Três dias depois de efetuadas as primeiras prisões da Hashtag, no dia 21 de julho de 2016, o programa dominical Fantástico, da TV Globo, apresentou uma reportagem de cinco minutos sobre possíveis ameaças terroristas no país. A matéria tinha como foco o depoimento de um jornalista não identificado.
Com o rosto encoberto por um capuz e a voz modificada, o jornalista Felipe de Oliveira não foi identificado ao telespectador, mas foi apresentado como alguém que se infiltrara durante um ano e meio em grupos nas redes sociais “seguindo os passos de brasileiros que se dizem prontos para ajudar o Estado Islâmico”. Ele alertava que, além dos presos da Hashtag, existiam “outros brasileiros em contato permanente para planejar ações”. O locutor completava: o integrante de um grupo virtual chegou a “sugerir um atentado no Rio de Janeiro”.
Após a reportagem, o jornalista continuou atuante nas redes.
Quatro dias depois de a matéria do Fantástico trazer o alerta de que poderia haver um atentado no Rio, o próprio jornalista responsável pela informação, que usava nas redes sociais o codinome Abdu Jani, sugeriu, em grupo de WhatsApp infiltrado por ele, que “gostaria (de) fazer algo no Rio de Janeiro”, conforme as palavras do delegado Guilherme Torres no relatório final da polícia. “[o jornalista] também pergunta se os integrantes do grupo conseguem comprar pólvora e materiais para montar um explosivo”, descreve. Na interpretação do delegado Torres, o jornalista “possivelmente estaria a encorajar aos integrantes para possivelmente ver se apoiariam algum atentado”.
Procurada, a assessoria de imprensa da emissora carioca enviou a seguinte nota à Pública: “A TV Globo esclarece que em julho do ano passado foi procurada por Felipe de Oliveira, que ofereceu uma reportagem como free-lancer sobre o Estado Islâmico no Brasil, com dados já totalmente apurados por ele. Como sempre faz, a TV Globo imediatamente confirmou, com outros veículos de imprensa, a boa reputação do jornalista. Não nos foi dado a saber a utilização de qualquer método condenável de apuração. Ele nos disse que se infiltrou em grupos de apoiadores do Estado Islâmico usando para isso a internet, o que é legítimo nesses casos, uma técnica utilizada pelos veículos mais sérios do mundo”. A Globo afirma ainda que procurou a PF no dia anterior à veiculação da matéria, “com a concordância do jornalista, para que as autoridades fossem informadas do seu teor e tivessem a oportunidade de dizer se alguma informação poderia prejudicar investigações em curso”. “Dois delegados da PF estiveram naquele sábado em nossa redação. No dia seguinte à exibição da reportagem, a TV Globo encaminhou todas as imagens em seu poder à Polícia Federal. Evidentemente, as autoridades sempre conheceram a identidade do jornalista, pois isso não era segredo.”
Reprodução/TV Globo
Jornalista apareceu camuflado durante reportagem sobre possíveis ameaças terroristas
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A nota prossegue: “Como o próprio relatório da Polícia Federal atesta, o jornalista Felipe de Oliveira, intimado pelas autoridades, entregou a elas espontaneamente seus aparelhos de telefone e computadores, com o único objetivo de provar que seu trabalho foi jornalístico. A TV Globo esclarece, por fim, que oferece apoio a todo jornalista que responda em juízo em razão de matéria jornalística veiculada por esta emissora com o objetivo de proteger a liberdade de informação e expressão, especialmente na prática do jornalismo investigativo”.
Embora fosse, segundo sugere a nota da emissora carioca, nome conhecido da PF – que chegou a visitar a redação da Globo –, o jornalista continuou agindo ativamente nos grupos nas semanas seguintes. Nesse período, não parece ter sido incomodado pela polícia que agora o indiciou.
Em um diálogo no Telegram destacado pelo delegado Guilherme Torres, no dia seguinte à reportagem do Fantástico, o perfil de Abdu Kani diz a outro usuário: “Estávamos planejando trazer a justiça ao Brasil, mas estamos preocupados com as autoridades…”. O relatório detalha ainda que o jornalista teria dito no aplicativo que, “apesar de não ter ligação direta com o grupo ISIS [Estado Islâmico], seria simpatizante, acompanhando o grupo pelo Telegram e que estaria disposto a agir em nome do grupo se fosse preciso”. Em outro diálogo, no dia 2 de agosto de 2016, o delegado mostra que Felipe fala a outro usuário que “era capaz de ordenar ataques em todos os estados e que não iria preso”.
Por causa de diálogos como esse, o delegado Torres o indiciou por promoção ao terrorismo no relatório final da Hashtag. “Pode-se identificar que este, no afã de obter matérias jornalísticas exclusivas, acabou por promover a organização terrorista Estado Islâmico, na medida em que não apenas apurava jornalisticamente junto a simpatizantes daquela organização, mas também fomentava a radicalização e criava links ou relações interpessoais entre os extremistas, que até então eram inexistentes.”
Felipe de Oliveira, de 28 anos, mora no Rio de Janeiro. Ele não quis dar entrevista para esta reportagem, mas afirmou que tudo o que fez foi “para fins jornalísticos”.
O relatório policial, um documento público, foi anexado aos autos no início de março de 2017. As oitivas de Felipe e termos de declaração junto à PF seguem, entretanto, em segredo de Justiça, a partir de pedido formulado em nome da Associação Nacional de Jornais (ANJ). “A ANJ solicitou segredo de Justiça com o objetivo de proteger o jornalista, já que seu trabalho de jornalismo investigativo poderia resultar em danos à sua segurança, à sua integridade física”, disse à Pública, por e-mail, o diretor executivo da ANJ, Ricardo Pedreira.
(*) Publicado originalmente pela Agência Pública