A consulesa da França no Brasil Alexandra Loras, conhecida pelo ativismo e luta pelo empoderamento das mulheres negras, gerou um debate nas redes sociais ao divulgar o que será o editorial da revista de moda Vogue de agosto. A campanha “Vista minha pele” trabalha uma inversão dos tradicionais papeis aceitos na sociedade, com mulheres negras como “patroas” e brancas como empregadas domésticas, para discutir o racismo na sociedade brasileira.
“Vista minha pele… provocação monstrando o mundo ao reverso… Para enxergar o quanto nossa realidade é violenta é absurda. Paola Braganca de Orleans (tataraneta da princesa Isabel) teve a coragem de se vestir de empregada doméstica para elevar o debate sobre racismo. Que você acham dessa imagem?”, postou Loras em sua página oficial do Facebook:
A ideia de provocar a reflexão sobre o racismo, propondo uma visão ao inverso, no entanto, gerou uma reação contrária de muitas blogueiras negras, entre elas Gabriela Moura, que escreveu em seu Facebook: “Pressupor que o público da Vogue se chocará com o editorial e/ou se sensibilizará com uma suposta inversão de valores é inocente e vazio. Mais que isso, tal imagem serve em um primeiro momento para sanar algum eventual senso de justiça torto – reiterando que pobres não tem acesso a tal publicação, e que uma inversão de hierarquia é uma demonstração néscia de um empoderamento que, pela lógica da imagem, viria por meio da exploração de outras mulheres. Ou seja, questões como acúmulo de capital e exploração do trabalho seriam mantidas intactas”.
Leia a íntegra do comentário de Gabriela Moura:
Minha visão sobre essa foto, que é parte de uma ação promovida por Alexandra Loras, consulesa da França no Brasil.
Primeiro, algumas informações:
1) Eu estive presente quando essa ideia foi apresentada a nós como forma de fazer pessoas brancas se colocarem em nossa pele;
2) a foto foi publicada pela Vogue Brasil;
3) uma das empregadas é interpretada pela Princesa Paola de Orleans e Bragança.
Minha perspectiva:
Não quero me valer de termos vulgares para sinalizar que a imagem significa uma tentativa torpe de infringir uma mazela comumente sentida por mulheres negras. Digo torpe porque parte do pressuposto que a branquitude brasileira não se enxerga enquanto raça e precisaria de um tipo de choque de realidade para compreender questões inerentes ao racismo.
Dito isso entendamos alguns pontos: existem estudos de psicologia social, muito úteis na concepção de campanhas de comunicação, que cunharam os termos pacto narcísico e indignação narcísica, ambos derivados da teoria Freudiana sobre narcisismo e o amor a si próprio. O primeiro termo se refere basicamente a conivência dos indivíduos brancos aos seus iguais no que diz respeito a um silêncio diante do racismo brasileiro. Ou seja, enxergar uma sociedade desigual e não agir diante dela. O segundo é mais algo como “o que não me atinge não me importa”, por isso muito usa-se o argumento ” sou a favor se cotas sociais, não raciais ” ou ” o feminismo negro é separatista”, uma vez que pobreza e machismo atingem também os brancos, mas convenientemente retira-se o fator RAÇA do debate, a fim de não enxergar-se enquanto indivíduo racializado em um país que usa democracia racial como marketing.
Partindo desses princípios levantados pela psicologia, podemos aplicar tais termos na comunicação:
Pressupor que o público da Vogue se chocará com o edital e/ou se sensibilizará com uma suposta inversão de valores é inocente e vazio. Mais que isso, tal imagem serve em um primeiro momento para sanar algum eventual senso de justiça torto – reiterando que pobres não tem acesso a tal publicação, e que uma inversão de hierarquia é uma demonstração néscia de um empoderamento que, pela lógica da imagem, viria por meio da exploração de outras mulheres. Ou seja, questões como acúmulo de capital e exploração do trabalho seriam mantidas intactas.
Logo, se sabemos que não podemos falar de classe sem falar de raça, não podemos falar de raça sem falar de classe. Pois a falta de indivíduos negros em situação de domínio econômico demonstra não apenas que esses indivíduos se concentram na base da pirâmide, mas, também, que EXISTE essa pirâmide, e a sua inversão pode nos dar uma sensação momentânea de justiça, até mesmo vingança, mas nos manterá em um cenário de desigualdades.
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Dito isto, é importante frisar a urgente necessidade do estudo do branco enquanto protagonista do racismo. Ou seja, o agente da violência, nos despindo de pudores e de preguiça, entendendo que o pacto narcísico e a indignação narcísica se manterão assim que a revista for fechada e virar forro de gaiola de pássaro ou coletor de cocô de cachorro de raça na Oscar Freire.
Então são dois caminhos a serem entendidos: de um lado temos uma comunidade racista que se enxerga enquanto branca apenas quando convém (na hora de reclamar de políticas públicas raciais, por exemplo e na hora de negar a própria responsabilidade na manutenção do racismo), e um empoderamento de fachada que brinca de fazer birra e perde chances de ouro de redesenhar papéis sociais impostos, como o da empregada doméstica, cujo estereótipo foi mantido com as duas personagens ao fundo como “as empregadas fofoqueiras”.
Apontar o privilégio branco de forma enérgica e cobrar responsabilidade sobre seu papel enquanto brancos em um país racista vai a fundo em estudos e políticas de raça e gênero.
Lembrando que a Vogue é a revista que promoveu a festa com o tema África – reforçando a ideia de África enquanto local homogêneo e primitivo – onde atrizes e modelos brancas puderam brincar de serem africanas por um dia, com direito a blackface e esvaziamento dos significados de trajes típicos. A mesma publicação mantém, também, a cultura da extrema magreza em suas modelos e, naturalmente, sendo a revista de moda mais famosa e tradicional do mundo, jamais se posicionou sobre questões raciais em suas páginas, tampouco em sua redação.