que se quer apresentar como “integral”: seu raciocínio é de que não existe solução para os problemas da humanidade se a Igreja Católica como tal não estiver presente nessa solução.
Confira os principais trechos da entrevista:
Como você analisa a figura de Francisco?
Quando me perguntam: Francisco é tradicional ou progressista? respondo: ele é católico. Ao mesmo tempo em que é, atualmente, um crítico furioso da globalização excludente, do capitalismo, dos empresários, de problemas como o narcotráfico ou o tráfico de pessoas — porque ele é mais dos movimentos sociais do que do movimento operário organizado —, ao mesmo tempo em que critica tudo isso, continua pregando o catecismo, a doutrina, o discurso mais tradicional da Igreja Católica.
Ao falar aos párocos diz: “seja um bom pároco”, “não tenham ideologias”, “sejam sacerdotes em tempo integral, não se deixem levar pela política”. Diz: “estejam próximos das pessoas”, mas se você for ateu, lésbica, homossexual, ideólogo, não haverá um lugar para você. Não há outra coisa no seu horizonte de sentido. Por outro lado, sua história é uma história ambígua, como a da maioria dos bispos argentinos, uma história que inclui cumplicidades com a ditadura.
Presidencia de la República Mexicana
Desde que assumiu o pontificado, Francisco tem visitado diversos países da América Latina; em fevereiro, este no México
Conheci vários de seus sacerdotes que, se não aceitassem sua autoridade, ou se ele acreditasse que estavam fazendo ideologia ou atuando em comunidades de base, não hesitava em dizer-lhes “vão embora, não quero saber de nada com vocês”. Como cardeal, sua condução foi forte, com poucas discussões, nem suspeitava de que essa condução poderia ser democrática. Nesse sentido, há uma enorme continuidade com a história da Igreja. Francisco continua acreditando numa instituição piramidal, carismática, de reprodução do poder. Sua mensagem, assim como a de Bento XVI ou de João Paulo II, é de um catolicismo que se quer apresentar como “integral”: seu raciocínio é de que não existe solução para os problemas da humanidade se a Igreja católica como tal não estiver presente nessa solução.
Mas no nível global ele aparece com outra imagem.
Grande parte da popularidade de Francisco deve-se às grandes empresas de mídia, que encontraram nele uma pessoa extraordinária, que comove, que pode se apresentar nesta globalização excludente como alguém que fala a partir da periferia. E, no nível geopolítico, o papa buscar ocupar uma liderança no ético-político, apresenta-se como uma garantia de paz e de encontro. Não se soma à guerra de civilizações, a essa ideia de que no islã todos são terroristas. Numa Europa em que os governos vão para a direita, Francisco diz “um imigrante é uma pessoa e temos que estar com ele”, e isto, incrivelmente para o século 21, aparece como de esquerda, subversivo. Nisso, sim, esse Vaticano tem uma mensagem a favor das vítimas.
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Mas, isso não necessariamente é transferido para as igrejas locais. De outro ponto de vista, também é verdade que ele chegou no Vaticano com uma exigência muito forte de colocar ordem. É preciso lembrar que Francisco pôde ser nomeado porque, pela primeira vez na história da Igreja, um papa decidiu renunciar ao cargo dizendo que estava cercado de escândalos! Se alguém dessacralizou esse lugar de Papa, foi Ratzinger com sua decisão de sair. É nesse marco que Francisco tenta realizar algumas mudanças no Vaticano.
Como são inseridos, nesse contexto, as disputas políticas locais em torno da figura do papa?
É interessante ver como o vínculo entre o político e o religioso que analisamos na Argentina aparece neste caso em torno de Bergoglio. Aqueles que acreditaram que o novo papa seria funcional para a oposição no confronto com o kirchnerismo, que ajudaria a antecipar a saída [da ex-presidente] Cristina [Kirchner], e pela janela, acabaram vendo que havia empatia entre os dois — porque para que exista um Francisco que recebe Cristina tem que existir uma Cristina que quer encontrar Francisco. E os mesmos dirigentes políticos que, quando ele era cardeal, iam todos os dias a sua casa pedir ajuda, passaram a questionar o papa, a pergunta “por que está se metendo em política?”, hoje dizem que não irão mais a Roma… Depois, diante das eleições do ano passado, começaram a perceber que o papa não apenas apoiava Cristina, mas também via com bons olhos certa continuidade do peronismo.
Macri foi eleito e para sua posse não veio ninguém de primeira ordem do Vaticano, vem o núncio do Paraguai. Vieram à tona alguns desgostos do papa com Macri: uma ocasião em que o convidou, quando prefeito, e ele não foi, a rejeição ao candidato para a Suprema Corte que contava com certo apoio do papa (Roberto Carlés), as denúncias de oficinas clandestinas sobre as quais o governo da cidade fez quase nada, o desprezo pelas tentativas de autoridades eclesiásticas para negociar uma transição organizada no governo nacional, toda uma série de questões que foram acentuando as diferenças.
Casa Rosada
Tom carrancudo de Francisco nas imagens ao lado de Macri durante visita em fevereiro deste ano demonstrou falta de entrosamento entre os líderes
Somando-se a isso o fato de o grande publicitário do macrismo perguntar-se quem é o papa, para que serve, bem… A partir do envio pelo papa do rosário para [a ativista mapuche] Milagro Sala, os atores políticos e midiáticos hegemônicos deixam de lado todos os seus filtros: o papa argentino, que seria um líder global, que transformaria o mundo e o catolicismo, passou a ser um papa peronista, “pragmático”, um papa incapaz de sair de sua cegueira argentina.
Qual a sua interpretação do encontro entre o papa e Macri no Vaticano em fevereiro?
Os gestos, o rosto do papa, foram os de alguém que recebe uma pessoa que está nas suas antípodas. Francisco rejeita a exploração capitalista e o neoliberalismo, e identifica que tudo isso caracteriza este governo da Argentina, com sua cultura “mercado friendly”, seu marketing e seus funcionários que foram CEO de multinacionais. Enquanto o papa apresenta uma memória de longo prazo, que revela o impacto social que tiveram no passado as políticas econômicas que agora estão sendo aplicadas novamente, Macri apresenta uma memória de curto prazo, pretende mostrar-se como alguém novo na política quando, na realidade, mais do que inovar, reproduz o que já foi feito.
O papa foi o primeiro em colocar Macri diante dessa memória de longo prazo. Por outro lado, a chanceler disse que o governo quer ter uma relação formal e protocolar com o Vaticano, mas não é isso que Macri parece desejar. O presidente viajou para a audiência porque deseja legitimar-se na Argentina através desse vínculo com o papa. De alguma maneira, na reunião entre Macri e Francisco houve um encontro de dois modelos de catolicismo. Porque há muitos setores católicos que apoiam o macrismo, principalmente ONGs e grupos burgueses, e também há uma maioria silenciosa de bispos argentinos apoiando o macrismo. Isto permite também ver os limites dos poderes no interior da Igreja; se alguém acredita que é uma cadeia de comandos, não entende nada.
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Entrevista publicada originalmente em espanhol pelo site Pagina/12
Tradução de Beatriz Affonso Neves para o Instituto Humanitas Unisinos