As mulheres constituem quase metade dos 1,2 bilhão de habitantes da Índia, mas, em pleno século 21, a desigualdade de gênero e a mentalidade patriarcal que perduram conspiram para excluí-las de alguns locais sagrados. Este país foi sacudido por uma onda de furor porque templos populares proibiram a entrada de mulheres com argumentos tão duvidosos quanto retrógrados: a menstruação as torna “impuras” e não aptas para os lugares de culto.
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Templo em Sabarimala, onde mulheres em idade fértil (geralmente entre 12 e 50 anos) são proibidas de entrar
Agora, ao contrário de anos atrás, as mulheres questionam as normas arcaicas e enfrentam seus verdugos. Declarações sem precedentes como “a menstruação não é nem suja, nem vergonhosa, mas um simples fato biológico” encontram um lugar no glossário popular e ressoam em milhões de pessoas. A declaração de um sacerdote do templo de Sabarimala, no Estado de Kerala, de que as mulheres não poderiam entrar enquanto não fosse inventada uma máquina capaz de detectar se são “puras” ou se estão menstruando, gerou um mal-estar generalizado em novembro do ano passado.
Cerca de um milhão de peregrinos hindus se reúnem todos os anos em Sabarimala, nas montanhas Ghats ocidentais, em homenagem à deidade Ayyappa, que meditava nesse lugar, segundo a mitologia hindu. Episódios como esse serviram de inspiração para a campanha “feliz por sangrar” (happy to bleed), que rapidamente se espalhou e se tornou viral no Facebook. A iniciativa convocava as mulheres a tirarem uma foto segurando um cartaz com essa frase escrita e colocá-la como imagem de perfil.
Logo a rede social se viu inundada por mulheres segurando o cartaz, alguns deles feitos de toalhas sanitárias e absorventes. A campanha conseguiu que a proibição de Sabarimala passasse à Justiça, pois a Associação de Jovens Advogados apresentou um recurso junto à Suprema Corte, pedindo que fosse solicitada uma explicação às autoridades religiosas a respeito da proibição.
Reprodução/Facebook
Campanha também chegou a outros países, como a Espanha
Outro exemplo ocorreu em janeiro deste ano, quando 500 mulheres furiosas marcharam da cidade de Pune até o templo Shani Shingnapur, em Maharashtra, onde os sacerdotes excluíram as mulheres dos lugares de culto. A organização Brigada Ranragini Bhumata (Guerreiras da Mãe Terra) irrompeu no templo em um ato de rebeldia contra uma tradição de 400 anos. O grupo se chocou com uma grande barreira de segurança fora do povoado e no templo, composta por uma barricada e agentes armados. Mas não desanimaram.
Segundo Trupti Desai, a líder da brigada, trata-se de “tradições criadas por homens. Deus não discrimina entre homens e mulheres. Se elas querem entrar no templo, como vão detê-las? Por acaso o templo é administrado pelo Talibã? Não precisamos de autorização para visitar Deus”, afirmou.
A pressão pública parece dar resultados. Um alto tribunal de Mumbai solicitou ao governo estadual, no dia 30 de março, que garanta a entrada das mulheres em todos os lugares de culto. A decisão judicial é clara: “Não há nada que impeça a entrada das mulheres. Os agentes de segurança devem agir contra os que as impedem. Se os homens têm direito a entrar em um lugar sagrado, as mulheres também têm de poder entrar”.
As ativistas buscaram a implantação da Lei de Autorização de Entrada em Lugares Públicos de Culto Hindu em Maharashtra, de 1956, segundo a qual “não se pode impedir nem desestimular nenhuma pessoa [que professe a religião] hindu de qualquer classe ou grupo social a entrar em lugares públicos de culto nem que realizem ritos religiosos”. A violação da lei é punida com seis meses de prisão.
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E não são apenas as hindus. As muçulmanas também lutam contra a proibição de entrarem na popular mesquita do século 15 Haji Ali, em Mumbai. A organização defensora dos direitos das mulheres Bharatiya Muslim Mahila Andolan apresentou um recurso junto a um alto tribunal reclamando o direito de entrar no santuário. Até 2013, podiam chegar até o mazar (mausoléu), mas depois foram proibidas, “para sua própria proteção e segurança”.
Segundo Anirudh Kashyap, professor adjunto do departamento de história da Universidade de Nova Délhi, esse tipo de atitude é um reflexo das arraigadas concepções patriarcais que não consideram as mulheres em um plano de igualdade. “A oposição ao direito de as mulheres irem ao culto está em desacordo com a definição da Índia como a maior democracia do mundo”, ressaltou à IPS.
Especialistas afirmam que um assunto que complica a situação na Índia é que a Constituição confere ao Estado o poder de realizar reformas sociais, mas não distingue entre o Estado e a religião, o que permite perguntar se as autoridades religiosas têm ou não direito de proibir a entrada das mulheres nos templos. “A resposta é sim e não”, explicou a advogada Pratiba Pandey.
Vídeo discute campanha “feliz por menstruar” (Em inglês)
A Constituição garante a liberdade de culto, mas o artigo 26(b) outorga às organizações religiosas o direito de decidir sobre as questões religiosas, que costumam cair em atitudes sexistas, embora o artigo 25(2) permita a intervenção estatal em seus assuntos, quando está em jogo o “bem-estar social”, o que pode derivar em abusos de autoridade.
“As atitudes políticas complicam a questão ao ceder diante de interesses criados, dobrar-se às demandas de poderosas autoridades religiosas e ignorar os direitos constitucionais das mulheres”, pontuou Pandey. O atual escândalo religioso deixa uma lição, pois numerosos estudos ressaltam os benefícios de uma sociedade com igualdade de gênero.
Uma alta comissão sobre o status da mulher, criada pelo governo central, situou, no ano passado, a Índia em 141º lugar, entre 142 países, segundo indicadores de saúde e sobrevivência. Além disso, numerosos economistas concordam em que uma economia em desenvolvimento como a indiana não pode se permitir limitar os direitos das mulheres nem se privar de uma política de inclusão.
Segundo um informe do Instituto Global McKinsey, a melhora da igualdade de gênero pode ajudar a Índia a agregar 2,9 bilhões ao seu produto interno bruto até 2025. Nesse sentido, permitir a entrada das mulheres nos templos e locais sagrados de culto pode ser um bom começo.
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Publicado orignalmente por IPS/Envolverde