Nesta semana aconteceu em frente à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo um ato de juristas pelo impeachment. Apesar da presença de diversos advogados de algum renome e importância que já vêm há tempos se manifestando pelo impeachment da presidenta Dilma, e sobre os quais já escrevi em outra oportunidade, as figuras centrais do ato eram Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal, os três juristas que assinaram o pedido de impeachment atualmente em curso no Congresso Nacional.
O destaque, porém, ficou por conta quase que exclusivamente de Janaina Paschoal, professora da Faculdade de Direito da USP. Embora não tenha sido sequer de relance mostrado no Jornal Nacional na edição da noite seguinte, seu discurso intenso e performático viralizou pela internet, gerando piadas, memes, paródias musiciais, críticas das mais às menos consistentes, e comentários que beiram o preconceito religioso e o machismo.
Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr, coautores do pedido de impeachment, depuseram na comissão especial que analisa o processo no dia 30 de março
Não se pode ignorar a força da forma da performance de Janaina, especialmente pela corporalidade que muitos associaram à de pregadores religiosos, embalando um discurso agressivo, messiânico e rico em imagens maniqueístas e belicosas sobre a atual conjuntura política. Em tempos de acirramento dos ânimos políticos e de profusão de discursos de ódio, não se pode mesmo ignorar o impacto de um discurso como o de ontem na crise atual.
Gostaria, porém, de chamar a atenção para outro aspecto que corre o risco de passar despercebido em meio a tanta teatralidade e ao deboche que se seguiu nas redes sociais. O que há de mais significativo no discurso de Janaina Paschoal no ato de ontem dos juristas pelo impeachment é que a sua performance e seu conteúdo contrariam frontalmente o argumento (de autoridade) de que o impeachment é legítimo e fundamentado porque apresentado por “respeitáveis juristas”, dentre os quais se inclui Janaina. A professora não fez questão de esconder sua motivação política, que extrapola os frágeis argumentos especificamente jurídicos do pedido de impeachment. Isso já estava claro em outras aparições públicas de Janaina sobre o tema, incluindo a que fez esta semana na comissão do impeachment na Câmara dos Deputados e na entrevista que deu ao Roda Viva no ano passado.
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A diferença de vezes anteriores, contudo, é que ontem isso ficou escancarado, sem maiores pudores ou disfarces, inclusive pela performance da professora, que em nada corresponde aos padrões corporais e discursivos da academia e do direito. O lado bom desse escancaramento é que sabemos agora que se trata de uma batalha política, e que assim vai ser jogada, sem a hipocrisia dos juízos pretensiosamente técnicos e neutros. O lado caricato, quase cômico, fica por conta justamente de uma jurista se colocando na posição de líder demagógica, para a qual não foi treinada e na qual soa e aparenta claramente estranha, deslocada; e esse estranhamento vem justamente da fratura que a performance de Janaina evidencia nas frágeis fronteiras socialmente construídas entre direito e política, desenhadas sobre uma teia de relações muito mais complexas do que a ideologia da neutralidade jurídica faz crer, e por meio das quais os juristas se alimentam da sua proximidade com o poder.
A fala de Janaina mostra, em suma, que a batalha pelo impeachment é pura política feita por meios jurídicos, aparentemente neutros e técnicos. A explicitação dessa característica central da crise política atual, na qual o direito e as instituições judiciais são instrumentalizados bruscamente pelos interesses políticos em jogo, pode inclusive tornar secundário o debate bem intencionado e necessário sobre os aspectos propriamente jurídicos do impeachment: a caracterização do crime de responsabilidade, os aspectos legais da prática fiscal e orçamentária e o próprio rito do impeachment. Acredito que no futuro ainda próximo essa relação entre direito e política será a maior questão sobre a qual deveremos nos debruçar, com algum distanciamento do calor da hora, para entender a instabilidade atual da democracia brasileira e pensar em seu aperfeiçoamento ou reconstrução. A performance de Janaina Paschoal, se não for definitivamente relegada à insignificância histórica que merece, será apenas uma caricatura grosseira da crise.
Frederico de Almeida é Bacharel em Direito, mestre e doutor em Ciência Política pela USP, é professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
Publicado originalmente no site Justificando.